OLHARES
O espaço tridimensional na fotografia
Quem já não teve a experiência de ter a sensação de entrar na fotografia e testemunhar cenas ou presenças?
Por Cristina Damasceno*

Quem já não teve a experiência de, por alguns segundos, ao observar uma fotografia, ter a sensação de entrar nela e, a partir do lugar do fotógrafo, testemunhar uma cena ou até mesmo sentir a presença de alguém que foi retratada? A ilusão de contemplar o mundo através de uma fotografia e seus efeitos foi o que fez e faz da fotografia algo fascinante.
Mesmo tendo forma bidimensional, comprimento e largura, na fotografia, muitas vezes o espaço representado de uma cena imita o respectivo ambiente exterior do mundo, proporcionando uma sensação de realidade.
Se formos nos reportar ao passado, encontraremos vários instrumentos óticos que tiveram uma importância relevante em diferentes épocas no sentido de proporcionar ao homem mais conhecimento sobre si e o seu entorno. Dentre esses está a câmera escura, que revolucionou a representação e a percepção espacial da época.
A câmera escura é simplesmente uma caixa de madeira com um orifício em um de seus lados, que através de um fenômeno ótico, uma imagem invertida, é projetada no lado oposto ao furo. Aparelho essencial no processo do descobrimento da fotografia, ela foi utilizada no Renascimento para auxiliar os pintores na execução de suas obras. Principalmente, na reprodução da perspectiva linear, diferenciando os planos de uma cena e simulando um espaço tridimensional.
Primeiros passos para o 3D
O físico escocês David Brewster, em 1851, apresentou a fotografia estereoscópica, que consistia em registrar duas fotografias de uma cena com a câmera na posição equivalente ao olho direito e esquerdo. As imagens eram montadas em um cartão, uma ao lado da outra, e quando miradas com um visor especial produziam uma sensação ótica de ilusão, estimulando os olhos a perceberem superfície e profundidade.
Na segunda metade do século 19, observar as imagens tornou-se uma opção de diversão, principalmente na Europa, em que era corriqueiro encontrar visores estereoscópicos em casas e salões. Na Bahia, não foi diferente. A fotografia estereoscópica provocou um frenesi na burguesia local. Alguns jornais datados a partir de 1860 indicam uma grande procura no mercado local tanto dos aparelhos como dos cartões que tinham como tema imagens de monumentos históricos além de vistas pitorescas. Era como se essa experiência fornecesse ao espectador a sensação de, por alguns segundos, se transportar para os lugares mais distantes e, em segundos, estar diante das pirâmides no Egito ou da Torre Eiffel, em Paris.
Na arte, a fronteira existente entre o espaço interior da obra e o mundo pode ser experimentado por diversas maneiras. Pensando nessa possibilidade, acredito ser essencial mencionar algumas fotografias do artista Ismael de Barros, um dos mais importantes escultores da Bahia, e que teve uma passagem pela fotografia.
Na reserva técnica da Escola de Belas Artes existe uma obra fotográfica de autoria de Barros, que foi professor da casa, doada pela família após seu falecimento. Fiquei muito admirada de encontrar os retratos, surpreendentes, feitos pelo artista em 1928, que propõe de forma inovadora a simulação tridimensional na fotografia.
O trabalho foi montado com três imagens, de modo que, ao fundo, uma fotografia compusesse uma base frontal e colada sobre ela, de forma sequencial, uma estrutura composta por uma série de tiras de papelão vertical com a mesma dimensão, proporcionando a junção de mais duas fotografias nos dois lados, respectivamente. O conjunto de imagens visto de frente apresenta quatro jovens elegantemente vestidos: dois rapazes ao fundo e duas moças no primeiro plano. Ao nos distanciarmos da imagem, percebemos que mais duas imagens aparecem sucessivamente: o perfil de um homem e o perfil de uma mulher. Suponho que os retratados eram integrantes da sua família.
