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ABRE ASPAS

Raymundo Paraná: “O check-up do fígado pode salvar milhares de vidas”

Médico hepatologista fala sobre campanha Julho Amarelo contra hepatites virais

Por Marcos Dias

16/07/2023 - 12:00 h
O hepatologista Raymundo Paraná
O hepatologista Raymundo Paraná -

O próximo dia 28 de julho marca o Dia Mundial de Luta Contra Hepatites Virais. Pioneiro mundial nas ações de prevenção e tratamento dessas inflamações no fígado causadas por vírus classificados pelas letras A, B, C, D e E, o Brasil criou, em 2002, o Programa Nacional de Hepatites Virais (PNHV). Mas o esboço do PNHV se deu ainda em 1999, quando o médico hepatologista e professor titular da faculdade de Medicina da Ufba, Raymundo Paraná, e o professor Mitermayer Reis, da Fiocruz, foram ao Ministério da Saúde tratar da necessidade de se ter foco nessas enfermidades.

“O Brasil já era reconhecido pelo programa de HIV e, na época, já se morria mais de hepatites virais do que de HIV. Realmente, só entrou em vigor em 2002, e foi um programa vitorioso, porque mudou completamente a face das hepatites virais no Brasil”, diz Paraná. Uma década depois, a Organização Mundial de Saúde assumiu que as hepatites virais eram um problema global de saúde pública.

Nesta entrevista, no mês da campanha Julho Amarelo, instituída em 2019 para reforçar as ações de vigilância, prevenção e controle das hepatites virais, o doutor em Medicina e Saúde, que é líder do grupo de pesquisa em Hepatites Virais e Hepatotoxicidade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), fala sobre a campanha, outras doenças hepáticas, e explica por que há poucos hepatologistas no Brasil – cerca de 500 para 203 milhões de habitantes.

A hepatite é considerada uma doença silenciosa. Qual a melhor estratégia para a prevenção?

O que há de características nas doenças do fígado é o silêncio clínico. Na maioria dos casos, o indivíduo não sente absolutamente nada. Costumo dizer para os pacientes que o fígado é como um automóvel que tem um tanque principal de 100 litros, um tanque reserva de 200 litros, mas não tem mostrador. O indivíduo gasta seu tanque principal, vai entrar no reserva e só vai saber quando a máquina parar antes de chegar no destino final. Essa é uma questão. Outra questão é que um fígado, sob uma agressão qualquer, não vai dar sintoma algum, não dói, não dá mancha em pele, não dá azia nem má-digestão, nenhum alimento agride o fígado e nenhum alimento limpa ou desintoxica o fígado, tudo isso é bobagem. Mas quando ele sofre uma agressão, se essa agressão não for tratada, ele vai responder essa agressão produzindo cicatrizes dentro dele, pequenas cicatrizes que nós chamamos de fibrose. Isso é um processo longo, que demora décadas, e à medida que a fibrose progride e coalesce, ela começa a obstruir os canais por onde o sangue passa dentro do fígado para ser depurado. Ao ter essa dificuldade, aí começa uma doença hepática já clinicamente significativa. Entre o início de uma agressão e o aparecimento dessa fase lá se vão em torno de 20 a 40 anos. As hepatites crônicas não fogem à regra e a gente tem dois representantes das hepatites crônicas que são majoritários, a hepatite B e a hepatite C, que atingem 400 milhões de habitantes do planeta e são responsáveis por cerca de 700 mil mortes por ano no mundo todo. Aqui no Brasil estima-se mais ou menos 1% da população com uma dessas duas hepatites virais, o que daria em torno de 2 milhões de brasileiros. A imensa maioria sem diagnóstico.

Mas com o silêncio clínico, como se dá o diagnóstico?

Rastreando. No caso das hepatites virais é bem fácil o rastreio porque existe o teste rápido, que deve estar disponível em todas as unidades de saúde. O SUS tem o teste rápido – como ele é utilizado é que é o problema – mas está lá disponível. Com uma gotinha de sangue você sabe se o teste é positivo ou negativo para hepatite B ou C. São doenças que têm tratamento e tratamentos muito eficazes. No caso da hepatite B não cura, mas controla, não vai vitimar o paciente porque o vírus é desligado pelo medicamento. E temos dois medicamentos no SUS de fácil acesso, ambos disponíveis e extremamente eficazes contra o vírus da hepatite B. Já com a hepatite C o tratamento elimina o vírus, cura a doença, 12 semanas e o paciente tem 98% de chance de cura. Precisamos rastrear mais, não só as hepatites mas outras doenças do fígado. Todas elas, doenças crônicas, são silenciosas, então, o que eu chamo de check-up do fígado é muito barato: quatro enzimas, a AST, ALT, fosfatase e Gama GT, teste rápido para hepatite B e hepatite C e ultrassom. Isso nos ajuda a rastrear um número imenso de doenças hepáticas.

