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OLHARES

Nossos olhos são anfíbios

Exposição "A beleza que te segue brilha nas sombras", de Davi Caramelo, pode ser vista até o dia 29

Por Priscila Miraz* | [email protected]

17/07/2023 - 6:30 h
Díptico "O vento é uma lâmina que corta o silêncio"
Díptico "O vento é uma lâmina que corta o silêncio" -

No dia 3 de julho foi aberta a quinta exposição individual de Davi Caramelo, A beleza que te segue brilha nas sombras, na A Galeria, espaço expositivo do Ativa Atelier, no Rio Vermelho. São 11 pinturas e 42 desenhos inéditos, todos produzidos em 2023. Davi, artista multimídia, arquiteto, ilustrador, designer e diretor de arte, nos apresenta imagens singulares, resultado de três anos de pesquisa, que escapam de definições ou correlações mais imediatas que sejamos instigadas a fazer.

Estranhamos as figuras que nos apresenta. Um estranhamento que nos joga no limiar, no ponto entre a luz e a sombra, entre o figurativo e formas geometrizadas. Nesse entremeio, brincando com nossa percepção, a luz e a sombra estão intrinsecamente conectadas no mesmo plano, em branco e preto. A planaridade tão discutida pelos modernismos e vanguardas está ali, nos provocando e instigando as incertezas, as impermanências da matéria, que ao mesmo tempo nos é apresentada sólida, sentimos seu peso.

Em alguns dos trabalhos, as imagens se modificam conforme nosso olhar, indo e voltando sobre/sob suas linhas, porque não sabemos se estamos na superfície ou submersos. A fita de Moebius surge como uma imagem-código: não estamos nem dentro nem fora, porque a fita de Moebius é uma superfície topológica que se conecta pelos extremos – o extremo de um lado continua no avesso do outro tornando indiscerníveis as duas superfícies. Existe um compasso truncado que marca esse movimento, como uma gagueira do olhar que, acompanhando as linhas propostas pelas figuras, chega em seu impasse e retorna, e volta a insistir em continuar.

Foi o que senti acompanhando as linhas curvas de uma das obras da série Quando tudo era ausência: dois círculos sobrepostos, um branco e um preto, que se conectam como objeto/sombra às pernas verticais. Num lance de vista quase afirmamos ver uma mesa circular e uma cadeira, mas depois não. Da mesma forma que olhando Casas são como animais velhos nos sentimos quase em um detalhe da litografia Côncavo e Convexo (1955), do artista holandês Escher. Mas, outra vez, não. É ainda outra coisa, outra casa e outro jogo.

Segundo Fábio Gatti, que assina o texto crítico e consultoria criativa em parceria com Lanussi Pasquali e João Oliveira, “o artista faz um passeio pela fita de Moebius, não para continuar a se movimentar num infinito, embora ele exista, mas sim para se questionar, e prolongar sua dúvida a nós, sobre qual lado da superfície está: se dentro das formas figurativas ou fora delas; se dentro do cheio da sombra com tudo o que ela tem de não apresentável ou do faltoso. Nem ele saberá, nem nós, qual o lado dessa superfície espacial se explora objetivamente”.

Outra forma de ilusão

O jogo entre luz e sombra que marca tão profundamente a construção visual barroca e sua teatralidade que instrui como referência a história da arte ocidental, diz muito mais com o que deixa escondido nas sombras e que complexifica o que está centralizado pela luz. Quando Davi atravessa esse jogo com a proposta moderna da planaridade das figuras/formas e projeta a sombra para a mesma linha da luz, reduzindo as cores a apenas duas, essa manipulação ganha a dimensão do que desconstrói (a profundidade, a perspectiva), e cria uma outra forma de ilusão que não a renascentista, para evidenciar que a certeza das formas é a invenção.

Somos provocados como observadores dessas imagens. As formas estão presentes como ideias numa figuratividade para além da interpretação realista, porque estamos diante de um exercício de fabulação de tempo e espaço a partir de construções de corpos arquitetônicos e orgânicos em tensão e impermanentes. Buscando nos aproximar desse exercício pela imagem-código da fita de Moebius, lembramos da importância dessa topologia para a arte brasileira com a proposta do Caminhando (1963) de Lygia Clark, ela também uma outra forma de sentir o tempo e o espaço a partir da fita de Moebius em outra chave, como objeto, o que não é a proposta de Davi.

