MUITO
Praias de Salvador sofrem com poluição
Por Eron Rezende

Peninsular, turística e costeira, Salvador teve apenas duas praias 100% próprias para banho em 2016
Ao menos duas vezes por semana, o pescador Tião Bastista, 59, faz um percurso que também é o das águas. Sai de Sussuarana, onde corre o Rio Pituaçu. Segue pelo bairro da Boca do Rio, onde o Pituaçu se transforma em Rio das Pedras. E assiste, já na orla, o rio encontrar o mar. “Era para ser bonito”, diz Tião. “Não fosse essa ponta de tristeza”. A água que chega ao Atlântico é fétida e escura. Para um pescador de três décadas de profissão, sinaliza a redução dos peixes. Para uma metrópole que se encontra cercada pelo mar, como Salvador, é um sinal vermelho: seus rios, hoje canais poluídos que pontilham a vida urbana, vêm também deteriorando, ano após ano, suas praias.
Em levantamento feito por Muito, com base nos dados do Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia (Inema), apenas duas praias apareceram 100% próprias para banho em 2016: Aleluia e Flamengo, ambas no litoral norte, distantes do núcleo urbano da cidade. Há três anos, as praias totalmente balneáveis somavam quatro. Há uma década, o número chegou a seis.“A marcha da urbanização, litorânea e geral de Salvador, coincide com o comprometimento da qualidade de suas águas”, diz o engenheiro oceânico Henrique Duarte, envolvido, nos anos 1990, na elaboração de planos municipais de saneamento básico no interior da Bahia e autor do livro Políticas de Saneamento Ambiental (2007). “O contrassenso é que esta é uma cidade peninsular, turística e praieira”.
Henrique percorre o litoral de Salvador como quem mapeia uma contenda. Na praia de Patamares, cercada pela foz do Rio das Pedras e do Rio Jaguaribe (que cruza 15 quilômetros da cidade, drenando áreas urbanas densamente povoadas, mas com infraestrutura urbana precária), diz haver um retrato de como nada, em questão de água, é pontual. O fluido poluído que chega a Patamares espraia-se até Itapuã, ao norte, e também até Amaralina, a caminho do sul. Como num pavio aceso, vai margeando a cidade, sendo alimentado por outras fozes de rios, canais pluviais e muito, muito lixo. “E assim segue. Os cursos percorridos pelas águas mostram o quão perverso e negligente pode ser o homem”.
É como se uma cidade como Feira de Santana despejasse seu esgoto nos rios e mares de Salvador
Pesquisa
A medição da qualidade da água das praias de Salvador é feita semanalmente. Os biólogos colhem amostras do mar, computam o número de bactérias fecais na água e determinam se a praia está segura para um banho. Examinar os microorganismos que sobrevivem às fezes é a melhor maneira de dizer se a água de uma praia está poluída a ponto de afetar a saúde dos banhistas. Os germes que servem de base para essas medições são coliformes – não causam doenças, mas, por serem comuns nas fezes humanas, são fáceis de identificar em testes e costumam ter ciclos de vida parecidos aos dos microorganismos nocivos que podem surgir numa praia poluída por lixo ou esgoto.
“As águas avaliadas indicam uma tendência para a praia, e não um resultado momentâneo”, afirma a bióloga Cláudia Passarelli, da Uneb. No último ano, ela coordenou uma pesquisa sobre um quesito quase sempre negligenciado pelo poder público: a qualidade da areia. Cercada por computadores e mapas do litoral da cidade, ela exibe à Muito o resultado: das 12 praias avaliadas (incluindo pontos altos da cidade, como Barra), nenhuma apresentou areia totalmente livre de contaminação. Mesmo as paradisíacas Flamengo e Stella Maris tiveram seu quinhão de sujeira. Em pontos mais críticos, como Rio Vermelho e Costa Azul, a quantidade de coliformes fecais na areia chegou a ser três vezes maior que a do esgoto bruto.
“A proliferação de micro-organismos depende de matéria orgânica presente na areia. E isso pode acontecer pela água contaminada, pelo lixo, restos de alimentos, fezes de animais. É sempre uma soma de falhas, que envolve poder público e população”, diz Cláudia. “Nas últimas décadas, a praia passou a ser vendida e almejada como uma versão do paraíso terrestre. A questão é que a qualidade ambiental do nosso litoral ainda guarda semelhanças com tempos coloniais”.
História
A poluição no litoral não é algo novo. A antiga crença da praia como local infeccioso, de miasmas marinhos e exalações pútridas, não era disparatada em vista do amontoado de resíduos lançados ao mar – alvos de rejeitos de domicílios e de estabelecimentos comerciais, de óleos de navios e de lixo hospitalar. Assim foi durante todo o Brasil Colônia e chegou até a primeira metade do século 20.
Só duas
As políticas de saneamento urbano e ambientais, sobretudo a partir dos anos 1960, se não solucionaram por completo o problema, destituíram as praias brasileiras – a maioria delas – da pecha de lixões. Relatórios feitos há 40 anos no Centro de Pesquisas e Desenvolvimento da Bahia (CEPED), no entanto, já indicavam a não resolução daquele que viria a ser o protagonista da questão: o esgoto doméstico que chega através dos rios.
