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Perspectivas de valores feministas para combater desigualdades na perspectiva do pós-pandemia
Um dos caminhos para uma sociedade melhor é a busca pela igualdade e os feminismos defendem isso. Para a artista e professora da Ufba Nirlyn Seijas, é preciso, em primeiro lugar, que todos nos responsabilizemos pela história: “Mesmo que eu não seja racista, sou responsável pelo racismo estrutural, e temos um esforço coletivo de transformar as nossas escolas, nossas relações familiares, amorosas, de trabalho e com a natureza. Nós precisamos mudar a forma que enxergamos o mundo”.
De acordo com Nirlyn, os feminismos têm dado resposta para a possibilidade de transformação do mundo, não só para as mulheres: “Os valores feministas vão muito além das mulheres. Eles são urgentes porque tornam o mundo um lugar melhor para todos os humanos e não humanos, e principalmente se quisermos deixar um mundo melhor para as próximas gerações”, comenta.
Na pandemia, vivemos retrocessos absurdos na sociedade, mas muitas dessas perdas já estavam em curso há alguns anos, principalmente no que diz respeito às mulheres. O aumento da violência doméstica, por exemplo, é um deles. Em 2020, 24,4% das mulheres brasileiras – ou seja, 17 milhões – sofreram violência física, psicológica ou sexual. Pensar nesse número é ainda mais preocupante quando sabemos que muitas nem denunciam ou têm sequer coragem de tocar no assunto.
E o Brasil tratou a pandemia de modo diferente de outros países. Para a antropóloga Luana Malheiro, no pós-pandemia vamos ter de refazer o país. Para isso, será necessário reestruturar as políticas públicas, fortalecer as políticas de saúde, os movimentos feministas e os valores feministas: “E não é qualquer feminismo, porque o feminismo precisa ser antirracista. A questão racial nesse país é fundamental para pensar tudo. Vamos pensar em um feminismo popular que mobilize, que chame para a luta”.
A antropóloga ressalta que tais questões só vão ser pautadas a partir da mobilização. Luana considera a última semana como muito dolorosa, se referindo aos acontecimentos no Brasil, como o veto parcial do presidente Jair Bolsonaro ao projeto de lei que previa a distribuição gratuita de absorventes para a população em vulnerabilidade e a absolvição do homem que estuprou a influenciadora Mariana Ferrer. “O governo deixa bem claro: não me importo com mulheres”, analisa.
Isso também pode ser visto como um reflexo de uma sociedade que insiste que assuntos como a menstruação sejam vistos como tabus, quando deveria ser algo natural, o que reforça e aumenta as condições da pobreza menstrual.
Se há algum aspecto positivo desses eventos é a mobilização que eles criam. Após o veto do projeto de lei, a Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (Renfa), da qual Luana é fundadora, e muitos outros grupos fizeram ações de distribuição de absorventes em resposta ao governo federal.
Essa mobilização tem sido difícil de culminar nos espaços de poder da política. De acordo com o ranking do Fórum Econômico Mundial, divulgado neste ano, o Brasil ocupa o 122º lugar entre os 156 países no número de mulheres eleitas para o Congresso e em 120º em relação à participação em ministérios.
Mudança nas estruturas
Além da dificuldade de as mulheres chegarem aos espaços de decisão, há também a de permanecer, porque segundo a vereadora de Salvador, Maria Marighella, a política é um lugar violento.
“Temos duas grandes mulheres brilhantes fora do Brasil, vítimas de crime de ódio, a antropóloga Debora Diniz e a filósofa Marcia Tiburi, que podiam dar grandes contribuições para o país, mas que são ameaçadas e não se sentem seguras aqui. Todas nós somos vítimas de violência diária ou violência severa, como é o caso de Marielle, um feminicídio político, um crime de gênero e um crime político, que é um marco do nosso tempo. Ser mulher na política é enfrentar isso”.
Para a vereadora, o caminho é apostar em uma grande mudança nas estruturas de poder, para que possam incorporar sujeitos diversos da sociedade, porque ao entrarem na política as mulheres também têm o dever de torná-la mais acolhedora e mais confortável, pois acredita que quanto mais a política é um local hostil, menos pessoas vão querer ocupar esses espaços.
