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Paladar: conheça opções de gastronomia latina em Salvador
Por Gilson Jorge

Uma adolescente em uniforme de escola pública se distancia de duas colegas, para em frente a um imóvel na Barra onde flamula uma bandeira do Peru e pergunta se é ali que vende yakisoba. Depois de ouvir que não, ela retoma o passo e se reúne às amigas que ficaram esperando por ela. Vira e mexe, essa pergunta acontece no restaurante O Peruano desde a sua abertura, em dezembro de 2021. Logo nos primeiros dias, um jovem apareceu em busca de yakisoba, que ele entendeu que se vendia ali, mas só tinha R$ 15. A proprietária do negócio, a peruana Giovana Gallardo, apresentou ao rapaz o arroz de chaufa, prato típico de seu país, e lhe cobrou o valor que ele podia pagar.
Giovana, que trocou o Rio de Janeiro por Salvador depois de ser chamada para trabalhar no Rincón Latino, no Dois de Julho, deixou o emprego durante a pandemia e, no ano passado, começou a organizar junto com um amigo conterrâneo um boteco simples que vendesse ceviche e outras iguarias peruanas. Uma culinária que é apreciada no mundo inteiro. Dos quatro melhores restaurantes da América Latina, apenas o terceiro não é do Peru. "Recebemos muitos turistas por causa da fama dos pratos de meu país", conta Giovana.
Mas a empreendedora transandina não conta apenas com o público estrangeiro e espera que o boca a boca traga novos clientes locais. De preferência, que não busquem o yakissoba, mas a culinária de seu país.
A sedução dos sabores hispano-americanos em Salvador começou há 40 anos, com o pioneiro La Kantuta, especializado em saltenhas bolivianas. Depois de uma onda, ou ola, como se diz em espanhol, de restaurantes mexicanos em diferentes bairros por aqui e do já mencionado Rincón Latino, a cidade do dendê ganha novas opções para saborear os temperos de países vizinhos. Mas o intercâmbio tem lá suas peculiaridades. Como o uso da pimenta.
Se os brasileiros de outros estados passam mal quando a baiana exagera no molho no acarajé, os baianos também reclamam da picância de alguns pratos estrangeiros. Chefs e cozinheiros desses restaurantes muitas vezes precisam retirar da receita a pimenta que, originalmente, conta com o ardor como ingrediente essencial. A solução é fornecer um copinho de pimenta à parte.
O La Kantuta comemora 40 anos em agosto deste ano, mês em que se celebra a Independência da Bolívia. O restaurante surgiu por acaso e tem uma história de sucesso não planejado. Seu fundador, o engenheiro boliviano Eduardo Ampuero migrou para o Brasil na década de 1970, no marco de um convênio bilateral que não permitia aos imigrantes escolherem o seu destino.
No consulado geral boliviano, no Rio de Janeiro, ele foi informado de que viria para Salvador, onde conseguiu um trabalho na Coelba. Construiu uma casa no Caminho das Árvores quando quase não havia imóveis na área e começou a fazer saltenhas bolivianas em casa, para oferecer aos colegas de trabalho que o visitavam. Encorajado pelos amigos, montou na garagem de casa uma lanchonete.
A saltenha boliviana, que é bem diferente do salgado que se encontra nas lanchonetes da cidade, teve origem na cidade argentina de Salta, região fronteiriça, e tornou-se um patrimônio boliviano comparável ao nosso acarajé.
“As pessoas comem na rua, cada boliviano come uma ou duas pela manhã”, conta o empresário Mauro Ampuero, filho do fundador, que hoje comanda uma equipe de oito funcionários e mantém dois motoclistas para o delivery.
A saltenha é uma derivação de uma comida de rua muito popular em outros países: a empanada, que se assemelha ao pastel de forno brasileiro, mas reúne diferentes receitas e modos de fazer, a depender do país.
Chile, Argentina, Uruguai, Paraguai e também o Peru desenvolveram variações de uma receita que chegou com os colonizadores espanhóis, que por sua vez herdaram dos árabes a cultura de acomodar carne dentro de uma massa de trigo.
Se, em Buenos Aires, pede-se uma empanada de carne, suave ou picante, em Santiago do Chile o recheio de carne moída embebida em um suculento caldo de cebola é chamado de pino. Em todos esses lugares, a empanada é lanche barato e corriqueiro, que se encontra em cada esquina. E não, não é algo que se come com garfo e faca nesses lugares.

“Recentemente, fiz empanadas de avestruz e dei para uma amiga provar. Ela me pediu talheres e quase que eu a boto para fora do restaurante”, brinca o chef argentino Gonzalo Rojas, que há dois meses comanda o endereço soteropolitano do Andina Cozinha Latina ao lado da mulher, a arquiteta Irene Lapuente. O restaurante que funcionou durante seis anos em Morro de São Paulo, ocupa agora um elegante casarão na Rua Barão de Loreto, na Graça.
