MUITO
Mundo cannabis
Por Luana Ribeiro

Você pode fumar baseado, diz o refrão de um dos mais icônicos dos nossos hinos "legalize it". Agora também é possível usar um bong. Um pipe. Um blunt. Os nomes giram em torno de uma velha conhecida da humanidade: a maconha. Seu uso é antigo. Há registros que datam de 7000 a.C., na China; no século 20, esteve por vezes associada às contraculturas. Apesar de ainda viver sob o crivo da lei no Brasil, os consumidores da Cannabis estão sempre por perto, mesmo que você não saiba.
"Tentaram criar um estereótipo, o do barbudo, largado, malvestido, sujo, disperso. Mas há usuários em todas as camadas da sociedade, desde o morador de rua até o milionário", diz Guilherme Storti, 27, criador do 420app, aplicativo destinado à troca de informações sobre maconha e outras drogas, e do site homônimo. A ideia surgiu a partir da experiência como redutor de danos.
Limitada pela criminalização - da venda, do cultivo e do uso -, a cultura canábica vem crescendo aos poucos no estado. Em Salvador já surgiram algumas head shops, lojas especializadas em acessórios - elas só não vendem, por motivos óbvios, a própria droga. Uma das opções é a popular seda, feita frequentemente com cânhamo, variedade da Cannabis com concentração muito pequena do seu princípio ativo, o tetra-hidrocanabinol (THC).
Além do básico, o cliente encontra um mundo de acessórios: há dichavadores (peças de metal ou acrílico para triturar fumo), bongs (recipientes usados para purificar e resfriar a fumaça em água, para inalação), pipes (cachimbos, alguns na forma discreta de um chaveiro), sedas saborizadas, blunts (embalagens feitas de tabaco que enrolam a maconha), filtros de madeira, potes de silicone para guardar a erva, cinzeiros. A lista é extensa.
"Salvador sempre teve uma cultura mais provinciana. Morei dois anos na Austrália e na Nova Zelândia, conheci uma série de head shops", explica o publicitário Jeff Beltrão, sócio do também publicitário Rodrigo Hohlenwerger na loja Sr. Haxi. De volta ao Brasil, ele diz ter visto algumas empresas do ramo em São Paulo, mas nada parecido na cidade. Há um ano e meio, resolveu lançar a ideia, inicialmente de forma itinerante, em feiras culturais.
Aberta na forma de pop up store, a head shop de Jeff será fechada daqui a alguns meses. Engana-se quem pensa que é porque o negócio não deu certo: além de reabrir em uma loja maior, já há duas outras unidades recém-inauguradas: uma no fumódromo da boate Zero, no Rio Vermelho, e outra na Somos Coletivo Criativo, no Shopping da Bahia. O público é variado. "Para minha surpresa, o mercado tomou uma boa dimensão. Também vendo produtos da Chapada e vêm vovozinhas aqui comprar geleia e seda".
Nem todas as reações são positivas, no entanto. "Já notei atividades suspeitas de clientes que vêm com excesso de curiosidade para não comprar nada. Mas nosso trabalho é sério. Sou filho de um jornalista com uma advogada. Antes de abrir a loja, me resguardei de todas as formas". A loja está dentro da lei. Mas sua existência está ligada a uma prática ainda ilegal. "Se eu disser que não sei para que o produto pode ser utilizado, estou mentindo. É ilegal o consumo? É. Mas o Brasil hoje está entre os cinco maiores consumidores do planeta".
Além da Sr. Haxi, há outras head shops na cidade e nos arredores, sendo algumas sem loja física, caso da Bom Bleu Tabacaria, que mantém um perfil no Instagram (@bombleutabacaria), e da Green Room Headshop, que atende a Bahia e Sergipe. Em Vilas do Atlântico, há a Nativus Tabacaria, na Avenida Praia de Itapuã.
No Rio Vermelho, a Isso é um cachimbo? foi aberta em maio deste ano pelos sócios Luna e Lucas Nery, Ana Carolina Nery (prima de Luna) e Fernando Paixão. Instalados em um dos bairros mais novidadeiros, o quarteto desfruta de facilidade e diversidade na lida com os clientes. "Temos um público grande de turistas. Por estarmos cercados por hotéis. Investimos também em peças decorativas", diz Luna. O foco, porém, é no conceito head shop. "Tem cliente que liga perguntando se tem uma peça de reposição de bong. Quando respondemos que sim, só falta soltar fogos".
A ideia de montar a loja veio da percepção de uma demanda reprimida. "Eu e Lucas sempre estivemos próximos do que poderíamos chamar de cena alternativa e desse público em potencial, que frequenta o Rio Vermelho, o MAM, a Concha acústica, o Porto da Barra...". Apesar do "mapeamento", Luna e seus sócios buscam se afastar dos estereótipos. "A gente até brinca que não vai ter nada de estampa com Bob Marley. Música, então, nem pensar. A trilha sonora é Nina Simone, Lucas Santana, Elis Regina, Fela Kuti".