Antes de seu interesse se voltar para a tridimensionalidade, existiu nas pinturas de Lygia uma tensão dialética, como afirma Guy Brett em Lygia Clark: seis células, e aqui talvez esteja uma brecha para o estranhamento da densidade das formas que vejo em Davi. Destacando a série Unidade (1950), Brett aponta para a criação de um movimento de respiração proporcionado pelo uso do preto denso e opaco, criando um sentido de preenchimento do espaço, ao mesmo tempo em que liga partes desses espaços com um sulco branco que se estabelece como estrutura opticamente elástica, “como se os espaços interior e exterior estivessem em contínua expansão e contração”.

Além dessa criação de outra modalidade de percepção de dentro-fora em movimento já perceptível em suas pinturas e intensificada na fita de Moebius em objeto, é também possível entrever em Lygia a relação com a experiência da intimidade que depois desembocará no corpo. Em uma entrevista para a revista Veja em 1986, ela afirmou: “Comecei com geometria, mas estava procurando um espaço orgânico onde pudesse entrar no quadro”.

Permanecendo na bidimensionalidade da pintura, Davi utiliza o branco e o preto em formas exatas e dúbias ao mesmo tempo, com densidade, com peso, matéria e atmosfera de prospecção de um mundo próprio e que engana nossa forma de olhar ainda tão presa justamente ao que o concreto e o neoconcreto buscaram romper, a perspectiva renascentista do espaço. No caso de Davi, não existe a busca desse enfrentamento pelo abandono da figura na pintura, se encaminhando para a tridimensionalidade, mas a permanência do estranhamento das figuras na dimensão pictórica.

Nesse sentido de aproximação/distanciamento com questionamentos do modernismo, outra referência que me atravessou no encontro com a série Quando tudo era ausência em suas possíveis cadeiras duplas, de pernas pro ar, cadeiras-casas, cadeiras-caixas, foi a fotografia de cadeiras da série Fotoformas de Geraldo de Barros, como se todas as realocações de uma cadeira fotografada em sobreposição em uma mesma imagem por Geraldo fossem recortadas, recolocadas, remontadas pela pintura, cada uma tomando um rumo independente, deitadas, desdobradas em outras possibilidades isoladas.

Aqui outra característica dessas imagens: estão sozinhas, centralizadas, o que determina uma certa atmosfera de melancolia intensificada pelos títulos que lhes são atribuídos. São versos, assim como o título da exposição. Temos na totalidade das imagens e das palavras que as referenciam, a criação de cenários com seus personagens em trânsito por um mundo em fragmentos.

Tensões visuais

Segundo Davi, o que busca nesta série é “provocar as percepções, criar tensões visuais por meio de corpos humanos ou arquitetônicos que nascem a partir do contraste e através deles adentrar em questionamentos que perpassam o subconsciente humano, as relações interpessoais e a efemeridade da vida assim como as tentativas diversas de prolongá-la". Nesse sentido, para Gatti, esse acesso pode ser feito pela categoria de topoanálise do filósofo francês Gaston Bachelard, que diz dos espaços de uma casa como lugar dinâmico, vivido como intimidade.

No díptico O vento é uma lâmina que canta, a casa e a rua, o dentro e o fora de corpos arquitetônicos e orgânicos surgem pungentes entre recolhimento e fuga. Essa imagem me fez retornar a Como se fosse a casa (uma correspondência), livro de Ana Martins Marques e Eduardo Jorge. Em determinado momento, Marques elabora o viver dentro e fora da casa como o que nos torna seres anfíbios: “Somos anfíbios/ sobrevivemos igualmente na casa e na rua/ respiramos na casa e respiramos na rua/ entramos em casa com os pulmões cheios de ar da rua/ e devolvemos depois à rua um punhado do ar da casa/ em casa trocamos de pele para sair à rua [...]/ saímos para a casa para fora da rua, dobramos as ruas/ para dentro da casa – o lado de fora do lado de fora–/ e não nos cega a luz súbita da rua, nossos olhos/ se adaptam, somos anfíbios”. Suspensos entre matérias, como em Cercados por um mar, envolvidos pelo embate na criação do espaço em que transitamos, nossos olhos são anfíbios. A mostra seguirá aberta para visitação presencial a partir do dia 5 até o dia 29 de julho, de quarta a sexta-feira, das 15h às 19h, e sábado das 9h às 12h.

*Doutora em História Cultural e professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

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