ABRE ASPAS
"O racismo não é um problema só para os negros", diz Georgina Gonçalves
Para a professora da Ufba e UFRB, é preciso pensarmos também, além da garantia das cotas, na permanência do estudante na universidade
Por Bruna Castelo Branco
Com dez anos de vida completos em 2022, a Lei de Cotas, de acordo com o previsto, deverá ter seus efeitos revisados e discutidos por parlamentares em breve. E já temos projeto de lei para tudo quanto é lado: tem parlamentar que defende a exclusão do critério racial, a inclusão de outros grupos, como idosos, a extinção dessa política pública e tornar a lei permanente. Para a professora Georgina Gonçalves, da Universidade Federal da Bahia e Universidade Federal do Recôncavo, é preciso pensarmos também, além da garantia das cotas, na permanência do estudante na universidade. “Eu acho que a universidade brasileira precisa garantir dispositivos de permanência. Estou falando de bolsas, mas estou falando, também, de condições de acesso”. A pesquisadora, que tem experiência na área de serviço social, ações afirmativas, políticas sociais e vida universitária, também ressalta a necessidade do critério racial na Lei de Cotas. Afinal, explica ela, o racismo não é um problema de um único grupo social, mas de toda a sociedade. “As cotas, para além da reparação histórica, dizem respeito a um projeto de país, um país mais democrático, com maior justiça social, um país que se reconheça em uma instituição tão importante”.
A Lei de Cotas (Lei 12.711) está fazendo dez anos em 2022. E, quando sancionada, a lei já previa que, após dez anos de vigência, ocorreria uma revisão. Qual seria o objetivo dessa revisão?
Na verdade, está previsto, de fato, em lei, que seja revisada a efetividade das cotas, que se faça um balanço. É bom que a gente lembre que a própria efetivação dessa lei sempre foi motivo de controvérsias. Existem controvérsias, inclusive, em razão da sociedade racista que nós temos. Não dá para não considerar essa questão. Então, já temos pesquisadores se organizando, e o movimento negro também se mobilizando para possíveis ameaças que a lei possa vir a sofrer. E os resultados da lei são efetivos, sim, você tem uma reconfiguração da comunidade estudantil na universidade. A universidade tinha uma composição muito diferente do que ela tem hoje. Você tem uma universidade hoje que reflete muito mais a sociedade brasileira. E também há muitas outras questões que ainda estão a ser discutidas em relação à garantia de permanência.
Após dez anos, já dá para mensurar o impacto que a lei causou?
Essa é uma política que deu certo. Mas essa não é uma política que deixa de ser necessária para a sociedade, a gente ainda está muito longe disso. Nossos índices de expansão e democratização universitárias avançaram muito nos primeiros anos do século XXI, mas ainda estão sendo consolidados. As pesquisas apontam resultados muito satisfatórios em relação à política, ainda que não seja definitivo e ainda que haja muita coisa que a gente precisa fazer.
O que seria essa “muita coisa”?
Eu acho que a universidade brasileira precisa garantir dispositivos de permanência. Estou falando de bolsas, mas estou falando, também, de condições de acesso. Isso ficou bem claro com a pandemia, condições de acesso à tecnologia da informação, à rede, à internet, de garantia de condições materiais. E estou falando de desenhos formativos, de discussões internas na universidade que possam garantir a permanência e que façam dessa instituição uma instituição democrática.
Com a pandemia, você já notou alguma evasão de estudantes justamente por causa da falta de acesso à uma internet ou dispositivos eletrônicos de qualidade?
Nós ainda não temos números. Na verdade, só estamos voltando agora. Mas, a pandemia, evidentemente, não é democrática como a princípio parece. A pandemia atinge de maneira diferente mulheres, mulheres negras, homens, trabalhadores, negros… e ela atinge de maneira diferente os estudantes, os estudantes pobres que não têm acesso. Eu acho que a pandemia afetou, sim, ainda que não possa lhe dar números em relação a isso. Por mais que se fizessem esforços no sentido de políticas, é importante também situar que as universidades públicas sofrem ataques importantes em relação a constrangimentos financeiros, em relação à sua autonomia, e isso impacta também em políticas de permanência.