Olhar seletivo
Enquanto os usuários fogem da caixinha, a lei busca enquadrá-los, com contornos ainda não muito definidos. No Brasil, cultivo e venda de maconha são proibidos, sob penas que variam de 5 a 15 anos de prisão e multa. O consumo não é liberado - quem for flagrado portando drogas pode ser detido -, mas as penas são mais brandas: pode ser uma advertência sobre os efeitos da droga, prestação de serviços comunitários ou a participação compulsória em algum curso ou programa educativo. A lei 11.343/2006, no entanto, não põe a diferença entre usuário e vendedor na balança: os critérios são definidos pela autoridade policial e pela Justiça.
Integrante do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) e da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), o juiz Gerivaldo Neiva, da Comarca de Conceição do Coité, aponta que a legislação apresenta problemas em dois pontos essenciais. Um deles é a contradição do artigo nº 28, que se refere ao usuário, mas ainda consta no capítulo de crimes e penas. "É uma situação esdrúxula. O artigo 28 está no capítulo dos crimes, mas não tem pena privativa de liberdade".
A constitucionalidade desse artigo está sendo questionada no Supremo Tribunal Federal (STF). O julgamento foi suspenso em setembro de 2015 - há um ano, portanto - após o ministro Teori Zavascki fazer um pedido de vista ao processo. Em julho, o magistrado sinalizou que a matéria deve voltar à discussão ainda este ano. Até então, dos 11 ministros, três já se manifestaram: Gilmar Mendes, pela regulamentação do uso e porte de todas as drogas; Edson Fachin, apenas da maconha; e o mesmo posicionamento de Luís Roberto Barroso, que opinou pela delimitação clara da quantidade permitida - 25 gramas de maconha ou até seis plantas fêmeas por pessoa. "É possível que ainda este ano a gente tenha essa definição. Será um grande marco legislativo", diz Neiva.
O juiz salienta, no entanto, que a mudança da legislação não deverá ter grandes impactos na prática. "Outra coisa é a realidade das ruas. O que a gente sabe é que, a depender de sua condição social, cor da pele, lugar onde mora, o usuário é preso como traficante e vai cumprir pena".
Ele diz que são comuns casos em que pessoas detidas com a mesma quantidade de droga são enquadradas de modo diferente. "Uma coisa é apreender um negro do Nordeste de Amaralina com 20 gramas; outra coisa é um jovem em um carro de luxo no Farol da Barra ou Ondina. O que tem prevalecido é o preconceito e o pré-juízo, não há objetividade". Para Gerivaldo, o atual olhar do Judiciário sobre as drogas criminaliza uma parcela bem determinada. "Uma legislação não vai alterar a realidade. As pessoas usam, isso é fato. Os jovens estão sendo mortos e encarcerados como traficantes, a juventude negra, pobre e periférica".
Pesos e medidas
Na busca por um limiar que não permita essas distorções, o CNPCP trabalha em uma resolução que oriente o Judiciário sobre a questão, até que o STF se pronuncie definitivamente. "Vamos seguir os parâmetros do Uruguai, de seis plantas ou 40 gramas de maconha". A estimativa é que a norma possa ficar pronta em novembro e se estender a outras drogas: 2,5 g para cocaína e 10 pedras de crack. Neiva também é porta-voz do núcleo brasileiro Law Enforcement Against Prohibition (Leap, do inglês, Agentes da Lei contra a Proibição), que reúne juízes, delegados e policiais para reduzir os danos da chamada "guerra às drogas". O grupo quer, em novembro, realizar um encontro em Salvador.
Em relação ao cultivo, a lei tem o mesmo tratamento difuso. Se for destinado a "consumo pessoal" para preparo de "pequena quantidade", a legislação impõe as mesmas penalidades impostas ao usuário. Há também na lei a autorização para que a União permita o cultivo "exclusivamente para fins medicinais ou científicos", desde que "em local e prazo predeterminados" e sob fiscalização. Na prática, porém, isso acaba não ocorrendo.
"Eu acho possível e viável, mas a representação política é muito moralista, temos uma bancada imensa de evangélicos na Câmara e no Senado", afirma Guilherme Storti. Usuário de maconha há mais de 10 anos, ele reconhece diversos benefícios medicinais. "Dá um relaxamento tanto muscular quanto mental. Tenho ansiedade crônica, tive insônia minha vida inteira", explica. "Cigarro e álcool fazem muito mais mal para a saúde do que a própria maconha, mas são tratadas de forma diferente até pelo processo histórico".
Shinny happy
A dubiedade que envolve o assunto tem atrasado a discussão do uso medicinal. Na ausência de literatura em português sobre o tema, o antropólogo baiano Sérgio Vidal escreveu em 2010 o livro Maconha Medicinal - Uma introdução ao cultivo indoor. A obra apresenta o uso medicinal da erva, os procedimentos legais para obter a autorização para o plantio e orienta como desenvolver a maconha. "O primeiro detalhe é a biologia vegetal, depois, as características específicas. Tem a questão medicinal também, o cultivo tem que ser otimizado".
