ABRE ASPAS
“Renascer ficou no imaginário da gente”, diz Edvana Carvalho
Baiana dá vida à singular Inácia, governanta e conselheira do protagonista Zé Inocêncio
Por Gilson Jorge
O primeiro capítulo do remake de Renascer, com texto adaptado por Bruno Luperi, neto de Benedito Ruy Barbosa, autor da novela, foi ao ar na última segunda-feira na Globo, com todo o elenco reunido no Rio de Janeiro para acompanhar a estreia. No grupo estavam cinco baianos, inclusive a atriz Edvana Carvalho, que dá vida à singular Inácia, governanta e conselheira do protagonista Zé Inocêncio. “Quando recebi o convite para fazer o teste eu pulei de alegria. Sempre gostei muito dos textos de Benedito Ruy Barbosa. São textos profundos, de brasilidade, que contam a história da gente”, diz ela. Nesta entrevista, Edvana, que deu vida à personagem Dona Lúcia nos filmes Ó Paí Ó e Ó Paí Ó 2, relembra a formação do Bando de Teatro Olodum e fala do prazer de integrar o elenco da novela que assistiu do começo ao fim na versão original de 1993, sua relação com a Bahia e a vida cultural em Salvador.
Como está o ritmo de gravação da novela? Quando o primeiro capítulo foi ao na segunda, já tinham sido gravados quantos?
Renascer estreou com 24 capítulos gravados. Até agosto ou setembro, meu único projeto é a novela. As novelas de Benedito Ruy Barbosa têm poucas personagens, para uma novela das nove, que geralmente tem muitos personagens. As dele têm poucos, por isso as personagens têm a capacidade de profundidade. Também são muitos capítulos, muito texto. Há cenas que são quatro, cinco, seis páginas de texto. Tem que estudar muito. E a gente grava num ritmo intenso, de segunda a sábado, da manhã até a noite. Eu passei no mestrado em dramaturgia na Ufba, mas talvez tenha que trancar o semestre. Eu estou maluca (risos). Só faço ver letras, páginas. É a minha primeira novela das nove e eu estou vendo que não é brinquedo, não. E a personagem que estou fazendo, Inácia, é o braço direito e o esquerdo de Zé Inocêncio, interpretado na primeira fase por Humberto Carrão e, nessa segunda fase, por Marcos Palmeira. As personagens mudam de intérpretes de uma fase à outra. Só Matheus Nachtergaele, o Norberto, dono da venda, e eu fazemos as duas fases. Eu estou homenageando dona Chica Xavier [atriz baiana, morta em 2020] que fez a segunda fase, em 1993. Quem fez a primeira fase foi Solange Couto. Eu faço as duas. Estou tentando fazer uma mistura de Solange Couto com Chica Xavier, duas deusas, mulheres pretas maravilhosas. Não posso fazer igual, o que é humanamente impossível. Mas eu vou dar o meu toque para homenagear as duas. Inclusive pedi ao pessoal do figurino para fazer um brinco igual ao que Dona Chica Xavier usou na novela, que é um tributo a Iansã.
Como era sua relação com a novela Renascer em 1993? Você assistia? O que curtia mais?
Claro, foi um sucesso. Eu adoro as histórias de contação de casos. E também o fato de ser na Bahia. A história se passa em Ilhéus. Acho que tudo isso atraiu a gente do Nordeste para assistir a novela. Eu me lembro que estava com a minha filha recém-nascida nos braços. Eu estava casada, era uma família. E nós assistimos do primeiro ao último capítulo juntos. Foi uma novela que ficou no imaginário da gente. E quando recebi o convite para fazer o teste eu pulei de alegria. Sempre gostei muito dos textos de Benedito Ruy Barbosa. São textos profundos, de brasilidade, que contam a história da gente. E acho que Renascer tem uma coisa de quase realismo fantástico. O diabo na garrafinha, aquelas coisas que a gente ouvia quando ia passar férias no interior com nossas tias, que tinha história de lobisomem...
De onde é sua família?
De Salvador. A família de meu pai é do bairro Guarani e a da minha mãe do Curuzu, ambos na Liberdade. Eu cresci entre São Caetano e a Liberdade. Só que o bisavô de minha mãe era de Alagoinhas e a gente ia para a roça lá, na casa das primas. E eu tive essa oportunidade também de conviver com esse universo do interior, que é muito mágico para uma criança.
Você lembra de algo específico que lhe deixou maravilhada no jnterior quando era criança?
Nossa! Tomar café de manhã tirando o leite da vaca, depois acompanhar a colheita da mandioca, ralar a mandioca para a casa de farinha e dali sair farinha, beiju...
Você contou que assistiu a novela em 1993 com uma filha recém-nascida. Já tinha trabalhado como atriz?
Eu comecei a fazer teatro em um colégio público em São Caetano. Depois, estudei por quatro anos no Sesc Senac do Pelourinho. Fiz Oficina de Verão com Chica Carelli e daí a gente fez o Bando de Teatro do Olodum, criado por Chica, Márcio Meirelles, Maria Eugénia Millet, Leda Ornelas. Depois entraram Zebrinha, Jarbas Bittencourt. Grandes mestres passaram por ali. Desde a alfabetização até agora houve essas pessoas que deixaram suas marcas em mim. Depois, eu fiz a Escola de Teatro da Ufba e fui ensinar em escola pública.