O senhor falou dos vírus B e C como os de maior gravidade, mas existe vacina para a hepatite B, não é?

Existe vacina para a hepatite B, está disponível há mais de 30 anos. O Brasil já avançou muito na vacinação. O problema da hepatite B é que ela precisa de três doses, e o intervalo entre as doses é longo. Toma uma injeção hoje, toma outra em 30 dias e outra em seis meses. O que acontece é que muita gente toma a primeira, nem todos tomam a segunda e poucos tomam a terceira. Não confere um nível de imunização ideal.

Falamos mais neste mês sobre esse assunto por causa do Julho Amarelo. A campanha é suficiente para o enfrentamento das hepatites?

Importante é, porque o 28 de julho é Dia Mundial das Hepatites Virais e no mundo todo existem ações que chamam atenção para esse tema. Essa foi uma proposta do Ministério da Saúde do Brasil na primeira década deste século numa assembleia na ONU por uma provocação da Sociedade Brasileira de Hepatologia. Foi aceita e, por unanimidade, acatada, para que o mundo todo, no mesmo dia, falasse da doença por ser considerada ainda um flagelo na humanidade e, em alguns países, ainda negligenciada.

Aproveitando a oportunidade do Dia Mundial da Hepatite, de maneira muito perspicaz, o Ministério da Saúde do Brasil resolveu transformar o mês todo no Julho Amarelo, onde falamos não só das hepatites, mas de todas as outras doenças hepáticas que têm em comum o silêncio clínico. Se a gente quiser enfrentar as doenças hepáticas, diagnosticá-las precocemente e retirar de nós essa pecha de ter boa parte dos nossos pacientes com doença hepática avançada na hora do diagnóstico, precisa rastrear, e para rastrear precisa se falar, precisa mobilizar a classe médica para que qualquer especialidade faça esse rastreamento, qualquer uma, não precisa ser hepatologista, e para que as Unidades Básicas de Saúde, que é o maior problema do Brasil no momento, realmente funcionem, e é onde esses pacientes assintomáticos deveriam ser mais rastreados, obviamente.

Para que elas funcionem, fiquem alertas e para que o próprio paciente provoque seu médico em relação à necessidade de fazer essa investigação. Isso é uma verdade para o indivíduo que consome álcool em faixa de risco porque, ao contrário do que as pessoas pensam, não precisa ser um consumo muito elevado; é uma verdade para os pacientes que são obesos que têm alterações de colesterol, porque desenvolvem uma forma de hepatite chamada esteato-hepatite não alcoólica; é uma verdade para pacientes que usam medicamentos ou fitoterápicos, ou hormônios, porque também podem desenvolver uma agressão ao fígado – isso hoje eu considero uma epidemia por causa das redes sociais que levam conceitos errados e propostas danosas, e os pacientes se submetem a tudo hoje, a qualquer tipo de tratamento e muitos estão adoecendo.

É impressionante o número de pacientes que chegam com doenças hepáticas já avançadas usando essas coisas. É uma verdade para as doenças autoimunes do fígado, que são também silenciosas por longa data. Quando falamos das hepatites virais, não podemos perder a oportunidade de lembrar que várias outras doenças hepáticas que evoluem muito semelhantes às hepatites virais têm que entrar também nesse processo de rastreamento. Volto a dizer: é simples e barato. Todo mundo pensa em check-up do coração, check-up urológico ou ginecológico, mas ninguém pensa no check-up do fígado, que é muito barato e pode salvar milhares de vidas.

Há dados sobre o rastreamento?

Para você ter uma ideia, hoje, nos países mais desenvolvidos, onde se faz o rastreamento de doença hepática, o câncer primário de fígado – que depende das doenças do fígado, porque o paciente que faz câncer é aquele que teve uma doença no fígado silenciosa por muito tempo e a doença evoluiu – você consegue diagnosticar o câncer do fígado precoce em 70% dos pacientes. No Brasil, nos melhores centros, a gente não chega a 40% de diagnóstico precoce, e isso significa que 60% já chegam com doença avançada, quando não é mais curativa. Estamos falando de um câncer que cura e esse câncer pode ser relacionado às hepatites virais e a todas as outras doenças hepáticas que evoluem silenciosamente agredindo o fígado por décadas.

E quando a funcionalidade do fígado se esgota, quanto tempo pode levar até um transplante?

