MUITO
Religiosos, políticos e universidades: quem investe no futebol do interior da Bahia
Por Gilson Jorge | Foto: Uendel Galter | Ag. A TARDE
Até o ano passado, o reitor da Unirb, professor Carlos Joel Pereira, havia entrado apenas três vezes em estádios de futebol. Uma para ver o Bahia, time pelo qual nutre uma certa simpatia, e duas para assistir ao Atlético de Alagoinhas, maior clube de sua terra natal. Mas o seu interesse por futebol aumentou radicalmente com a estreia do time de sua instituição na segunda divisão do campeonato baiano, dia 10 de março deste ano. Neste domingo, a partir das 15h, em Cachoeira, ele completa dez finais de semana seguidos indo aos jogos e hoje pode comemorar a passagem da equipe à final da competição contra o já classificado Olímpia.
A chance de passar à primeira divisão tem mexido com o ânimo de professores, estudantes e atletas do time criado há menos de um ano para servir de ponte entre o esporte e a universidade. “Nunca achei que fosse virar cartola”, brinca a superintendente do campus de Alagoinhas, Ana Costa.
Ela foi designada pelo reitor como representante do time em cada partida para resolver questões administrativas, como a preparação do borderô, documento em que constam os valores arrecadados em cada partida com a venda de ingressos e o pagamento do trio de arbitragem.
“Temos um modelo parecido com o dos times de basquete das universidades americanas, inclusive com atletas bolsistas”, explica o reitor, que está investindo alto no seu sonho. O Privillege Hotel, no centro da cidade, que estava desativado, foi adquirido e virou o alojamento da equipe. O atacante João Neto, artilheiro da primeira divisão pelo Atlético, foi convencido a disputar a reta final da segundona pela Unirb, assim como o experiente volante Fausto, ex-Bahia. “Estamos planejando a construção de um centro de treinamento em Mata de São João”, afirma o reitor, que já investiu cerca de R$ 2 milhões no projeto e estima gastar outros R$ 8 milhões nos próximos anos.
Dos seis times que encerram hoje a fase classificatória do campeonato, apenas o Galícia é um time tradicional. E, por sinal, foi o único a chegar à nona rodada sem qualquer chance de classificação. Todos os outros concorrentes têm por trás um grupo empresarial, de diferentes setores, ou uma instituição religiosa/política.
Uma fabricante de polpas de frutas comprou o Atlanta de Jequié e o rebatizou de Doce Mel; o projeto social Nova Canaã, ligado à Igreja Universal, registrou na CBF em agosto de 2018 o Canaã Esporte Clube; o PFC Cajazeiras, do deputado e pastor Manassés, que no ano passado perdeu a vaga na primeira divisão para o Atlético, voltou este ano com sua sede em Cachoeira; o Esporte Clube Olímpia, criado pelo jogador Anderson Talisca em parceria com um investidor italiano; e a própria Unirb, que segue o modelo de sucesso da Associação Desportiva Bahia de Feira, atual vice-campeã da primeira divisão e que é controlada pelo Grupo Nobre, mantenedor de duas faculdades e um colégio em Feira de Santana.
Reta final
Na reta final da segundona, alguns times com chances de subir contrataram reforços. O PFC trouxe o técnico Paulo Sales, ex-jogador do Bahia no time campeão brasileiro de 1988 e que começou o campeonato no comando do Doce Mel. Apelidado de “Rei do acesso”, ele foi responsável pela classificação do Jequié para a primeira divisão em 2017, além de ter promovido o Hercílio Luz, de Santa Catarina.
Principal atração do time da Unirb, João Neto, ex-Bahia e ex-Portuguesa, está animado quanto às chances de o time figurar na primeira divisão em 2020. “Pela qualidade da equipe, a gente tem condições de ganhar”, afirma o atacante, campeão baiano em 2011 pelo Bahia de Feira, garantindo ter deixado de lado propostas de times de outros estados para ajudar o time caçula da cidade a subir. Por enquanto, a empreitada conta com a solidariedade da direção do Atlético, que não tem poupado esforços para o sucesso do time. “Vamos ver se a gente jogar contra eles no ano que vem como é que vai ficar”, brinca a superintendente.
O aumento do investimento em times do interior baiano é a face local de um fenômeno mundial. No início deste mês, foi divulgada a possível venda por R$ 100 milhões do CSA de Alagoas a uma empresa chinesa, que estaria disposta a investir na construção de uma arena. Em São Paulo, o Bragantino está em processo de fusão com o time da Red Bull. “Se esse modelo der certo, pode determinar o futuro dos times de futebol”, avalia o ex-presidente do Esporte Clube Bahia Marcelo Sant’Ana, que fundou em janeiro deste ano a empresa Footway Group, uma consultoria voltada para gestão de clubes e de carreiras de profissionais do futebol.
O ex-cartola sublinha que, entre os gigantes do esporte mais popular do planeta, apenas Barcelona, Real Madrid e Bayern de Munique são clubes associativos, que contam com milhares de associados, determinantes no orçamento e também na escolha de seus mandatários. O Chelsea pertence ao bilionário russo Roman Abramovich, o PSG de Neymar é controlado pela Oryx Qatar Sports Investments, e a Juventus, octacampeã italiana, é um dos negócios da família Agnelli, a mesma que comanda a Fiat.
