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16/10/2022 às 6:00 - há XX semanas | Autor: Vinícius Marques

MUITO

O Brasil de Dias Gomes

Centenário de nascimento do autor de o Pagador de Promessas será comemorado no próximo dia 19

Zé do Burro, Odorico Paraguaçu, Viúva Porcina, Sinhozinho Malta, João Gibão e tantos outros personagens que permeiam a memória dos brasileiros têm em comum o seu criador: o baiano Dias Gomes. Se vivo, o inventivo dramaturgo e escritor completaria 100 anos no próximo dia 19. Com suas obras no teatro, cinema e televisão, ele continua a se comunicar com as mais diversas plateias devido ao seu texto atemporal.

Nascido em Salvador, em 1922, Dias Gomes mudou-se para o Rio de Janeiro ainda criança. Talvez seja por isso que poucas pessoas se refiram ao autor como um artista baiano. No entanto, suas obras por muitas vezes fazem referências à Bahia ou ao nordeste.

Dias Gomes sempre buscava falar de uma cidade pequena, um microcosmo, para tentar entender o Brasil de proporções continentais, como explica o doutor em Artes Cênicas, professor de Dramaturgia e Análise de Texto da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Paulo Alcântara.

“Ele era um homem atento aos aspectos da cultura do nordeste, da Bahia. O Pagador de Promessas, por exemplo, é uma obra que mostra o quanto da baianidade ele levava para o teatro. Ele também foi um autor que escreveu muito bem sobre o interior da Bahia. Tem isso em O Berço do Herói, O Bem-amado, a própria Saramandaia pode se passar tanto no interior da Bahia como no interior do nordeste”, destaca o professor.

Antes de toda essa criação na TV, Dias Gomes era um homem do teatro. Foi aos 15 anos que iniciou seu percurso artístico, com A Comédia dos Moralistas (1937). Cinco anos depois, com Pé de Cabra, estrelado por Procópio Ferreira, Gomes foi censurado pelo Estado Novo. A partir daí, passou a sofrer uma série de vetos em suas obras nos governos seguintes até a ditadura militar.

“Ele produziu teatro numa época muito difícil, sob o jugo da censura. Imagine que Dias Gomes criou para o teatro obras importantíssimas, mas nas quais ele teve que driblar a censura de maneira muito inteligente e hábil”, afirma Alcântara.

Ele cita o exemplo de O Santo Inquérito, que considera uma das obras mais importantes do teatro brasileiro: “Para poder falar da opressão do período militar, ele trata da opressão entre a igreja e uma moça acusada de feitiçaria. Ali tem toda uma relação opressor x oprimido, o poder do mais forte tentando subjugar o poder do mais frágil”.

Tanto Dias como os diretores das obras precisavam ir a Brasília tentar argumentar contra os cortes. “Era difícil. Imagine tentar segurar uma audiência e ser surpreendido, de uma hora para a outra, com uma cena ou um capítulo inteiro sendo cortado pela censura? Não havia liberdade de criação e, ainda assim, ele escreveu”.

Denúncia social

Apesar da angústia de trabalhar e criar nessas condições, Dias Gomes era um dramaturgo que não cedia. “Ele sempre fazia, tanto no teatro quanto na televisão, obras com essa denúncia social, só que driblando tudo isso. Se ele não podia falar da opressão dos militares, ele faz O Santo Inquérito, que tem ali uma alegoria da ditadura militar muito clara”, analisa Alcântara.

Ele utilizava artifícios para substituir as figuras que criticava. Em O Santo Inquérito, por exemplo, o autor usa a figura da Igreja, que coloca a personagem Branca Dias sob inquisição, acusando-a de feitiçaria.

O próprio padre em O Pagador de Promessas, que questiona as boas intenções de Zé do Burro em pagar a promessa, é a personificação da figura do mais poderoso, aquele que detém o poder.

“Digamos que, para ele, foi mais possível acessar essa temática da ditadura, da opressão, falando da relação da igreja com seus súditos. Ou, muitas vezes, falar do poder do ponto de vista de um microcosmo de uma cidade do interior, que é o que ele fez com Roque Santeiro, com O Bem-amado, falando da exploração da fé das pessoas, falando de políticos corruptos”, conta Alcântara.