Ao longo das últimas décadas, estudos vêm indicando que, apesar dos esforços em implantação de um sistema de esgotamento sanitário em Salvador e sua região metropolitana, o comprometimento dos rios – ou o que deles restou na cidade – resulta da incompleta implantação da rede coletora de esgotamento sanitário.
“Durante muito tempo, se falou da grande defasagem no atendimento desse serviço em Salvador. Hoje, as estatísticas oficiais são melhores, mas nossas fontes e nossos rios continuam poluídos, precisando ser escondidos, e a população continua a conviver com o esgoto”, diz Lafayette Dantas, professor do programa de pós-graduação em meio ambiente, águas e saneamento da Ufba que, de 2012 a 2015, coordenou um projeto de pesquisa sobre a engenharia ambiental e sanitária nacional.
“Podemos dizer que esse não é um 'privilégio' de Salvador”, pontua Dantas. “Afinal, a degradação ambiental é um problema estrutural comuns às nossas grandes metrópoles. Mas Salvador conjuga de forma singular degradação ambiental e pobreza urbana”.

Ocupação
Em toda a cidade, aproximadamente 20% das residências não têm esgotamento sanitário e despejam seus esgotos diretamente na rede pluvial (canais responsáveis por coletar água da chuva) e, também, nos rios e nos córregos. Isso significa que o esgoto produzido por 510 mil pessoas não passa pelo processo oficial – tratamento, retirada de resíduos sólidos e lançamento nos emissários submarinos da Boca do Rio e do Rio Vermelho, a três quilômetros da costa.
“É como se uma cidade como Feira de Santana despejasse seu esgoto nos rios e mares de Salvador”, diz Eduardo Topázio, coordenador de monitoramento de recursos ambientais e hídricos do Inema. “Estamos perdendo a batalha para a ocupação desordenada do solo e isso compromete toda a rede pluvial e fluvial”
Eduardo explica que o “básico” não está no nome do saneamento à toa. É um tipo de infraestrutura que deveria ser a primeira coisa a ser construída numa cidade. São três etapas. A primeira é o abastecimento de água. Desenvolver redes e tubulações para levar água potável para a população. A segunda é a coleta do esgoto. Novas redes, diferentes da de abastecimento, para captar a água suja. Por fim, a terceira etapa é a de tratamento. Essas redes têm de terminar em uma estação, que vai limpar a água antes de devolvê-la para os rios ou mar. A ocupação irregular, ampla na periferia de Salvador, embaralha as etapas.
É difícil universalizar o saneamento por uma falta de foco histórico. Não se investiu no passado, e hoje temos um grande déficit para tirar o atraso
Saneamento básico
Na década de 1970, quando foi feito o primeiro grande investimento em saneamento básico, a cidade tinha um índice de cobertura de esgotamento sanitário de 24%. Cerca de 20 anos depois, por meio da implantação do programa Bahia Azul, passou a 82,39%. No último levantamento, realizado pelo Instituto Trata Brasil, no ano passado, a cidade chegou a 82,63%. Após o salto expressivo, Salvador não conseguiu avançar com a velocidade esperada e hoje figura na 37ª posição no ranking de saneamento, também realizado pelo Trata Brasil, em 2015. Entre as capitais, a cidade está atrás de Curitiba, Belo-Horizonte, Campo Grande, São Paulo, Goiânia e Brasília.
“É difícil universalizar o saneamento por uma falta de foco histórico. Não se investiu no passado, e hoje temos um grande déficit para tirar o atraso”, diz Julio Mota, superintendente de esgotamento sanitário da Empresa Baiana de Águas e Saneamento (Embasa). “Há pessoas que moram em lugares impossíveis de serem alcançados pelas tubulações de esgotamento. Ninguém mora em local insalubre porque quer e isso exigiria remanejamento da população”, observa. “Por mais complicada que seja a situação, ela precisa ser enfrentada. A falta de saneamento compromete todo o desenvolvimento da cidade”.
No mundo urbano ideal, há duas redes de coleta de efluentes. A primeira é a rede de esgotamento sanitário, formada por manilhas destinadas a escoar o esgoto da casa de cada morador e onde estações bombeiam a carga até onde é feito o tratamento. A segunda teia de canos subterrâneos é responsável pela drenagem pluvial: manilhas que levam as águas da chuva diretamente para os rios e mar. Os bueiros são parte integrante desse sistema. E a realidade se impõe: quando chove, a água lava tudo, despejando em rios, lagos e baías o lixo de ruas e calçadas. Numa cidade como Salvador, com altos índices pluviométricos, pode-se imaginar o tamanho do problema.
Para minimizar a sujeira que chega ao mar por meio dos canais pluviais, a Embasa vem realizando o que na linguagem técnica é conhecimento como “captação em tempo seco”. O esgoto despejado pelas casas nos canais pluviais através de ligações clandestinas é sugado pela rede coletora. O fluido, assim, ganha tratamento antes de ser enviado aos emissários submarinos. Mas isso só pode ser realizado em épocas de estiagem. Quando chove, o volume de água misturado a lixo e esgoto nos canais pluviais aumenta e o sistema implementado em Salvador não dá conta. Por isso, a balneabilidade das praias é sempre mais afetada em meses chuvosos.
