MUITO
Os anos 1970 na Bahia: uma década para nunca esquecer
Por Gilson Jorge

Durante uma viagem a Goa, na Índia, em 1977, a fotógrafa e editora Arlete Soares e três amigas conversam em inglês com duas canadenses. Antes de revelarem sua nacionalidade, as brasileiras falam sobre Machu Picchu e São Francisco, assim como do local em que estão. Até que uma das estrangeiras se anima a dar uma dica de amiga: elas precisam conhecer Arembepe, no Brasil.
A internacionalização da Aldeia Hippie e do Porto da Barra durante a década de 1970 coincide com uma série de fatores que tornaram a Bahia um lugar único. Se Arembepe atrai celebridades como Jack Nicholson, Janis Joplin, Mick Jagger e jovens em busca de uma vida menos consumista e mais solidária, a capital baiana ferve com uma impressionante produção artística, a popularização do Carnaval de rua, as muitas e espontâneas festas de largo e a criação do Ilê Aiyê, em 1974, como primeiro bloco em que negros podiam desfilar. Em plena ditadura militar, mulheres, negros, gays e vegetarianos começaram a meter o cotovelo e ir abrindo caminho, como diz Caetano Veloso na música Frevo Novo (1977).
Enquanto jovens de classe média-alta saíam de casa para morar em comunidades mais pobres, como Alto da Sereia, Boca do Rio e Pituaçu, deixavam o cabelo crescer e se afastavam do padrão de vida estabelecido pelos pais, mulheres deixaram crescer pelos nas pernas e axilas, gays e lésbicas intensificaram a militância pelos seus direitos e os negros enfrentaram a polícia pelo direito a frequentar os mesmos locais que os brancos.
“Foi uma década efervescente. De muita censura, mas também de muita criação”, sintetiza o editor e designer Eneas Guerra, da Editora Solisluna, que em 1976 fez a parte gráfica da primeira edição do Boca de Inferno, jornal alternativo que teve como colaborador o marqueteiro João Santana, conhecido como Patinhas. O Boca fez matérias críticas ao regime militar e também denunciou as más condições de trabalho na indústria fumageira baiana, até ser fechado pela Polícia Federal na terceira edição.
A criatividade mencionada por Guerra esteve presente no teatro baiano da época. Sob a direção de José Possi Neto, entre 1972 e 1974, a então chamada Escola de Música e Artes Cênicas da Ufba produziu espetáculos que ganharam projeção nacional, como a montagem de A casa de Bernarda Alba, texto de Federico Garcia Lorca que marcou a estreia de Possi como diretor teatral.
Nesse período, despontaram no teatro baiano nomes como Márcio Meirelles, Luiz Marfuz, Fernando Guerreiro e Paulo Dourado. Além da vivacidade cênica, artistas se engajaram na comunicação política direta com a população. “Tínhamos essa militância de informar às pessoas o que estava acontecendo”, pontua a professora e diretora teatral Hebe Alves, que visitava com colegas bairros periféricos de Salvador para conversar com os moradores.
Era um tempo de intensa produção no circuito que incluía o Teatro Castro Alves, o Teatro Vila Velha e o Teatro Martim Gonçalves. O Icba sedia a Jornada de Curta-metragem, embrião da Jornada Internacional de Cinema da Bahia. No meio da década, a abertura de um restaurante francês na Avenida Cerqueira Lima, no Garcia, atraía parte desse público e não demora até o logradouro ser conhecido como Beco dos Artistas. “Foi ali que vi pela primeira vez Marquinhos Rebu, primeiro artista trans da Bahia a fazer sucesso”, lembra a coreógrafa Carmen Paternostro. Marquinhos mudou-se para o Rio de Janeiro e participou, em 1974, do filme A rainha diaba, que tinha no elenco Milton Gonçalves e Odete Lara.
Depois de dois anos e meio no exílio, Caetano Veloso e Gilberto Gil desembarcam em Salvador no dia 14 de janeiro de 1972, em pleno Verão do Desbunde. Quatro anos mais tarde, lançariam com Gal Costa e Maria Bethânia a turnê Doces Bárbaros, em comemoração aos 10 anos de carreira, assumindo uma estética hippie.