Sobre o futuro da dupla BA-VI, Sant’Ana destaca que o Bahia começou recentemente um ciclo de aprofundamento do associativismo (o time criou inclusive novas categorias de sócios) e que o Vitória, com um novo presidente desde 24 de abril, vai depender do que for decidido por essa gestão. “Paulo Carneiro, que ganhou as eleições, foi quem implementou o Vitória S/A, na década de 1990. É preciso ver que modelo ele vai adotar”, pondera.
Um aspecto importante é que o investimento feito por empresários tem deixado de lado equipes que fizeram história no futebol baiano, mas entraram em decadência. “Há questões políticas envolvendo as diretorias desses clubes e, muitas vezes, dívidas trabalhistas, que levam o investidor a preferir montar um time”, define Sant’Ana.
Apostas
Em alguns casos, o objetivo principal da criação de um clube é a revelação de jogadores para posterior negociação com times de outros estados ou do exterior. Contratado pelo Olímpia, Edson Souza Aquino, 19 anos, acaba de voltar da China, onde atuava na equipe sub-20 do Guangzhou Evergrande, onde joga o seu primo Talisca.
Antes mesmo de estrear, já está em negociação com o Naestved, da Dinamarca, para onde deve ir no mês que vem, se tudo der certo. “No momento, minha cabeça está no Olímpia. Quero focar aqui para ser campeão, depois penso nisso. Mas provavelmente eu viajo em junho”, diz.
A equipe favorita para subir de divisão tem na presidência Ivone da Silva Souza, mãe de Talisca, mas é comandada na prática pelo diretor de futebol Ivan Conceição, que trabalhou no Vitória, no Real Salvador e no Bahia, onde conviveu com o fundador do Olímpia. “Se a gente subir, eu vou me sentar com o Talisca para fazer um planejamento para a primeira divisão, nesse momento o foco é conseguir o acesso”, disse Conceição, que não esconde entretanto que a meta principal do clube é a venda de atletas.
Antigamente, se dizia que futebol, religião e política não se discutem. Mas a regra claramente não se aplica a um time de futebol criado por um líder religioso e que tem atuação política. A transferência do mando de campo para Cachoeira reduziu pela metade os gastos do PFC Cajazeiras, na avaliação de Marco Antônio Novais, o pastor Manassés, que levou sua equipe para lá a convite do prefeito Fernando Antônio da Silva Pereira (Tato), de quem é aliado político. “O prefeito nos cedeu um sítio de sua propriedade, que serve de alojamento para os jogadores”, afirma o pastor. Embora o religioso não admita, a ajuda vai além de um cantinho para dormir. No jogo contra o Olímpia em Pituaçu, dia 27 de abril, os atletas do PFC Cajazeiras chegaram ao estádio em um ônibus da prefeitura municipal de Cachoeira.
O secretário municipal de Esportes de Cachoeira, Abimael Araújo, conhecido localmente como Dum, justifica a parceria com o clube afirmando que a cidade terá como legado o incentivo à prática de esportes e a possibilidade de jovens cachoeiranos se tornarem jogadores de futebol. Sobre o uso do ônibus da prefeitura, o secretário afirma que ele só é usado em pequenos deslocamentos e que em viagens mais longas o transporte fica a cargo do clube. Questionado sobre a presença do ônibus em Pituaçu, o secretário afirmou que era uma viagem curta.
Curiosamente, o clube foi criado com o nome de Pituaçu Futebol Clube. Depois surgiu a ideia de associar o time a uma região populosa da cidade, e a agremiação passou a se chamar PFC Cajazeiras. “O presidente já localizou um terreno em Cajazeiras e está negociando a compra. Até o ano que vem deve começar a construção de um centro de treinamento”, afirmou o gerente de futebol do PFC, Marcelo Souza Calado.
O presidente da Federação Baiana de Futebol, Ricardo Nonato de Lima, encara com naturalidade a crescente presença de empresas e grupos religiosos no futebol. “O importante é que está havendo investimento no futebol. O time da Canaã, por exemplo, está disputando campeonatos com as categorias de base”, afirma o dirigente, que ressalta as oportunidades que são criadas.
Referência
Daniel Pinheiro Lima, 21 anos, passou pelas divisões de base do Bahia, do Ypiranga e do Atlético de Alagoinhas até ser aproveitado no time profissional do Real Noroeste, time do Espírito Santo, onde ficou até 2018. Lá foi vice-campeão estadual no time montado por Vevé, treinador que foi contratado pela Unirb para a reta final da segunda divisão.
O jovem atleta havia abandonado o futebol para continuar os estudos. Técnico em meio ambiente, conseguiu um trabalho no governo do estado e foi tocando a vida até receber uma ligação do presidente do Atlético, informando que estava surgindo um time novo na cidade, vinculado a uma universidade e que havia possibilidade de conseguir uma bolsa de estudos. “Para mim, tem sido uma experiência incrível. Eu venho de uma comunidade carente, e lá as crianças me têm como referência”, diz o jovem, que mora em Simões Filho.
No Azurra, time de futsal infantil de sua cidade, Daniel atua como preparador físico dos meninos. “Eu sou um espelho para essa rapaziada, uma forma de mostrar para eles que dá para conciliar o futebol com os estudos”, diz o jovem zagueiro, que começou o campeonato como titular da Unirb, mas com a chegada de reforços está “compondo elenco”.
A história de Daniel reflete também a proposta que está sendo implementada pelo reitor da universidade. “Temos o objetivo de abrir 21 escolinhas de futebol”, diz Pereira. Serão mais jovens com a chance de perseguir o sonho de ser um jogador de futebol, mas com a segurança de que, se não acontecer um contrato com um grande time, a formação escolar vai permitir que se faça uma substituição.
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