Em 2009, a Embasa anunciou a construção de três novas bacias de esgotamento sanitário, na região de Águas Claras e Trobogy. Com a ligação dessas bacias ao emissário da Boca do Rio, cerca de 300 mil pessoas passariam a ter acesso à coleta e tratamento de esgoto. Com sucessivas paralisações e revisões contratuais, a obra, orçada em R$ 160 milhões, foi retomada em janeiro deste ano. À Muito, o órgão disse que “os serviços foram paralisados em função de fatores externos ao contrato, como obras de infraestrutura na Avenida 29 de Março, para compatibilização com o projeto, e por conta de pendências nas desapropriações de terrenos no trajeto da avenida”. As obras agora têm conclusão prevista para 2018.
Cuidado com a areia
Lei
A lei federal de saneamento básico, aprovada em 2007, estabeleceu as reponsabilidades de cada esfera do poder público no tratamento das águas urbanas. O governo do Estado é, assim, responsável pelo esgotamento sanitário, enquanto a prefeitura deve se responsabilizar pela drenagem pluvial. Em Salvador, não é raro os dois poderes evidenciarem suas rusgas quanto à divisão das tarefas.
A última grande querela aconteceu em 2014, com a criação, por parte da prefeitura, da Agência Reguladora dos Serviços Públicos de Salvador (Arsal), para fiscalizar os serviços da Embasa. A empresa estatal considerou a iniciativa inconstitucional e respondeu que era uma tentativa de desviar a atenção de uma falha da gestão municipal: a não confecção do Plano Municipal de Saneamento Básico, previsto pela lei federal de 2007. As acusações – de falta diálogo por parte da Embasa e de negligência por parte da prefeitura – seguem ecoando entre os membros dos órgãos municipais e estaduais.
De fato, Salvador não tem um Plano Municipal de Saneamento Básico, entendido por pesquisadores do tema não apenas como um documento regulador das ações, mas como um alicerce em busca da universalização do saneamento. A cidade, no entanto, não está em desacordo com a lei. No final de 2015, a ex-presidente Dilma Rousseff publicou um decreto adiando em dois anos a entrega dos planos municipais de saneamento. Ou seja, as cidades brasileiras têm até o final deste ano para concluir seus planos.
Em nota enviada à Muito, a Secretaria de Infraestrutura, Obras Públicas e Habitação afirmou que “a elaboração do plano vem sendo realizada em conjunto com a Casa Civil” e que “os prazos serão obedecidos”. Em complemento, a Secretaria de Manutenção da Cidade explicou que a conservação do sistema de canais pluviais de Salvador “é permanente e compreende ações de drenagem, desobstrução e jateamento de rede e retirada de lixo”.
“O saneamento é uma espécie de um marco civilizatório, é uma questão de saúde pública”, diz André Fraga, à frente da secretaria municipal Cidade Sustentável. “É necessário um maior diálogo entre o município e o estado, com envolvimento da sociedade civil organizada. Se você entra numa cidade com esgotos a céu aberto e praias poluídas, essa não é uma cidade civilizada”.
Ao lado
Não é difícil reconstituir, através de documentos e reportagens, o avanço da urbanização rumo ao litoral norte de Salvador. A progressão do uso das praias coincide com a marcha das águas contaminadas. O caso mais emblemático talvez seja o das praias do bairro do Rio Vermelho. Local de veraneio elegante na primeira metade do século 20, o Rio Vermelho teve sua ocupação consolidada por volta de 1940. Após as obras do emissário submarino e a intensificação do escoamento das águas do Rio Lucaia, nos anos 1980, suas praias foram deixando o posto de queridinhas das classes mais abastadas.
No artigo A poluição urbana e as práticas balneares, de 2013, o antropólogo Carlos Paz estabelece um panorama histórico do avanço urbano no litoral de Salvador e de como a noção de “praia suja” passa pelo poder aquisitivo: enquanto as classes mais pobres preocupam-se com itens como disponibilidade de ônibus para sair e voltar de casa, as classes mais ricas demonstram preocupação com itens mais intangíveis, como a poluição sonora e a qualidade do ar.
“É comum, em grandes cidades litorâneas, a descaracterização das praias”, diz o antropólogo à Muito. O anômalo em Salvador, para ele, é a tamanha velocidade. “Praias oceânicas históricas ainda são frequentadas, como a da Boa Viagem, em Recife, e Ipanema e Copacabana, no Rio de Janeiro. Em Salvador, a exceção é a Barra. Mas, para uma elite que pode percorrer quilômetros em busca do paraíso de final de semana, onde está mesmo o problema?”. Para Tião Batista, está ao lado.






Compartilhe essa notícia com seus amigos
Cidadão Repórter
Contribua para o portal com vídeos, áudios e textos sobre o que está acontecendo em seu bairro
Siga nossas redes