OLHARES
Pronto! Programa de Verão, da RV Cultura e Arte
Ação acontece às quartas-feiras do mês de janeiro na Galeria RV Cultura e Arte, sempre às 18h
No dia 10 de janeiro, fim de tarde de verão em Salvador, entrando na galeria RV Cultura e Arte, no Rio Vermelho, encontrei uma grande mesa no centro do espaço, com uma cadeira de cada lado. Dispostos sobre a mesa, uma sinalização dizendo “Retire aqui”, papéis, caneta, almofada para coletar digitais e documentos de identidade com marcas de tempo. As pessoas foram chegando, grupos se formando em torno da mesa em frente às obras de Vânia Medeiros, que compõem a exposição Estudos para coreografia sem o uso da cabeça, conversando e tomando chopp bem gelado, servido pela cervejaria baiana MinduBier. A galeria em movimento.
Artistas e visitantes se encontrando, se revendo, se conhecendo em trânsito pelo espaço que começava na calçada, quando antes de entrarmos encontramos Isabela Seifarth pintando o mural Escola Brasil, compondo a fachada da galeria. Esse encontro foi o início do Pronto! Programa de Verão, que acontece às quartas-feiras do mês de janeiro na Galeria RV Cultura e Arte, sempre às 18h.
Depois de um tempo, Milena Ferreira conversou com o público sobre a performance que iria começar, Ação social: Emissão de identidade_vencida, sobre o que a levou a pensar essa ação: sua “invalidade social” diante do vencimento de um documento oficial que impossibilitava a inscrição em um processo para trabalho artístico.
A mesa e os objetos arranjados sobre ela nos indicavam ambientes de burocracias cotidianas que precisamos enfrentar para sermos identificados na sociedade e ter acesso aos seus espaços, e que ela evocava em estado de espera como parte da performance que viria em seguida.
Essa evocação intensificava as perguntas que a artista nos fazia naquele momento, relacionadas à validação de sua existência pessoal e profissional, e que é estendida para as demais pessoas artistas.
Em suas palavras, “que Milena é essa que está no documento? Que Milena é a que não está? Como elas coexistem? Qual deixou de existir? O que é necessário para que essa existência seja validada? A quem não interessa que ela exista?”.
No entanto, quando a performance começou, o processo de emissão do documento foi rápido, porque para a artista era imprescindível que nenhuma etapa fosse exaustiva. A ação que evocava a burocracia foi, em sua execução, uma quebra com essa burocracia, uma rejeição, um jogo que já se anunciava como postura crítica numa etapa anterior.
Já em dezembro, Milena abriu um formulário que ficou disponível em sua rede social, em que as pessoas interessadas em participar da Ação social: Emissão de identidade_vencida preenchiam seus dados biográficos, como nome artístico; registro geral (tempo de trabalho como artista visual); data de nascimento; filiação (dois aspectos que permeiam sua pesquisa/trabalho); naturalidade (técnica/linguagem de trabalho) e cidade.
Havia também uma lista de documentos desnecessários: diploma; currículo; biografia; foto 3x4; certidão de nascimento. O pré-requisito para participar da ação era ser artista visual.
Sem a menor burocracia
O convite da galeria para que a entrega do documento acontecesse na abertura do Pronto! Programa de Verão veio depois dessa etapa já em andamento. Milena, como ela nos disse nessa tarde, não é uma artista que se dedica à performance, mas viu nesse convite uma forma de jogar “com a ironia de emitir um documento de validação artística, emitido por artista, para artistas, dentro de uma galeria sem a menor burocracia”.
Para a galeria, a proposta de Milena e o que ela mobiliza dialogava com a proposta do programa de verão, que, segundo Larissa Martina, sócia do espaço em conjunto com Ilan Iglesias, surgiu “como uma ideia de oferecer uma programação efêmera durante o mês de janeiro, pensando no momento que Salvador vive no campo das artes visuais, com a revitalização e o surgimento de novos equipamentos públicos, além de outros espaços pela cidade”.
