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OLHARES

O feminino reativo em Márcia Abreu

Confira a coluna Olhares, da Muito

Por Luiz Freire*

22/04/2024 - 10:00 h
Museu de Arte Moderna, MAM
Museu de Arte Moderna, MAM -

Coube às inconformadas do século 20 contraporem-se ao papel feminino delineado por Rousseau (1762), de que “seria por conta do seu corpo, mais especificamente do seu sexo anatômico, que as mulheres teriam em sua essência a passividade, a submissão ao desejo do homem; que seriam dóceis e capazes de suportar sofrimento. Além disso, deveriam abdicar dos seus próprios desejos, para que, assim, pudessem se dedicar unicamente à maternidade, ao marido e ao lar” (Vieira e Moreira, 2020). Um papel tornado modelo e ideal para a mulher do ocidente e gerador de traumas, violências de toda ordem, atormentadores da vida feminina em pleno século 21.

Dos protestos nas ruas, dos discursos, as mulheres transformaram seus fazeres artísticos em falas amplificadas que tratam de tudo aquilo que lhes oprimem. Márcia Amorim Abreu, sem se considerar militante do movimento feminista, se alinhou à posição reflexiva e crítica a partir do Mestrado em Artes Visuais da Escola de Belas Artes/UFBA, escola em que realizou o Bacharelado em Artes Plásticas (1984-1989) e foi tocada por algumas professoras como Sofia Olszewski, Sônia Rangel, Maria Helena Flexor, Maria Adair, Michael Walker, Celeste Wanner e pela oportunidade de realizar os trabalhos de decoração de rua para os carnavais de Salvador coordenado por Juarez Paraíso. Na EBA, foi contemporânea de artistas importantes como Gabriel Lopes Pontes, Paulo Pereira, Regina Costa e Vera Medrado.

Sua poética, fundada na problemática do universo feminino culturalmente construído e no seu questionamento, desenvolveu-se nas pesquisas que resultaram na dissertação e exposição do mestrado, Imagens reveladas, na Galeria da Aliança Francesa de Salvador. Nessa exposição, materializou suas ideias em instalações e objetos concebidos a partir de coisas pré-existentes, bibelôs, embalagens de perfumes, entre outras, manipulados, transformados e relacionados para transmitirem ideias. Márcia Abreu pertence a uma geração de artistas que valoriza a manualidade, de forma que sempre altera, reconfigura os objetos, construindo outros, extrapolando o uso ordinário.

Em Goya, Mênstruo e outras perversões, 2015, uma boneca constituída de um frasco vermelho com busto e cabeça, ligada por fios a suas crias, bonecos de frascos de esmalte vermelho com cabeças de coelho. As crias parecem manter as rédeas da mãe. Refere-se à menstruação e os incômodos que causa, alude à parição excessiva das mulheres de gerações mais antigas, que não conheciam os incômodos da menstruação porque pariam todo ano, “pariam como coelhos”; os coelhos têm gestação breve e parem de sete a nove crias por parto. Márcia lembrou do médico Elsimar Coutinho, que afirmava ser a menstruação dispensável.

As relações semânticas têm veladuras, implicam no conhecimento da cultura machista, de um tempo em que o controle da natalidade não era um valor e a analogia com a prole dos coelhos era corrente a ponto de virar exclamação popular: pare que nem coelho!. O enigma só se resolve com o texto, tornando o exercício mais desafiador. Goya?, porque a artista repete o que fazia o pintor espanhol, misturando gente com bicho.

Medusa consiste em uma gravura de uma mulher de costas com os cabelos enrolados em “bobes” e uma cicatriz abaixo do pescoço. Uma reflexão sobre as torturas a que as mulheres de determinadas épocas, de certos lugares, se submetem para ficarem belas, desejáveis. Outro enigma a decifrar para os jovens: bobes são rolos pequenos, médios e grandes, de plástico, vazados em quadrículas, que eram (e ainda são) enrolados nas mechas de cabelos longos, molhados e presos com misses, depois de secos, os efeitos variam conforme os sentidos do enrolamento, se para cima, ou para baixo, entre cachear, alisar ou dar volume à cabeleira.