Varia muito. O Brasil é um país extraordinário em relação a transplantes. O transplante só era feito pelo SUS até o ano passado, mas no ano passado, de maneira muito correta, ele entrou no rol de procedimentos do Ministério da Saúde. Era inadmissível não ser. O Brasil faz 1800 transplantes por ano. Deveria fazer mais? Com certeza. Mas temos um problema crônico de doação de órgãos, e a Bahia, particularmente, é um dos estados com pior performance em doação. Mas, hoje, o tempo de espera numa lista de transplante na Bahia não está muito grande.

O fígado não precisa de nada mais do que o grupo sanguíneo para compatibilidade, da agilidade na captação de doadores, da oferta da doação – que passa pela consciência da população e pelas equipes dos hospitais e UTIs que identifiquem morte cerebral dos pacientes – mas depende também da pressão na lista de transplantes. Temos hoje na Bahia um volume imenso de pacientes com doença hepática avançadas e poucos pacientes na lista, em torno de 30, só. É uma discrepância absurda. O que significa isso? Que os pacientes estão por aí e não estão sendo encaminhados, estão perdidos.

Por que isso ocorre?

Existem poucos hepatologistas no Brasil, em torno de 500 para 203 milhões de habitantes. Algumas especialidades acabam atendendo pacientes hepatopatas: gastroenterologistas, clínicos e até infectologistas trabalham porque a demanda é imensa. Existem estados da federação que não têm nenhum hepatologista no serviço público de saúde. Os hepatologistas, como são raros, estão mais concentrados em grandes cidades e em clínicas privadas, obviamente existe uma demanda. Há uma série de distorções para que o paciente com doença crônica de fígado não tenha uma jornada fácil no sistema de saúde e não seja reconhecido nem encaminhado precocemente para os centros de transplante.

Se formos observar a Bahia, temos referência em Salvador e RMS, o Hospital das Clínicas, o Cedap [Centro Estadual Especializado em Diagnóstico, Assistência e Pesquisa] e consultórios privados em Feira de Santana, Ilhéus e Itabuna. No restante, não há referência consolidada, pode ter um ou outro profissional atendendo, mas não tem um serviço de referência que avalie um paciente com doença grave ou avançada. É um grande problema que temos: encher as listas de transplante e pressionar o transplante hepático no Brasil, e isso só vai se resolver formando mais hepatologistas e capilarizando o sistema, estamos longe disso ainda.

O que o levou a escolher a hepatologia como especialização?

Vou falar por que a hepatologia atrai pouco. O modelo de remuneração médica hoje desprivilegia o saber médico. O que mais se remunera hoje é o procedimento e a alta tecnologia. Conhecimento médico é desprivilegiado, porque quando o indivíduo não tem procedimentos ele vive da consulta. Se você observar a remuneração que um médico recebe na consulta é uma remuneração, no SUS, de R$ 10 a R$ 12. Num plano de saúde, pode variar de R$ 60 a R$ 120, na maioria. A clínica privada, menos de 5% dos médicos conseguem fazer. As especialidades que são meramente clínicas, que dependem da consulta e do saber médico, que são a base da boa medicina, são as piores remuneradas. Então, o jovem estudante fareja isso desde cedo.

Ele já busca especialidades que tenham procedimentos porque sabe que é garantida a remuneração. Por exemplo, um gastroenterologista tem a opção de fazer hepatologia, mas quando aprende a fazer colonoscopia, endoscopia e outros procedimentos, é muito melhor remunerado por isso, então, para ele, é melhor fazer um procedimento do que ter um paciente cirrótico, que dá um trabalho grande, então, acaba não atraindo. Coisa semelhante está acontecendo com outras especialidades também, a pneumologia, por exemplo, segue esse caminho, a própria pediatria está seguindo esse caminho. As nossas residências médicas nessas especialidades que não têm procedimentos e que dependem muito de estudar, de ter conhecimento médico, discernimento, estão diminuindo a demanda.

É uma inversão de valores absurda, tem isso no mundo todo, mas no Brasil está muito acentuado esse problema. Então, tem essa questão do desencorajamento e falta de atrativos para um jovem. Agora, o que você me perguntou e que me toca. O que me atraiu? Eu sou um indivíduo que gosta da academia, sou professor universitário, gosto de fazer pesquisa e a hepatologia é um campo aberto para isso. Uma especialidade extremamente ampla. Para mim, é a maior especialidade da clínica médica, precisa fazer clínica médica para fazer uma boa hepatologia e foi isso que me atraiu, como atraiu outros 500 hepatologistas no Brasil, mas talvez, a geração atual, que é mais pragmática, já não pense mais como a minha geração. Obviamente, as coisas vão mudando com o tempo, os jovens de hoje são muito mais pragmáticos, não são sonhadores nem pagam pra ver.

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