É inegável a precisão do artista, não esquecendo que seu nome está vinculado, entre 1919 a 1929, aos seguintes estúdios fotográficos: Photographia Gonsalves, Photographia Nacional, Foto Jonas e ao fotógrafo Trajano Dias, onde provavelmente ele adquiriu expertise. Sem dúvidas, Ismael de Barros aliou o rigor técnico e a criatividade elaborando uma obra dinâmica e singular.
Experimentos contemporâneos
Os elementos externos que integram algumas obras com fotografias da artista Viga Gordilho nos convidam a experimentar o efeito plástico de suas lembranças. Fotografia pictórica é como ela denomina o uso da fotografia em seus trabalhos, o conteúdo de suas composições é marcado pela relação afetiva na escolha das imagens junto a partes de objetos referenciais a ela.
Viga relata um momento muito especial de como surgiu uma série de trabalhos feitos quando estava como professora visitante em Rosario, na Argentina, e ia viajar para a capital, mas devido ao mau tempo em Buenos Aires, o aeroporto foi fechado e um microônibus foi oferecido para a viagem.
“Foi um momento muito especial, uma das coisas mais lindas da minha vida, o dia estava nublado e com o celular tirei fotos maravilhosas. No percurso, o microônibus fez algumas paradas e eu aproveitava para fotografar e recolher pequenos galhinhos, folhas dos lugares e ia fazendo, também, minhas anotações no celular”, declara a artista.
O ato de relacionar a imagem da paisagem com partes da natureza local vai além, quando Viga cobre esses pedaços com ouro, buscando eternizar essa lembrança. Uma marca da artista, principalmente na sua produção atual, é a forma preciosa como ela trata a natureza envolvendo seus fragmentos com materiais nobres como ouro, prata, cobre, dentre outros.
No ano passado, Viga Gordilho celebrou 50 anos de carreira como artista e professora titular da Escola de Belas Artes, com uma exposição no Museu de Arte da Bahia. A mostra reuniu trabalhos com diversos materiais, fruto do seu caminho definido por uma grande parcela de liberdade e experimentação.
Em 2006, quando visitei uma exposição de fotografia em Berlim, na Amerika Haus, vi alguns trabalhos instigantes da artista inglesa Julie Cockburn. Achei fantásticos os retratos em preto e branco, cobertos com linhas coloridas em lugares estratégicos, parecendo máscaras, dando um ar enigmático aos rostos dos fotografados.
Julia Cockburn começou sua carreira como escultora e, posteriormente, buscou a simbiose entre a fotografia e o bordado. Ela aprendeu a bordar com a avó e desenvolveu, através de muitas pesquisas, uma técnica de bordar no papel que pode durar horas ou meses na finalização de uma peça. Ela se apropria de fotografias antigas compradas em feiras ou em sites na internet, retratos posados ou vistas. As intervenções da artista nas imagens produzem uma aparência escultural onde a natureza material da fotografia é destacada.
Já os trabalhos da fotógrafa baiana Marisa Vianna com o bordado também merecem destaque. No período de isolamento da pandemia, ela começou a se interessar pelo bordado e foi para a internet aprender os pontos. Posteriormente, na busca de escolher um debuxo, teve a ideia de usar as suas fotografias como tema dos bordados.
Ela desenvolveu uma técnica de impressão das imagens em tecido e, com muito requinte, seleciona os elementos que serão cobertos com a linha. Delicadamente, detalhes da paisagem como flores, folhas, o brilho da luz nas ondas ou os faróis dos carros ganham realce. As vistas de Salvador se transformam nas mãos e na visão de Marisa em pura poesia.
Salvador na Linha foi o título da exposição apresentada por ela entre agosto e novembro na Fundação Gregório de Mattos. Atualmente, é possível ver um trabalho da artista no café Latitude 13.
Na arte, as possibilidades de expressão em simular o espaço na fotografia ganha novas configurações quando se estabelece uma fusão entre elementos externos e internos da obra, estimulando, assim, a criatividade da imaginação do observador.
*Doutora em artes visuais e professora de Fotografia na Escola de Belas Artes (Ufba)
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