Você participou de Ó Paí Ó (2007) e Ó Paí Ó 2 (2023). Entre os dois filmes, o clima político no país mudou radicalmente e isso gerou uma campanha de boicote ao lançamento do segundo filme no ano passado, por iniciativa da extrema-direita, em função do posicionamento público de Lázaro Ramos contra a reeleição de Bolsonaro. Mas o boicote acabou não funcionando. Como você viveu isso?
Eu não acho que a extrema-direita possa impedir Ó Paí Ó de existir. Há pessoas como você e eu, o pessoal do Bando, artistas, jornalistas, que pensamos diferente. Se eles tentaram boicote, eu não senti isso. Ninguém do Bando votou nele. Claro que Lazinho é o rosto mais conhecido de quem passou pelo Bando e os ataques foram mais direcionados a ele. Mas nenhum de nós votou nesse candidato. Eu não senti nenhuma retaliação em Salvador. Talvez tenha acontecido em outros lugares. Mas, de qualquer forma, eu sinto falta do DVD porque tinha as versões piratas e Ó Paí Ó era logo disseminado para o povão. A gente faz Ó Paí Ó para o povo que não tem condições de ir ao cinema assistir. A gente fez preços bem baixos em Salvador, principalmente ali no Cine Glauber Rocha. Foi feito e pensado para que a população da periferia pudesse ir. E foi o que aconteceu. O público de Ó Paí Ó, depois de 15 anos, estava esperando muito pelo filme. A gente devia isso ao público. Ninguém fez por dinheiro. Foi pelo público. Porque, independentemente de qualquer trabalho que a gente faça, as pessoas nos reconhecem na rua por Ó Paí Ó.
Você acha que o cinema, mesmo com preço baixo, ainda intimida a população pobre?
Óbvio, ainda tem o transporte que a pessoa tem que pegar, o lanchinho. Isso diminui a possibilidade de ir ao cinema no centro da cidade. Deveria haver cinemas e teatros em todos os bairros grandes para que as pessoas pudessem ir a pé.
Por falar nisso, quais são os grandes desafios que você vê em Salvador neste momento, em termos de cultura e também de vida urbana?
Olha, eu sou de Salvador e, deu bom ou deu ruim, vou continuar amando a cidade. Mas acho que Salvador está muito perigosa, como a gente nunca viu. A cidade tem uma cultura muito de rua, e isso inibe as pessoas. A gente tem passado uns perrengues por falta de segurança pública. E quando tem a segurança pública, ao invés de nos proteger, muitas vezes acontece o contrário. Mas acredito nas boas pessoas, e elas estão em todos os setores, inclusive na polícia. Eu quero muito ser otimista, para continuar vivendo na terra com esperança de mudanças. Mas eu sou Salvador, eu sou a Bahia. Tanto é que tem até um meme comigo, É a Bahia!.
Como surgiu isso?
Eu não sabia, liguei para minha filha desesperada perguntando o que era aquilo e ela me explicou que era um meme. Eu dizendo que não quero ser meme e minha filha dizendo que ser meme é bom. Em Ó Paí Ó, minha personagem, Dona Lúcia, tem embates constantes no tabuleiro da baiana, interpretada pela maravilhosa Rejane Maia. No Ó Paí Ó 2, infelizmente, não teve uma cena roteirizada entre a baiana e Dona Lúcia. Nos momentos de folga das gravações, Rejane estava lá com o tabuleiro dela e eu fui lá brincar com o meu celular, perguntando que horas saía o acarajé e ela entrou com a personagem: "Acarajé 11 horas, Lúcia? Só sai quatro e meia da tarde, se quiser", com aquele mau humor (risos). Eu viro o celular para mim e digo: "É a Bahia!". Minha prima de Pernambuco e minha filha, que cuidam do meu Instagram, pediram um vídeo de Ó Pai Ó para recortar e colocar na rede e acabou entrando esse vídeo de bastidores e não um do filme.
E como você está vendo a movimentação cultural em Salvador com a volta dos editais de cultura?
Estou desde setembro do ano passado meio fora de Salvador, envolvida em alguns projetos. Fiz um curta no Ceará que se chama Fenda, da baiana Lis Paim, que ainda não saiu, e vim direto para o Rio. Mas em termos de cultura, geralmente, a Prefeitura tem feito umas coisas bem legais. E estou esperando o que o Estado vai fazer na cultura para Salvador. Ainda não vi nada acontecer. Tem uns editais aí, mas edital pode salvar um ou outro artista. Penso que edital não pode ser tipo concurso, que uns ganham e outros ficam chupando dedo. Tem que ter um cadastro, porque existe o artista que faz teatro e faz TV, mas existe o artista do quilombo, do bairro, o cara que faz uma ação na comunidade, pessoas que precisam de dinheiro para fazer formação de crianças e adolescentes, fazer também formação de plateia, colocar as coisas na rua. E a gente está sozinha, cara. Sinto muito abandono. Margareth [a ministra da Cultura, Margareth Menezes], tem um coração muito grande, mas não sei até que ponto vai conseguir. Vi uma coisa boa que é esse projeto de reservar salas de cinema para filmes nacionais. [No último dia 16, o presidente Lula da Silva sancionou a Cota de Tela, que obriga os exibidores a programarem filmes brasileiros até 2033. O nível das cotas ainda será regulamentado].
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