No Rio de Janeiro, os Novos Baianos Baby Consuelo, Pepeu Gomes, Moraes Moreira, Galvão, Paulinho Boca de Cantor vivem em um sítio onde o chamado “saco do dinheiro” armazena os fundos coletivos e, à medida das necessidades, cada um retira uma quantidade de dinheiro. O protagonismo nacional dos artistas baianos leva o Pasquim a cunhar a expressão pejorativa Baiunos, misto de baianos e hunos, tribo nômade do século IV.
Em Salvador, o Porto da Barra se torna ainda mais estrela. Artistas e celebridades vêm constantemente à cidade para um banho na praia, que, na opinião do agente cultural José Virgílio Leal de Figueiredo, sempre foi melhor que Ipanema.
“Os cariocas gostam de tirar onda. Queriam desmoralizar dois ícones, mas não colou”, diz Zé Virgílio, amigo de Caetano e Gil, que esteve no histórico show Barra 69, a despedida para o exílio, e foi esperá-los no aeroporto em 1972.
A Barra era, então, um local tipicamente de classe média-alta, com lojas de grife e intensa vida noturna. “O Porto era onde tudo começava, depois as pessoas iam para Pituaçu, Praia dos Artistas”, diz Sérgio Siqueira, coautor do livro Anos 70 Bahia. Dono do restaurante mais bombado da época, o Berro d’Água, Charles Pereira uma vez foi retirado da areia por um funcionário seu. Em seu estabelecimento, Vinícius de Moraes, Tom Jobim e outros pesos pesados da música aguardavam para comer o famoso filé au poivre. Certa vez, o ator Robert de Niro foi levado ao restaurante, no dia de seu aniversário, pelo então diretor do MAM, Heitor Reis.
Com tantos clientes famosos, o dono instruiu os funcionários a tratá-los como pessoas normais, que esperariam por uma mesa, se preciso, e a jamais pedir autógrafo ou tocar músicas suas, em caso de cantores. A regra foi quebrada pelo próprio dono, que pediu autógrafo a Mercedes Sosa e tocou suas músicas. “Não me contive”, diz Pereira, que vai reabrir o Berro d’água no dia 6 de agosto.
Para o americano Douglas Adair, o Porto da Barra era um local de encontro, muito parecido com São Francisco e outras partes do mundo. “As pessoas se reuniam para criar uma nova era de paz e liberdade”, diz Adair, que promove em seu bar, o Hot Doug’s, no Porto, de 16 a 18 de agosto, o festival 1969 – 50 anos depois. Um tributo à música dos anos 1960. De Woodstock ao Porto da Barra.
Beleza negra
Em um momento em que apenas brancos brincavam dentro das cordas e os negros só eram aceitos como cordeiros, Antônio Carlos dos Santos, o Vovô do Ilê, então com 20 anos, desceu o Curuzu no Carnaval de 1974 acompanhado de umas 100 pessoas negras que levavam cartazes exaltando a beleza negra e outras frases importadas do movimento negro dos Estados Unidos.
Era a resposta ao fato de que jovens negros tinham suas fichas de inscrição rejeitadas pelas agremiações carnavalescas. Esperavam-se pelo menos 500 pessoas, mas o medo da repressão fez a maioria recuar.
Qualquer menção a direitos humanos soava como coisa de comunista, e, para diminuir o risco de confronto com a polícia, Vovô foi convencido a abrir mão do nome que havia decidido para o bloco, Poder Negro. Depois de uma consulta a um pesquisador belga amigo, chegou-se a Ilê Aiyê, que em iorubá significa mundo negro.
A manutenção do nome em outro idioma foi, também, uma estratégia para não revelar um nome menos combativo. “Minha mãe disse que ia participar porque apoiava o movimento, mas depois eu soube que seu pensamento era que, se eu fosse preso, ela iria junto”. Vovô considera que a decisão de botar o bloco na rua e confrontar o regime foi, ao mesmo tempo, corajosa e inconsequente, porque havia o risco real de prisão ou desaparecimento dos manifestantes. “O bloco é do Curuzu, mas a gente fazia as reuniões na Acbeu e no Icba por considerar que estávamos a salvo da polícia”, diz Vovô.