A secagem natural dos cabelos em bobes é demorada, necessitando, às vezes, que se durma com a cabeça cheia de bobes, como a da gravura. Havia um secador elétrico que diminuía o tempo de secagem, mas impunha uma temperatura elevada na cabeça. Imaginem o desconforto desses processos. A isso estavam sujeitas a maioria das mulheres brasileiras de várias gerações, que, de tão costumeiro, não se davam conta da tortura a que se submetiam.

Essa tortura é indicada pela cicatriz. Nesse caminho, concebeu, inspirada em um livro que sua mãe possuía, o “livro de artista” Como tornar-se e conservar-se bela (2017), sanfonado com os ícones da tortura feminina: batom, tesourinha, pinça...

Depois de fazer parte de um grupo liderado pela artista Dora Araújo, e integrar a exposição Bordaduras contemporâneas, no Museu de Arte da Bahia, sob a direção de Pedro Arcanjo, principiou a fazer objetos com tecidos costurados em formatos de mãos e peitos de várias tonalidades e tamanhos diferentes, agrupados e pendurados. Alusão à multirracialidade das mulheres e o importante papel na sociedade, provendo alimento, cuidados, amor e muito trabalho.

Diz também da interracialidade de seus avós e a tentativa de sua avó branca branquear o marido, chamando-o de “cabo verde”, e de sua reação contrária, afirmando a negritude do avô. Reusa tecidos antigos, com barras bordadas ou rendadas. Tinge-os para obter as variegadas tonalidades de pele da paleta do povo brasileiro. Nos faz pensar sobre o termo “cor da pele”, costumeiramente usado para designar a pele branca, ignorando a diversidade, e nos últimos anos tem sido desmistificado. Esse trabalho tem alcançado uma boa aceitação no mercado de arte.

Ganhou a menção especial na 9ª Bienal do Recôncavo da Bahia (extinta), com o trabalho Amigas tepêmicas (2009), da série Mênstruo, com duas bonecas construídas representando amigas que menstruam no mesmo período quando andam juntas. Estarem de costas uma para a outra e terem os cabelos eriçados indicam o estado de nervos das duas.

Soteropolitana, nascida no Barbalho em 8 de julho de 1963, filha de pai engenheiro elétrico-mecânico e mãe professora de educação física, ela mora há 28 anos em um dos sobrados do Santo Antônio Além do Carmo, vive e é incomodada pela gentrificação rápida que transforma um bairro de caráter residencial em bairro boêmio, com bares, restaurantes, pousadas e muita aglomeração, tornando a vida dos moradores muito difícil. Preocupa-se bastante com o patrimônio cultural baiano, a ruína das edificações antigas e modernas, chegando a cursar a especialização em Arte e Patrimônio na Faculdade São Bento da Bahia, extinta.

Sua primeira exposição individual foi realizada em 1993 na capela do Museu de Arte Moderna da Bahia. A obra, que recebeu o “prêmio aquisição” no 2º Salão de Arte da Bahia, integra a exposição do Museu de Arte Contemporânea da Bahia – uma pintura abstrata, cujas formas já são inspiradas no corpo feminino. Expôs na Galeria Abaporu, de Ligia Aguiar.

Hoje integra o plantel da Galeria Ubuntu, mas a sobrevivência é conseguida com inúmeros trabalhos no campo artístico, com trabalhos educativos realizados no passado nas oficinas do MAM, em 16 anos, em ONGs como a Pracatum, criada por Carlinhos Brown no Candeal. Um trabalho da série “peitos” figurou na mostra Casa de mulheres, no MAM Bahia nos primeiros meses de 2024. São inúmeras as criações de Márcia Abreu, assim como o desejo de conhecê-las em profundidade aos que se aproximam minimamente.

* O conteúdo assinado e publicado na coluna Olhares não expressa, necessariamente, a opinião de A TARDE

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