Uma vez, conversando com um vendedor ambulante que trabalhava na Ufba há anos, ele comentou que, depois das cotas, a universidade mudou visivelmente, o perfil dos estudantes mudou. Na sua experiência como professora, como percebe essas transformações em sala de aula?
Eu vou lhe dar um dado: no final do século 20, a escolaridade dos negros brasileiros girava em torno de 6,1 anos de estudo. Nessa mesma faixa etária, brancos estudavam em média 8,4 anos. Um pesquisador importante falava de recorte racial na educação básica ao longo dos anos 1990. Então, nos anos 1990, em 1999, 11,5% dos jovens negros de 15 a 25 anos, ou seja, jovens que podiam estar na universidade, eram analfabetos. Nesse mesmo período, 98% dos negros não frequentava o ensino superior. Em 2018, a escolarização de pessoas negras de 18 a 24 anos, independentemente do nível educacional, foi de 32%, sendo que 25% desses jovens frequentavam o Ensino Superior. Em 2013, era 15%. A gente avançou, mas ainda tem muita coisa para fazer. Se você faz um recorte dessa situação com as dificuldades sociais que o país vem enfrentando, com a crise social, isso faz com que confirmemos a necessidade de dispositivos outros. Atualmente – os números variam de um lugar para o outro – nós atingimos de 49% a 52% a presença de negros na universidade. E, é claro, isso impacta a universidade. E quero pontuar uma coisa: aumentou a população de negros na universidade, mas não diminuiu necessariamente a população de brancos. O que aumentamos foram as vagas. A gente expande as vagas e cria um acesso que muda a composição racial do espaço. Hoje, temos 60 e poucas universidades federais. Então, é verdade, o vendedor está correto em falar que a composição da universidade mudou, porque é visível isso. E isso vai exigir que a universidade seja outro espaço, ela precisa evoluir junto com as políticas.
E com essas ameaças de cortes de recursos para as universidades, o que pensa que pode acontecer? Podemos ter um retrocesso em relação à democratização da universidade pública?
Temos um esforço da comunidade universitária em ter esses impactos diminuídos. Você viu, por exemplo, na pandemia, o quanto as universidades se mobilizaram no sentido de fazer ações efetivas na área de pesquisa, na relação com a sociedade, na prestação de serviço para a sociedade em relação à pandemia. Mas, é verdade que os cortes financeiros ou mesmo as interferências na autonomia universitária impactam e, certamente, terão uma repercussão que notaremos lá na frente. Repercussões tanto do ponto de vista de evasão, de políticas que você deixou de efetivar para garantir a permanência, como, certamente, repercussão em pesquisa, na formação do ensino e também na formação de pesquisa e na extensão. Os impactos existem, sim.
Há algumas polêmicas em alguns pontos na Lei de Cotas, e uma delas é em relação aos Colégios Militares. Muita gente acredita que, por as escolas serem consideradas de qualidade, os estudantes não deveriam ter direito à ação afirmativa. Qual é a sua visão sobre isso?
Elas são públicas. Na verdade, a Lei de Cotas no Brasil tem um recorte étnico, racial, mas ela tem um recorte social. Então, é garantia para as escolas públicas, para estudantes oriundos de escolas públicas. Sendo as escolas militares escolas públicas, eu não vejo porque essa retirada. Do mesmo jeito, também temos os Institutos Federais, que são excelentes escolas, importantíssimas no sistema de educação básica. E há também outras escolas públicas que são muito boas. Acho que temos muito ainda que avançar na educação do Brasil, mas nós temos muito boas escolas públicas. Nós temos muita dificuldade com educação, mas temos boas escolas.
Ainda hoje, entre os deputados e até parte da população, ainda há uma controvérsia em relação ao critério racial das ações afirmativas. A proposta do deputado Dr. Jaziel (PL 5303/2019), por exemplo, defende a inclusão apenas de pessoas com baixa renda. Será que essas discussões desse tipo vão para a frente?
