CRÔNICA
Projeções de uma vida
O filme, em pré-estreia, exibido nas quatro salas
Por Evanilton Gonçalves*
Numa terça-feira à noite do interminável mês de agosto, tive a alegria de assistir ao novo filme dirigido por Kleber Mendonça Filho, Retratos fantasmas. Como quase sempre acontece quando quero ver algum filme durante a semana, saí corrido do trabalho para em poucos minutos já estar no Cine Glauber Rocha. Corrido é modo de dizer, pois embora esteja a 10 minutos a pé do cinema, a escalada da violência em Salvador faz com que eu opte por um carro por aplicativo para me conduzir com alguma segurança ao destino. Cinema lotado. O filme, em pré-estreia, exibido nas quatro salas.
Eu, que passei o dia focado e atento nas tarefas laborais de leitura e revisão de textos, o que faz com que meu corpo fique tenso e os músculos contraídos ao final do dia, vi um outro eu sentado na poltrona já nos primeiros minutos do filme. É que o cinema tem poder e um bom filme faz mágicas com a gente. Diante da tela imensa e rodeado de pessoas conhecidas e desconhecidas, me sinto em um ambiente agradável no Glauber. Acho que a força do slogan faz com que eu me imagine em casa: “O seu cinema de rua no Centro Histórico de Salvador”. E sinto mesmo como se fosse meu, principalmente quando estou lá com amigos e familiares. Também por isso me mudei pro Centro.
No documentário, Kleber abre a porta de casa, ou melhor, do apartamento onde morou por muitos anos, para que possamos mergulhar com mais intimidade no que foi também o cenário de muitos de seus filmes, a exemplo de O som ao redor e Aquarius. É bonito ver como ele conduz e amplia a memória particular e nos faz sentar à mesa como velhos amigos. As aparições da grande atriz Maeve Jinkings já pagam o ingresso. Vai além, é claro. Dividido em três partes, o filme captura com uma poesia singular as transformações dos espaços e das pessoas. Na tela, passado e presente de antigas salas de cinema no Centro de Recife, como o cinema Veneza e o São Luiz, suas transformações e ressonâncias no público de lá, mas também daqui e de muitos lugares.
Narrado em off pelo próprio Kleber Mendonça Filho, Retratos fantasmas consegue rapidamente estabelecer uma conexão com a plateia. Quem não gosta de ouvir uma boa história? Diante de nós, uma crônica cinematográfica. Para qualquer lado que eu olhava, via rostos iluminados e sorridentes como o meu. Quando vemos a vida vibrar, vibramos também. Entre imagens de arquivo, fotografias e registros pessoais, passeamos pela cartografia afetiva de um dos grandes cineastas brasileiros.
Saí da sessão reflexivo, pensando no direito à cidade, na importância de um cinema de rua e nas consequências nefastas da especulação imobiliária. Na porta do cinema, vejo a estátua de Gregório de Matos (que já me deu vários sustos com declamações ativadas por sensor de presença). Do outro lado, o monumento a Castro Alves. Entre os poetas, a Ocupação Carlos Marighella com dezenas de famílias que lutam pelo direito de morar dignamente. Apesar das contradições da cidade, ainda estou bem-humorado. Penso naquele final hilário e melancólico dentro do carro. Diálogo absurdo. Entro no Uber. Digo olá, boa noite. Resposta e silêncio. Inclino um pouco a cabeça pro lado e sorrio.
*Evanilton Gonçalves é autor de O coração em outra América (Paralelo13S)
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