“Permanência, persistência e organização constante, não tem nenhuma fórmula mágica. O mundo da justiça social é o único caminho para o futuro. Onde há exploração não pode ser um lugar bom para todos”, diz Maria.
Na busca incessante por essa mudança, Nirlyn utiliza o artivismo na maioria dos seus trabalhos. Ela os classifica dessa forma porque eles se ocupam com questões para transformar o mundo.
De acordo com a artista e pesquisadora, o artivismo pode ser definido como uma prática feita por qualquer pessoa em que se usam ferramentas artísticas e ativismo para construir uma ideia ou uma materialidade e comunicar algo sobre transformação social.
Crise
Durante a pandemia, ficou muito evidente um conjunto de violências com as mulheres, como por exemplo a sobrecarga do trabalho. Maria Marighella reflete que uma das bases do capitalismo é fazer com que se produza mais e, para isso, precisamos acreditar que o trabalho de cuidados não é trabalho e que fazemos por amor. Assim, cuidamos da organização da casa, dos filhos, dos maridos, do cachorro, sem receber nada por isso, além de acumular com o trabalho externo – frequentemente, mal-remunerado.
Ela acredita que “a crise nos coloca em cheque e impõe posição, ninguém sai igual da crise”, já que vivemos um momento em que precisamos resolver as nossas questões e sair de cima do muro. “Ela nos convoca a tudo e tudo pode mudar”.
No futuro, a vereadora vê três movimentos fundamentais para a transformação: o movimento negro, feminista e a questão indígena. “Sinto que esses movimentos vão protagonizar a grande virada no século”.
Uma das questões mais urgentes para a sociedade brasileira – e não só para as mulheres – é a discussão sobre o aborto. Em pleno século 21, as mulheres ainda não têm total controle sobre o seu corpo e isso é evidente quando falamos no assunto. Já é mais que comprovado que o aborto é uma questão de saúde pública e, sendo assim, o papel do Estado deveria ser oferecer as condições necessárias para que os procedimentos fossem feitos de forma segura e digna.
“Eu, Elisabete Pereira, uma mulher negra, evangélica, acho que precisamos descriminalizar o aborto, porque quem sofre e morre com isso são as mulheres negras e periféricas”. Essa é a visão da representante do Movimento Social de Mulheres Evangélicas do Brasil (Mosmeb) na Bahia, que percebe que o número de mulheres que morrem após um aborto clandestino é um problema e, por isso, vai contra o pensamento de muitos outros evangélicos.
“Nos condomínios de luxo, as mulheres não engravidam na adolescência? Claro que engravidam, mas não vemos o filho nascer porque podem pagar caríssimo para fazer o aborto de forma segura com um médico”, afirma.
Desemprego
A situação econômica do país também pode ser um fator importante para avaliar a continuidade de uma gestação, já que muitas mulheres que engravidam e pensam no aborto como uma opção não têm como sustentar uma criança, sobretudo quando há mais de 14 milhões de pessoas desempregadas.
"Como faz para sustentar essa criança depois? Quem pariu Mateus que o balance? Não é para isso que existe o Estado. É preciso descriminalizar, porque ninguém acorda feliz ‘vou ali fazer um aborto’, é um processo de muita dor e sofrimento”, reflete Elisabete.
Mesmo quando o aborto não é considerado crime – nos casos de risco de vida para a mulher, casos de estupro ou de anencefalia do feto – há dificuldades para realizá-lo.
Foi o que aconteceu com uma criança de 10 anos que engravidou do seu tio, após inúmeros estupros. Na ocasião, evangélicos e a própria ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, tentaram evitar a interrupção daquela gestação.
“Isso tem sido feito numa política pública que não abraça as mulheres. Querer obrigar a mulher a ter um filho fruto de uma violência? Não podemos retroceder, temos que avançar”, diz Elisabete.
Para Luana Malheiro, “a política criminal não resolve e não acolhe, ela está organizada para punir as pessoas negras do país”.
De acordo com a antropóloga e pesquisadora, que vive atualmente no Uruguai, onde o aborto não é considerado um crime desde 2012, ao falar em descriminalização do aborto é preciso considerar um conjunto de políticas públicas que vai desde a mudança de cultura da sociedade à construção de uma rede de serviços.
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