A crença de que o Icba era um porto seguro contra a repressão, por ser território neutro, era quase unanimidade entre ativistas e artistas. Durante a cerimônia em que foi agraciado com a Medalha de Cidadão de Honra da Prefeitura de Salvador, Roland Schaffner recebeu um abraço emocionado de um antigo militante do Partido Comunista do Brasil pela suposta proteção oferecida nas dependências do Icba. Foi nesse momento que ele se deu conta de que partidos e organizações de esquerda usavam o instituto como abrigo.
“Eu via as pessoas reunidas, mas não saía perguntando quem era quem”, explica Schaffner, que, desde 1974, teve que comparecer semanalmente, durante quatro anos, à Polícia Federal para uma entrevista com policiais. Em sua primeira gestão, a palestra do crítico de cinema Jean-Claude Bernadet teve que ser interrompida porque a polícia estava no encalço do palestrante. Schaffner deu um jeito de conduzir o convidado ao carro do instituto para ser levado ao aeroporto.
Em outro episódio, o diretor do Icba voltava da praia para seu apartamento na Rua Banco dos Ingleses, com três artistas argentinos que hospedava, quando avistou policiais em frente ao prédio.
Vítimas de perseguição política em seu país, os visitantes estavam sendo procurados pela Interpol. Schaffner inventou que os passaportes deles estavam guardados no cofre do contador e pediu que a polícia voltasse na segunda-feira. Com toda a perseguição policial, Schaffner nunca aceitou cercear a liberdade criativa dos artistas. “Eu não participei dos protestos na década de 60 para me dobrar a governos autoritários”.
Depois de uma conversa ríspida com o cônsul-geral da Alemanha em Recife, ele recebeu um telegrama da Alemanha em setembro de 1978 determinando sua imediata remoção para Calcutá, na Índia. Schaffner, que retornaria em 1992 para uma segunda gestão, orgulha-se de ter aberto espaço para artistas negros no Icba desde a década de 70, antes de o tema virar uma agenda para a militância negra.
Zen
Enquanto o Garcia e o Canela atraíam a classe artística, Itapuã era famoso pela casa de Vinícius de Moraes, e o Curuzu, sede do Ilê Aiyê, os Barris se transformaram na meca do vegetarianismo soteropolitano em 1974, com a inauguração do Grão de Arroz, restaurante macrobiótico idealizado por Luiz Antônio Mota Cunha, ex-taxista e estudante de jornalismo. “Ele leu Macrobiótica Zen (de Georges Ohsawa) e viu que era o futuro”, afirma Tainá Cunha, filha do fundador que administra as lojas da Pituba, Vilas do Atlântico e Corredor da Vitória. A matriz nos Barris fechou em 2015.
A macrobiótica era uma ponta do que pretendiam os jovens: mudar o mundo. No início da década, muitos saíram de grandes e médias cidades brasileiras de carona ou caminhando em direção a Arembepe. A prefeitura de Camaçari, a propósito, encomendou recentemente ao arquiteto Gringo Cardia um projeto paisagístico para o Museu Vivo da Aldeia Hippie. Zé Virgílio lembra: “Eu fui oito vezes à Aldeia Hippie. Estávamos em busca de trocas, de sentimentos, de liberdade. Mesmo estando sob a ditadura, nos considerávamos livres”.
A editora Arlete Soares, que passou os dois primeiros anos da década na Bahia e depois seguiu em viagem à Europa e depois à Índia, diz: “O nosso sonho era a espiritualização, as experiências lisérgicas”.
Ela lembra a emoção que era, no exterior, colocar na vitrola um disco de vinil e conduzir suavemente com dois dedos a agulha até a faixa desejada: “Cada letra que saía de Chico, de Caetano era um desbunde. Queríamos aprender logo a cantar e a tocar. Os tempos são outros e, com a violência atual, não é mais possível que quatro amigas cruzem o Afeganistão numa Kombi em direção à Índia. Era uma década libertária. Pensávamos que iríamos mudar o mundo e estamos involuindo”.
Arlete é feliz por ter vivido os anos 70. “Fazíamos psicanálise e estamos todos bem. A vida é um vaivém, como as ondas, como uma roda-gigante. Outros tempos felizes virão”.
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