Humor e sarcasmo

Entre os exemplos dessas figuras, existiram Zé das Medalhas, Sinhozinho Malta e Odorico Paraguaçu, figuras risíveis dos interiores do Brasil. Ele utilizava esses personagens para fazer críticas sociais, mas sem abrir mão do humor e do sarcasmo, algumas das suas marcas.

O diretor Otávio Correia utilizou o texto de O Santo Inquérito para ser a sua montagem de formatura no curso de Direção Teatral da Escola de Teatro da Ufba, em 2019. Ele se recorda de que em suas pesquisas descobriu que o texto para essa obra foi escrito após as muitas censuras que Dias Gomes enfrentou na montagem de O Berço do Herói, obra que foi adaptada para a televisão como Roque Santeiro.

“É interessante observar como Dias Gomes é um cidadão político, como o viés político está na raiz de sua obra. A gente conhece muito Dias Gomes por seu trabalho na televisão com O Bem-Amado, Roque Santeiro, O Pagador de Promessas, mas muitas vezes não conseguimos ver o lado político de Dias Gomes”, avalia Correia.

O Pagador de Promessas é a obra mais famosa do autor
O Pagador de Promessas é a obra mais famosa do autor | Foto: Acervo Dias Gomes

A escolha do texto para ser sua montagem de formatura também teve um cunho político. Mesmo que tenha surgido de forma intuitiva, a decisão do diretor partiu por conta das eleições de 2018. “Quando fui estudar mais profundamente – porque eu já tinha lido o texto, mas não tinha feito uma pesquisa mais aprofundada a respeito –, eu vi como ele se relacionava intensamente com o momento em que a gente estava vivendo, de fake news, de mentiras e o texto foi escolhido para fortalecer essa narrativa mesmo”, explica o diretor.

Correia revela que já chegou a pensar em montar outros textos de Dias Gomes, mas segundo ele as questões de direitos autorais são muito complicadas. “Montar comercialmente textos dele acabam sendo meio que difíceis”, lamenta. No entanto, ele acredita que seria muito importante que os textos de Dias Gomes continuassem sendo montados na Bahia mais vezes.

Paulo Alcântara faz coro ao desejo de que mais textos de Dias Gomes sejam montados e encenados no estado. De acordo com ele, para se preservar a memória de um dramaturgo, é importante que seus textos sejam encenados.

“A obra dele é uma dramaturgia que tem uma carpintaria muito bem-feita, são obras que têm uma estrutura dramática muito bem concebida, e aí eu estou falando de diálogo, de personagens, de cena. A carpintaria dramática de Dias Gomes é muito sólida. Histórias muito fascinantes, e para preservar a memória de um autor, antes de mais nada você tem que encená-lo e, em paralelo a isso, estudá-lo”.

Alcântara destaca que Nelson Rodrigues, outro grande dramaturgo, está sempre sendo montado e remontado, enquanto Dias Gomes tem seus textos montados muito raramente: “Ele merecia ser mais encenado, sobretudo porque suas obras dialogam com esse Brasil de hoje. As questões ligadas a poder, corrupção, abuso do poder”.

Ocupação

Dias Gomes foi homenageado no dia 18 de maio, em Salvador, durante a cerimônia do 28º Prêmio Braskem de Teatro. No próximo dia 19, data que marca seu centenário de nascimento, o Itaú Cultural, em São Paulo, vai inaugurar a Ocupação Dias Gomes, permanecendo em cartaz até 15 de janeiro de 2023. Com cerca de 170 itens em oito núcleos, a mostra aborda a vasta obra e vida do artista baiano, como conta Carlos Gomes, coordenador da área de artes cênicas do Itaú Cultural.

A ocupação tem curadoria da equipe do Itaú Cultural em parceria com a Rede Globo e os arquivos da família do autor, reunindo cerca de 50 fotos e 10 vídeos com depoimentos de artistas, entrevistas, trechos das novelas, textos de pesquisa, de ópera, de peças, roteiros e adaptações. E também bilhetes e cartas de amigos, como Jorge Amado e Ferreira Gullar, além de mensagens de telespectadores sugerindo o destino dos personagens da telenovela do momento, pôsteres, programas e seu fardão da Academia Brasileira de Letras (ABL).

“Nossa intenção é trazer exatamente para o público o olhar, o que pensou este artista, como era a intimidade dele com a criação artística, sobretudo uma pessoa que tem um método tão peculiar. O que o motivou a criar esses personagens e essas obras que mexeram tanto com o imaginário do brasileiro e ainda mexem”, explica Carlos Gomes.

