OLHARES
Para olhar nos olhos, construí um barco: Instituto Práticas Desobedientes
Priscila Miraz*
Por Priscila Miraz*
Existem muitas razões para afirmamos que vivemos uma era de catástrofes e, portanto, para recusarmos esse curso catastrófico do mundo. Do aprofundamento das desigualdades sociais à degradação progressiva do meio ambiente, a violência (especialmente as exercidas pelo Estado) contra a estruturação ética e política de uma democracia crítica nos e pelos corpos sociais é aguda.
Diante dessa realidade perversa, enervada pelo discurso neoliberal e meritocrático, desobedecer é uma declaração de humanidade. Se falamos em educação, ensino, formas de criação coletiva que partam de horizontalidades e que considerem a diversidade epistemológica que faz parte de processos de aprendizagem para além do ensino formal, falamos também de justiça social, e a desobediência é chave para que possamos ir além do estabelecido, reconhecido e aceito como conhecimento, para acessarmos possibilidades de enfrentamento para o estado de catástrofe a partir de outras centralidades.
No ensaio Educadoria afro-brasileira, o professor, curador e artista visual Claudinei Roberto da Silva, ressalta que o conhecimento é o resultado das circunstâncias que criamos para sua construção, e que essa construção acontece pela partilha de múltiplas experiências, porque só assim o conhecimento não é imposto, “mas nasce como resultado da permuta de saberes que caracteriza uma comunidade de aprendizes”.
Em 2019, em Cachoeira, no Centro de Artes, Humanidades e Letras da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, surgiu o Práticas Desobedientes, um programa multidisciplinar que iniciou como projeto de extensão voltado para jovens artistas, com a intenção de ampliar o repertório dos acadêmicos em formação, pautado na permuta de saberes situados no território do recôncavo baiano.
Já em 2020, as atividades do grupo se expandiram de forma independente para além da universidade, criando interlocuções com a cidade de Cachoeira a partir de propostas educativas. Agora, o Práticas Desobedientes se tornou uma organização sem fins lucrativos, o Instituto Práticas Desobedientes (IPD).
Durante todo o ano de 2024, as atividades do grupo se voltaram para o processo de institucionalização, que abarcou tanto uma minuciosa avaliação das produções realizadas durante os cinco anos de existência do grupo, quanto a prospecção de novos caminhos a serem trilhados para instigar o pensamento e a prática crítica e ética em arte contemporânea.
Segundo o curador independente, pesquisador e professor Tarcísio Almeida, fundador e diretor artístico do IPD, “a intersecção entre os espaços de aprendizagem coletiva (base das práticas sociais, históricas e culturais da experiência negra no Recôncavo Baiano) e o que, mais adiante, nomeamos como pedagogias libertárias, fez do Práticas Desobedientes mais do que um grupo de pesquisa associado a uma forma de trabalho multidisciplinar, mas uma organização que pensa a sua própria socialidade como forma de estudo, desejando articular estratégias e metodologias, por meio de processos de criação em arte, interessadas em liberação cognitiva, desobediência epistêmica e autoemancipação”.
Por ocasião do lançamento do IPD, foi divulgado o projeto audiovisual Para continuar, construí um barco, que pode ser assistido no canal do YouTube da instituição. O texto que se ouve, Quando precisei atravessar você, construí um barco (2021), é do artista associado e integrante do grupo permanente do IPD, Allan Da Silva, que consegue conectar de maneira profunda a trajetória e os desejos para as ações futuras da associação: “[…] Na fuga construí um barco. Para olhar nos olhos, construí um barco. […] Para retornar, construí um barco. Pego tudo que é meu, com o meu barco. Eu e meus irmãos de mesmo barco. Para permanecer vivo, construí um barco. Um braço estendido para cima e o outro para a frente, uma perna flexionada, mantenha os pés firmes”. Sem sentido único ou binário, lançado na convulsão do tempo que consegue sonhar um futuro coletivo porque sabe dos pés firmes na ancestralidade dos saberes que o formam e que compartilha no presente.
