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Produtores de licor de Cachoeira se reinventam em ano marcado por restrições
Por Yumi Kuwano

Dona Nenzinha, ou Tia Nem, como ficou conhecida há mais de 30 anos, produz um dos licores com maior variedade de sabores da região mais tradicional quando se trata de licor na Bahia, a cidade de Cachoeira, no Recôncavo baiano. Angelina Cordeiro, com 95 anos, ainda participa ativamente da produção da bebida e já foi vereadora da cidade na década de 1970.
São mais de 30 sabores e as ideias saem todas da cabeça de Tia Nem: chocolate com pimenta, banana, biribiri e até opções diet, para contemplar todos os públicos. “Tenho as ideias e vamos testando. Meu braço direito é Nalva, que prova e aprova tudinho. Nunca tomei uma gota sequer dessa bebida, nem sei o gosto”, revela Tia Nem.
Nalva Galvão trabalha desde o início com ela e é como se fosse filha. Dona Nenzinha, funcionária pública do cartório da cidade desde os 18 anos, teve 15 filhos, mas, diz com orgulho e felicidade, que criou 19.
A comerciante Erika Moraes foi de Feira de Santana a Cachoeira para comprar os licores para revenda. Levou mais de 10 caixas e espera voltar em breve. “Primeiro ano que vendo licor e tem tido uma saída ótima. Já vim várias vezes a Cachoeira buscar esses licores. São um sucesso lá”, conta.
Prevenção
A lojinha e a produção do licor Tia Nem fica a sete quilômetros do centro de Cachoeira, no distrito de Belém de Cachoeira. Por lá está permitida a comercialização da bebida no local, mas nem todos os produtores tiveram a mesma sorte.
Neste ano, por causa da pandemia do coronavírus, os produtores e vendedores de licor sediados no centro da cidade não podem receber clientes, uma medida de prevenção adotada pela prefeitura.
Por isso, eles precisaram buscar métodos alternativos para vender a bebida tradicional, que, mesmo com os festejos juninos suspensos em toda a Bahia, se mantém requisitada por clientes de todos os cantos do estado.
De acordo com o secretário de Cultura e Turismo de Cachoeira, Cleydson do Rosário, o decreto que proíbe a comercialização direta no centro da cidade foi uma medida para manter o baixo índice de contaminação no município.
“Vem gente de toda a Bahia atrás do nosso licor, e pessoas de fora entrando na cidade o tempo todo é um risco muito grande”, explica. Por isso, a prefeitura montou um ponto de distribuição antes da barreira sanitária de Cachoeira, mas o local, segundo os produtores, não apresentava segurança necessária para deixar os licores, e levar diariamente era inviável.
Patrimônio líquido
Neste ano, reinventar-se foi inevitável. Delivery e pedidos pelo WhatsApp e Instagram, natural para os negócios da capital, mas que para a maioria das pessoas do Recôncavo baiano ainda é uma novidade, foram as alternativas. O licor Tio Jura tem circulado nas redes sociais. Com a ajuda da filha, ele tem mantido as vendas no mesmo patamar do ano passado. “Vendo cerca de três mil litros de licor nesse período do São João, entre abril e junho”, diz Juarez Almeida, de 65 anos, ganhador do melhor licor de jenipapo na categoria de sabor tradicional do primeiro Festival de Licor de Cachoeira, realizado no ano passado.
“As pessoas começaram a procurar muito este ano por ser um licor premiado, mas eu não quero aumentar a produção para não perder a qualidade. Para mim, o que importa não são os números, mas o prazer que fazer o licor me proporciona”, revela Juarez, que produz o licor com a ajuda de apenas outras três pessoas, no quintal da própria casa.
Tio Jura, como ficou conhecido, começou a fazer licor há 22 anos, para beber com os amigos, e assim tomou gosto pela coisa. Nos primeiros anos, o processo era feito em máquina de moer carne, depois passou a utilizar a prensa na extração da polpa da fruta.
Ao comparar com outros produtores, Tio Jura realmente tem uma produção caseira e limitada. Os vizinhos chegam a vender 80 mil litros de licor no mesmo período.
Famoso
Na mesma rua da casa amarela de Tio Jura fica o fabrico, como são chamados os locais de produção, do licor mais famoso de Cachoeira: o Roque Pinto. Quem assume o negócio hoje é o filho de Roque, Rosivaldo, conhecido com Rosi, mas a tradição e a receita do licor já passam de geração a geração há algum tempo.
O avô de Rosi, Francisco Pinto, foi quem começou o preparo para receber os amigos e conhecidos em casa no São João, quando costumavam sair de porta em porta para conversar e degustar as iguarias típicas.
Este ano não foi como os outros anos para a família de Roque. Com a comercialização suspensa na cidade, que chegou a causar filas e aglomerações no mês de maio, não foi possível aceitar encomendas para o São João por um período.