Além das fronteiras
Como sugere o nome do restaurante, desde a decoração até o cardápio, o casal optou por ir além das fronteiras de seu país de origem e misturar elementos de toda região. “Escolhi defender o que é nosso. Quando estudei gastronomia na Argentina, fiquei chateado porque a gente aprendia pratos franceses, italianos, mas nada daqui”, declara Gonzalo, nascido na província de San Juan, que tem a Cordilheira dos Andes como limite e fronteira com o Chile.
E a integração latino-americana, nesse caso, está diretamente ligada à comida. ”Eu agora estou trabalhando em um prato que tem ingredientes do Equador, do México e do Brasil”, conta o chef.
Se o restaurante marca sua identidade latina, nada mais justo do que jogar com o elemento surpresa. O único item fixo do cardápio é o polvo na chapa com molho chimichurri (aquele que os argentinos usam no churrasco), batata quebrada e aïoli, um intruso molho francês/catalão.
“Todo dia eu vou às mesas com o cardápio e mostro o que está sendo servido”, explica Irene, apontando para um quadro de giz com letras que deveriam ser copiadas pelos médicos. Gonzalo, que criou um prato apenas com ingredientes populares na Bahia, se diz surpreso particularmente com um item adorado pelos baianos. “Nunca vi um lugar do mundo em que se coma tanto ovo”.
Do Peru, o chef argentino aproveita a herança culinária nikkei (palavra que define japoneses que moram em outro país, nesse caso o Peru). Uma aproximação que aconteceu ainda na Argentina, país que tem grandes colônias peruana, boliviana e paraguaia). “Comecei a conviver com chefs peruanos muito cedo. Agora virou moda ser chefe de cozinha, mas então não havia o glamour de hoje e quem trabalhava na cozinha era a classe operária”, pontua.
Uma das propostas do casal é trabalhar no restaurante para desestigmatizar a brasileiríssima cachaça. “Há cachaças excelentes, em Minas, e aqui no Nordeste”.
A casa também tem organizado esporadicamente eventos de degustação de vinhos orgânicos, com marcas produzidas no Rio Grande do Sul. Uma degustação está prevista para o mês de maio, ainda sem data definida. E claro que no cardápio de bebidas está o Fernet branca, um destilado italiano que virou símbolo argentino, especialmente quando se mistura a bebida com Coca-cola.
Imersão
Quando decidiu montar a Pancho Taqueria, um restaurante mexicano com o sócio Igor Farias, o empresário catarinense Luiz Venturelli fez uma imersão na cultura do país. Queria entender as diferenças entre o que é comida típica do México, o que é TexMex (a culinária feita por mexicanos no Texas) e entender a cultura local. Viajou a feiras na capital do país, comprou chapéus típicos, réplicas de armas usadas durante a Revolução Mexicana e artigos em referência a líderes nacionais, como Emiliano Zapata. Não à toa, o ambiente onde são feitos os drinques é chamada de Sala da Revolução.
Luiz viajou por cidades que mantêm seu legado pré-hispânico e considera que entender a cultura do país ajuda a fazer uma comida digna de ser chamada de mexicana. “A pimenta é cultuada no México. Lá, tudo tem pimenta. É pimenta com força. Nossa referência é a pimenta da baiana, que arde mesmo. Mas lá tem pimenta em tudo, doces, pirulitos. As crianças comem pimenta”, explica.
Essa explicação é necessária para mudanças no cardápio que, às vezes, acontecem a pedido dos clientes soteropolitanos. Em alguns casos, os pratos e drinques se adaptam, mas em outros não têm jeito. Luiz e o chef Rodrigo Souto criaram um drinque à base de pimenta chamado Picantica, em referência à picância.
Frida Kahlo
Luiz diz que a popularidade dos restaurantes mexicanos no Brasil tem mais a ver com a temática do que com a culinária. Ou seja, os sombreiros, os mariachi e as “cores de Frida Kahlo” fazem sucesso, mas não garantem que os clientes vão consumir a comida mexicana tal qual se come por lá: “ No Brasil, o que se faz são leituras”.
Entre as adaptações feitas no restaurante, Rodrigo cita a fabricação própria do iogurte que serve de base para o molho azedo utilizado em alguns pratos. O tempo total de produção do molho é de 48 horas. ”É um cuidado a mais que temos”, diz Rodrigo. O carro-chefe da casa é o Tacos de Acapulco, receita própria da comida mais popular do México. E, claro, as chamadas comidas TexMex, como quesadillas e burritos.
Outra inovação da casa é o Aborígene, um gigantesco drinque à base de abacate, criado pela bartender Evelyn Ferreira, contratada no momento em que a casa ser preparava para mudar a sua carta de drinques. “Quando ela me disse que queria fazer um drinque com abacate, eu dei um pulo para trás. Era um grande desafio. Estudo a gastronomia mexicana e nunca ouvi falar de um drinque com abacate”, diz Luiz.
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