A conquista das cotas na universidade não é uma conquista parlamentar, é uma conquista do movimento social. Eu confio muito na capacidade de mobilização que nós temos em defesa dessa questão, de uma política efetiva de garantia de direitos para a população negra, para os jovens negros, ou para a população brasileira de um modo geral. Precisamos de uma universidade mais democrática, o Brasil precisa de uma universidade que reflita a sociedade brasileira. Essa não é uma questão em relação a negros, as cotas não dizem respeito somente aos negros. As cotas, para além da reparação histórica, dizem respeito a um projeto de país, um país mais democrático, com maior justiça social, um país que se reconheça em uma instituição tão importante. A universidade brasileira reflete sobre a sociedade na qual ela está situada. A universidade brasileira deve refletir a sociedade brasileira, no sentido de que ela possa, como instituição, contribuir para um projeto de futuro. Portanto, é um projeto que está em disputa? É. Nós estamos em um momento no Brasil absolutamente extremado, e o racismo não é uma questão qualquer. O fato da sociedade brasileira ser racista, não significa que os negros não se mobilizem e que outros setores não venham, inclusive, se mobilizando para combater essa questão. Portanto, quando você me pergunta se há um confronto em relação a isso, há, evidentemente. Mas, os setores dos movimentos sociais, em especial o movimento negro, tem dado provas de competência e capacidade para enfrentar isso, se mobilizar e sair vitorioso.
Qual é a importância de se manter o critério racial?
Eu penso que a manutenção do critério racial é um reconhecimento de que esse setor da sociedade, que os negros da sociedade brasileira vivem em uma condição de desvantagem em relação a outras pessoas. É preciso que a gente admita isso. A sociedade brasileira precisa enfrentar essa questão. O racismo existe, e o racismo não é um problema só para os negros, o racismo é um problema da sociedade brasileira. E todo mecanismo, todo dispositivo que o Estado possa prover no sentido de enfrentamento dessa questão, são dispositivos importantes. A Lei de Cotas é um dispositivo fundamental. Enfrentar essa questão é fundamental.
Há também uma questão que gera bastante conflito, que são as Comissões de Heteroidentificação. Você pode falar um pouquinho sobre como funcionam essas comissões? Muita gente diz que, já que fazemos autodeclaração, não teria como uma comissão avaliar a raça de alguém.
As comissões geralmente funcionam a partir de uma resolução interna da universidade. São criadas resoluções internas e elas funcionam com membros da comunidade universitária e membros da comunidade em geral que, juntos, compõem a Comissão de Heteroidentificação. Ela é resultado também de uma série de situações de burla em relação às ações afirmativas. Elas são um dispositivo a mais do processo seletivo, para fazer valer o direito e a garantia daqueles que querem ingressar na instituição. Ela é um dispositivo garantidor da política e precisa ser entendida assim.
Já existiram perfis na internet que denunciavam possíveis fraudes na autodeclaração também. Por exemplo, houve denúncias sobre cursos universitários muito concorridos, em que pessoas socialmente aceitas como brancas entraram como pardas. O que pode ser feito para garantir que as cotas sejam destinadas aos grupos realmente prioritários?
Esse é o papel da comissão. Por isso que a comissão precisa ser vista como um instrumento garantidor de direito. Esse é o papel da comissão, fazer com que sejam garantidos os direitos, que as cotas na universidade sejam de fato destinadas aos grupos a quem se destinam.
A deputada Maria do Rosário é autora do Projeto de Lei que estipula que a reserva de vagas para grupos prioritários seja permanente (PL 5384/2020), sem data para acabar. Qual a sua opinião sobre isso?
Acho que pelo tamanho das dificuldades em relação à questão étnico-racial no país, eu penso que 10 anos é muito pouco. É verdade que a gente precisa, de novo, garantir cotas, e nós precisamos garantir outros mecanismos que assegurem, que reparem e que reconheçam o direito desses grupos. Pela própria natureza do que é a política de ações afirmativas, eu entendo que, como eu lhe disse, 10 anos é pouco para avaliar, ainda que eu ache que precisa mesmo avaliar. A questão não é avaliar, é a revogação da lei. Toda política pública, toda política social, deve ser avaliada, o que ela não pode é ser revogada. É um princípio básico do Estado fazer com que a sua população tenha seus direitos garantidos.
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