Além de Milena Ferreira, que em 2022 teve sua primeira exposição individual, Vestígios, na RV Cultura e Arte, mais três artistas contemporâneos representados pela galeria se juntaram ao projeto: Isabela Seifarth, Lia Cunha e Pedro Marighella.
A proposta é que todos os projetos dialoguem com performance, exibição de vídeo e happenings, ou seja, obras que aconteçam nessas tardes e se configurem como encontros dos artistas com o público em trânsito na cidade de Salvador, sendo também um dispositivo que desperte a curiosidade para o espaço e acervo da galeria.
A ideia de um novo mural para a galeria também já estava sendo mobilizada junto com Isabela Seifarth, e foi o disparador da conversa da artista com o público no segundo encontro do programa. Escola Brasil está dividido em três blocos e cobre toda a fachada da galeria, fazendo, assim, parte da paisagem do Rio Vermelho, bem próprio ao Largo do Santana.
A pintura segue a pesquisa que vem sendo desenvolvida pela artista, cenas narrativas do cotidiano protagonizadas por personagens diversas em ações coletivas nos espaços das cidades.
A imagem surgiu a partir de fotografias encontradas por Isabela no Arquivo Público da cidade de São Félix, referentes à inauguração de uma escola na zona rural da cidade, em composição com imagens de manifestações, pessoas aglomeradas levando bandeiras.
Segundo a artista, a imagem do selo que aparece no alto do mural está baseada em “selos antigos dos correios, e demarca este cenário como símbolo de um Brasil que queremos, com mais políticas educativas para a transformação de um Brasil profundo”.
No terceiro encontro, a artista Lia Cunha, que passa agora a fazer parte do catálogo da galeria, apresentou e conversou sobre o curta-metragem Conversas com o Barranco, produzido em super-8, com trilha sonora de João Milet Meirelles.
Essa obra é um desdobramento da pesquisa que foi realizada pela artista para a criação do livro-objeto Etnografia do barranco, que aconteceu durante o período de isolamento social pela Covid-19. Segundo a artista, o processo se deu quando “buscando fazer amizade com a mata, iniciei alguns exercícios de aproximação com o barranco vizinho, através da coleta de amostras botânicas para a criação de fotogramas em cianotipia, compondo registros fotográficos e desenhos com lápis carvão”. Questões que se relacionam com a sensibilidade multiespécie podem ser o ponto de contato para interação com o público.
Música baiana
No último encontro, Pedro Marighella, artista com o qual a galeria já trabalha de perto há bastante tempo, apresentará Selo, performance em que apresentará releituras gráficas das capas de discos da música baiana, estabelecendo entre as músicas originais e essas releituras, uma brincadeira que incorpora novas ambiguidades a títulos e letras do Olodum, Banda Mel, Sarajane, entre outros.
A proposta de Marighella parte do papel singular que a música baiana passou a ter no cenário dos negócios da música brasileira na década de 1980 – marcada pela ascensão do samba-reggae e da axé-music – sendo, nesse momento, um contraponto ao eixo dominante Rio-São Paulo, fato que “impactou tanto a autonomia na cadeia de produção quanto a circulação das riquezas promovidas pelo setor”.
O design de capas de discos foi um espaço importante para os artistas gráficos baianos, sendo a possibilidade de convergência multidisciplinar em que puderam experimentar e dar visibilidade para suas produções.
Os encontros de Pronto! Programa de Verão integram o espaço da galeria RV Cultura e Arte em composição ainda com a exposição de Vânia Medeiros, Estudos para coreografia sem o uso da cabeça, que teve a abertura em 13 de dezembro de 2023 e segue em cartaz até dia 1º de fevereiro de 2024.
Segundo Catarina Duncan, curadora da exposição, nesses trabalhos de Medeiros a paisagem é elemento corporal, sendo uma “aproximação da percepção anatômica com a cartografia afetiva dos territórios”.
A proposta de encontros semanais, gratuitos e que movimentem produções visuais baianas em diálogo com o público da cidade e com turistas que vierem passar o verão em Salvador, possibilita outras experiências com o espaço da cidade e com a arte contemporânea.
*O conteúdo assinado e publicado na coluna Olhares não expressa necessariamente a opinião de A TARDE
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