Como se estivesse meio cansada do escuro das conversas escondidas, a Cannabis precisa muito de luz. "No período em que está crescendo, ela precisa de uma quantidade que equivale à luz do meio-dia, o dia inteiro, isso no indoor. Chega a ficar até 18 horas por dia com a lâmpada acesa. No florescimento, são pelo menos 12 horas". A conta de energia elétrica do cultivador (ou 'grower') acaba sendo um reflexo dessa alimentação reluzente.
A maconha é indicada no tratamento de diversas doenças. "Epilepsia, esclerose múltipla, esclerose lateral amiotrófica, diferentes tipos de câncer, tanto no sentido de mitigar sintomas como na ação antitumoral comprovada", lista. No caso do câncer, a dificuldade é a forma de levar o princípio ativo até o tumor, o que é simples no caso de câncer de pele e complicado se o tumor estiver no cérebro, por exemplo.
De acordo com Vidal, botanicamente não há diferenças entre as duas variedades convencionadas ao longo do tempo: Sativa e a Indica (pronuncia-se índica). A Cannabis se multiplica em variações a cada semeadura, de acordo com a relação entre o ambiente. As cepas - ou strains, no termo corrente entre cultivadores mundo afora -, porém, desde a lendária manga-rosa baiana à californiana blue dream, são, em geral, derivadas da ação humana, que realizam cruzamentos e atuam para isolar e reproduzir determinadas qualidades.
Uma das formas de expressão dessa variação são os terpenos (responsáveis pelos aromas), que tornam o consumo experiência quase gastronômica. Em diversos sites dedicados à cultura canábica, usuários de todo canto trocam impressões. A manga-rosa não teria esse nome à toa: os relatos lembram cheiros da fruta e de casca de laranja, com efeito estimulante.
A northern lights - supostamente com origem na cidade americana de Seattle - é evocada com sabores de terra, doces e pínus. A purple haze, homônima ao clássico de Jimi Hendrix, também seria terrosa e doce, mas puxando a frutas vermelhas. Mas se o leitor já sentiu o cheiro de baseado no ar, provavelmente não teve a oportunidade de fazer todas essas viagens. "A produção ilegal é feita sem nenhum tipo de técnica. Tudo é feito de forma muito precária. A primeira perda são os terpenos".
Os canabinoides, princípios ativos da planta (há ao menos 100), vão ficando para trás com a manipulação. O mais conhecido é o THC, que se deteriora em contato com o ar. Há ainda o canabidiol (CBD), que se tornou famoso após ser alvo de disputa por pacientes com convulsões. As concentrações de cada uma e suas interações ditam os efeitos da erva consumida, tanto no uso recreativo, como medicinal.
Polígono da Maconha
A maior parte da maconha consumida na Bahia é originária do Paraguai. "Em termos de porcentagem, podemos dizer que nos últimos 18 meses cerca de 75% da maconha apreendida foi produzida no Paraguai, ainda que tenha vindo de outros estados", explica o delegado André Gonçalves, chefe da Delegacia de Repressão a Entorpecentes da PF na Bahia. Um dos motivos é um cenário de supersafra no país vizinho, o que baixa os preços. Antes de chegar aqui, a droga passa por rotas que incluem estados como São Paulo, Paraná, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.
Há um polo produtor no Brasil, o famoso "polígono da maconha", que compreende o norte da Bahia, em torno de Juazeiro, até o extremo oeste de Pernambuco. "Somente em 2015 foram apreendidas pela PF de Juazeiro cerca de onze toneladas de maconha, já colhidas em Campo Formoso, sendo esta a maior apreensão já registrada na Bahia". No primeiro semestre de 2016, foram apreendidas 8,5 toneladas.
A diferença de origem fica clara na forma. Enquanto toda a maconha do Paraguai chega em blocos prensados, a que é produzida em terras baianas vem solta. Há ainda a Cannabis de procedência europeia. "Em quantidades menores, e na forma de uma massa escura (haxixe), ou florações de cor característica formada pelo cruzamento das espécies Sativa e Indica (skunk), todos embalados a vácuo e com teores de THC bem mais elevados", descreve.
A PF não faz exame de pureza; apenas verifica se a coleta foi de substância ilegal. "Há notícias de misturas na maconha de urina humana e até mesmo de excrementos de animais. Mas somente os testes realizados em laboratório podem apontar adulterantes". Fora das bocas de fumo, ou "biqueiras", usuários recorrem aos amigos para conseguir maconhas de cepas diferenciadas. "Tem em cidades do interior, em Itacaré, e outras", explica um usuário, que preferiu não se identificar.
Já a maconha comum é encontrada a preços que variam entre R$ 2 e R$ 5, o grama, quantidade que rende entre um e dois baseados. "Às vezes você tem que ir direto [à boca], consegue e divide. É sempre arriscado". Já a maconha de cultivo mais elaborado é vendida em Salvador a preços que alcançam até R$ 25, em "prédios" e bairros de renda mais alta. Apesar da dificuldade de conseguir atestar a procedência, os adeptos garantem perceber a diferença na qualidade.
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