“Não estávamos preparados para uma procura alta, por ser um ano totalmente atípico e, de repente, quando foi decretada a antecipação do feriado de São de João, vimos uma explosão de pedidos no nosso WhatsApp, de mais de 1.300 mensagens”, diz Sida Silva, esposa de Rosi Pinto.
A partir daí, ela conta que preferiram não receber novos pedidos para conseguir dar conta, com mais calma, do que já havia sido pago pelos clientes. A previsão é que a retomada aconteça a partir de amanhã.
Família
No fabrico de Moisés Pinheiro e seus dois sócios, cada um fica com a produção dos sabores que domina ou gosta mais. Ele, por exemplo, é encarregado pela produção dos licores de café e chocolate. No negócio, são todos da família.
Moisés e os cunhados decidiram, há cinco anos, juntar os saberes da tia de Moisés com outras receitas passadas pelos familiares, e assim nasceu o licor Cachoeira Colonial. Hoje, eles entregam em Salvador, com frete grátis para quem compra mais de 60 litros.
O processo é o mesmo desde o início. Além de comprar a matéria-prima, ou seja, as frutas, com os agricultores da região, o licor Cachoeira Colonial é feito com algumas frutas do quintal da casa de parentes, como a pitanga, pouco explorada na região. “A gente colhe na época e cuida das árvores”, conta Moisés.
Ele diz já ter vendido mais neste ano do que no ano passado e que o segredo está no cuidado para manter o equilíbrio entre o sabor da fruta e pouco álcool.
“A gente trabalha com teor alcoólico mais baixo para fazer com que a pessoa aprecie. O nosso licor é mais suave do que os outros, a gente busca sempre isso”, explica o sócio, que, apesar da maior dificuldade com os licores cremosos, também conseguiu manter o equilíbrio da marca.
No Ponto do Licor, Raimundo Santos e o filho ficam à frente da produção de mais de 80 mil litros de licor, distribuídos principalmente para Salvador. Com dois locais de produção, eles trabalham com mais de 25 sabores, como coco e rabo de foguete, com gengibre e limão, os mais pedidos depois do carro-chefe, jenipapo.
Jenipapo
É difícil de imaginar, mas os festejos juninos não têm origem católica. Eles começaram na Europa, como um culto ao sol, já que no período de junho acontece o solstício de verão europeu.
Então, a fogueira era utilizada para espantar os maus espíritos e as pragas das lavouras, entre outros costumes. “Depois essas práticas foram cristianizadas e cooptadas pela igreja católica, para expandir mais, ter mais adeptos”, explica o professor de geografia cultural e pesquisador do Recôncavo baiano da Universidade do Estado da Bahia, Jânio Castro.
No Brasil, essa tradição foi trazida pelos europeus e adaptadas ao nosso contexto. “São recriações de festividades europeias”, diz o professor.
De acordo com Jânio, é muito difícil precisar quando e onde o licor foi criado, porque há pessoas que podem ter feito essa mistura em diferentes lugares do mundo. No entanto, a bebida está na dimensão dos saberes e fazeres e é reinventada em cada lugar, de acordo com especificidades.
“A bebida é importante porque simboliza a celebração, bebemos para celebrar”, observa.
Em Cachoeira, o licor tornou-se tão conhecido por passar de uma geração para outra. “Você chega lá e o licor é feito por um senhor, mas que aprendeu com o pai, que passou do avô. Esse é o simbolismo”.
Para ele, três fatores influenciaram a fama que o licor da cidade ganhou: Cachoeira é uma cidade de riqueza cultural importante, tombada como patrimônio; o Recôncavo baiano é nacionalmente conhecido pelas suas manifestações culturais; e, em muitas casas, se tem a quarta geração da família produzindo o licor.
Com pedido de reconhecimento solicitado pela produtora Carine Araújo ao Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural do Estado da Bahia (Ipac) no ano passado, no período em que foi realizado o festival, o reconhecimento como patrimônio imaterial do estado do licor de Cachoeira aguarda o processo, que pode levar alguns anos.
“É um reconhecimento importante. Assim como o queijo canastra é um patrimônio do país, assim como outros saberes e fazeres importantes, o licor de Cachoeira também precisa ter esse reconhecimento”, diz Carine.
O licor de jenipapo, por ser o mais antigo, é o mais famoso. Ele foi o primeiro, já que é uma fruta presente no cotidiano.
De acordo com Jânio, a bebida tem a ver com a realidade de vida de cada região, e o jenipapo é uma fruta que possibilita isso, tanto pela natureza geográfica – por ser encontrado no quintal de casa – quanto pela natureza econômica, pois é barato fazer licor de jenipapo, e sociocultural, o saber que o pai ou a mãe passa para os filhos.
“As manifestações culturais são construções processuais diferentes ao longo do tempo, e foi assim com o licor”, diz o professor.
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