Ele destaca o apoio da atriz Bernadeth Lyzio, viúva de Dias Gomes, que teve um cuidado muito grande em guardar grande parte do acervo do autor desde a vivência dele com Janet Clair, sua primeira esposa.

“Fizemos uma série de visitas, uma grande imersão nesse acervo que ela tinha, que é bastante grande, para a partir dali entendermos um pouco esse processo de criação do Dias com anotações, entendendo a forma como ele criava os personagens, e tudo isso foi nos dando direções de como seguir”, destaca o curador.

Nessa pesquisa, eles encontraram um vocabulário, um conjunto de palavras, do Professor Astromar, de Roque Santeiro. Do mesmo modo, encontraram uma outra lista de palavras de Odorico Paraguaçu.

Segundo o curador, o vocabulário criado para Astromar são palavras difíceis, mas não são palavras inventadas. Já as de Odorico são palavras que têm outros sentidos, mas quando se ouve a palavra, dá para entender o sentido exato que ele quer dar.

Palma de Ouro

Entre os destaques da Ocupação está uma grande seção dedicada a O Pagador de Promessas, que estreou em 1960 no teatro, virou filme em 1962 e rendeu também o único prêmio da Palma de Ouro do Festival de Cannes para o Brasil, além da primeira indicação de um filme latino-americano na categoria de Melhor Filme Internacional no Oscar.

O professor do departamento de Letras e Artes, Mestre em Literatura e Doutor em Comunicação da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), Claudio Novaes, já realizou uma pesquisa sobre o Cinema Novo, onde faz uma ponte com O Pagador de Promessas e sua importância para a virada cultural na indústria do cinema nos anos 1960.

Para Novaes, o diretor do longa, Anselmo Duarte, faz um filme calcado na ideia da cultura nacional-popular, discurso ideológico das manifestações originais do povo brasileiro. No entanto, Duarte não é um grande entusiasta deste discurso, enquanto Dias Gomes quase que naturalmente absorve isso em suas obras.

“Isso foi importante na junção desse elemento técnico, desse diretor que conhecia o cinema, mas não tinha elementos dessa elaboração do discurso nacional-popular que vem dos modernistas. O Anselmo Duarte não tinha essa leitura e o Dias Gomes, intuitivamente ou por experiência da própria origem de elementos populares da Bahia, leva isso para a literatura e faz essa fusão. Acho que isso é um nascedouro do que vai ser o cinema moderno, o chamado Cinema Novo, ou cinemas novos brasileiros, nos anos 1960”, analisa Novaes.

No entanto, apesar de todo o sucesso do filme, Dias Gomes passa a discordar da condução que Anselmo Duarte deu para o trabalho, afirma Novaes.

Isso faz com que o dramaturgo deixe de realizar roteiros para o cinema e foque seu trabalho apenas no teatro e na televisão, onde chegou a realizar uma nova versão em formato de minissérie para O Pagador de Promessas, exibido em 1988, com direção de Tizuka Yamasaki.

“Ele encontra esse espaço que vai ser muito bem usado e apropriado da comunicação de massa, mas sempre experimentando. Ele tinha, em toda sua obra, seja na dramaturgia, teatro, cinema, televisão, essa comunicação muito fácil e profunda com a cultura popular. Isso é uma conquista mesmo da linguagem do Dias Gomes”, diz Novaes. “Não foi gratuito o sucesso da televisão, do teatro. Ele realmente é uma figura fundamental para a consolidação desse discurso nacional-popular que os modernistas apontam nos anos 1920”.

O curador da Ocupação Dias Gomes atribui o sucesso das obras do dramaturgo ao fato deste fascínio que o baiano tinha pela imaginação e pelas brincadeiras com o realismo fantástico, afirmando que ainda temos muito do imaginário do autor que nos ajuda a pensar um pouco sobre o país.

“É importante pensar o que a gente construiu no Brasil hoje, o que a gente vive hoje. Talvez seja o realismo mais duro e mais fantástico, porque talvez nunca tivesse passado pela cabeça do Dias Gomes se estivesse aqui. Acho que tem algo aí que é bem interessante e traz uma reflexão. O país imaginado por Dias Gomes e o país em que a gente se encontra hoje”, pondera Carlos.

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