Ainda no âmbito do lançamento do IPD foi realizado em Cachoeira, nos dias 4 e 5 de dezembro de 2024, o Seminário Para continuar, construímos um barco, na Fundação Hansen Bahia, um encontro com os integrantes do grupo permanente do Práticas, momento em que foram apresentadas as linhas de atuação do Instituto: Línguas e linguagens, Epistemologias incomensuráveis, Liberdade Cognitiva, Saídas e Saúdes.
No segundo dia, aconteceu o lab/performance Voltando a desenhar com os cotovelos, que partia da pergunta: “Como nós, pessoas inseridas nas diversas categorias de opressão e subalternidade, como nós, experimentamos modos de liberação e liberdade cognitivas?”.
No momento do processo avaliativo das ações do Práticas, evidenciou-se o alcance que o trabalho junto aos jovens artistas já teve: desde 2019 já colaboraram com a formação de 30 estudantes-artistas através do programa de bolsas e do grupo permanente de pesquisa e criação, e mais de 2.500 estudantes e agentes culturais estiveram presentes nos programas públicos desenvolvidos.
Entre parcerias institucionais e atuações em ações, estão UFRB, África nas Artes, Instituto Goethe, Ipac e Iphan – Cachoeira, Fundação Hansen Bahia, Foundation for Arts Initiative, Instituto Teart, Diane Lima (BA – curadora e escritora); Castiel Vitorino Brasileiro (ES – artista e escritora); Ayrson Heráclito (BA – artista e professor); Rosana Paulino (SP – artista e professora); Helen Sebidi (África do Sul – artista); Kapela Paulo (Angola – artista), entre outros.
Com base na estruturação de metodologias educacionais que potencializem o desenvolvimento local, com ações de impacto direto na vida social e econômica, enfocando a autonomia de jovens artistas na gestão de sua produção, desde o atelier, às parcerias, exposições e mercado de circulação, o IPD tem a intenção de promover garantia de futuro para as novas gerações de estudantes e artistas.
Para 2025 e 2026, lançou propostas divididas em três frentes de atuação. O Fundo Elixir, programa de bolsas com ênfase no incentivo à pesquisa, produção artística, produção situada de conhecimentos, projetos coletivos e promoção individual, voltado para artistas(es), estudantes, agentes culturais e pesquisadoras(es) originárias, baseadas ou com ancestralidade vinculada ao recôncavo baiano.
Para 2025, o projeto vai contemplar as linhas de pesquisa e desenvolvimento de processos, pesquisas e projetos artísticos; projetos de formação e permanência; pesquisa e desenvolvimento de projetos científicos; diminuição de riscos e saúde mental. Os Programas de Formação, projetos concebidos para ampliar o repertório artístico e educacional, pensados para artistas, estudantes e agentes culturais do recôncavo da Bahia, como programas de educação financeira, residências artísticas, seminários, laboratórios de pesquisa, comissionamento de projetos, traduções, organizações editoriais e práticas expositivas. E o Grupo Permanente de Pesquisa e Formação, programa imersivo de estudos focados no desenvolvimento de projetos individuais/coletivos, partindo de epistemologias ligadas às práticas contracoloniais e a tradição radical negra.
Além de Tarcísio Almeida, fazem parte do Grupo Permanente a também fundadora e coordenadora geral Jamile Cazumbá, e os artistas Allan Da Silva, Dani De Iracema, Ema Ribeiro, George Teles, Kaick Rodrigues, Larissa Neres, Marcos Da Matta e Rafael Ramos.
Desobediências de pensamento e prática em arte contemporânea são fundamentais para o enfrentamento de tempos de catástrofes, já que, como afirma a historiadora da arte Maria Angélica Melendi, em seu livro Estratégias da arte em uma era de catástrofes, “nesse cenário de destroços, a arte parece ser um dos únicos lugares onde é possível interiorizar os conflitos e elaborá-los como experiência”. Que o Instituto Práticas Desobedientes tenha uma longa trajetória.
É possível acompanhar as atividades do IPD pelo site institutopraticasdesobedientes.org, Instagram(instagram.com/institutopraticasdesobedientes) e YouTube: @praticasdesobedientes
*O conteúdo assinado e publicado na coluna Olhares não expressa, necessariamente, a opinião de A TARDE
Compartilhe essa notícia com seus amigos
Cidadão Repórter
Contribua para o portal com vídeos, áudios e textos sobre o que está acontecendo em seu bairro
Siga nossas redes