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Rir ou não rir: como a pandemia afeta artistas que trabalham com o humor
Por Gilson Jorge

Não há dúvidas de que em algum momento no futuro a atriz Zeca de Abreu vai conseguir rir do que passou nos dois primeiros meses deste ano, quando seu nervosismo durante a internação de sua irmã em um hospital, vítima de pneumonia, produziu diálogos que de fato poderiam estar em uma comédia, já que o final da história foi feliz.
Discussões com a equipe médica, a tensão de ver a irmã correndo risco de morte. Seguramente, isso vai ser contado a amigos com exageros e toques de dramaticidade com a sua capacidade de fazer rir.
“Quando tudo dá certo, a gente consegue transformar a dor em alegria”, declara. Mas, nesse momento, ela não tem achado graça nas coisas a ponto de querer provocar o riso em outras pessoas.
“Eu até fiz duas lives, lá atrás, um programa chamado Mergulhando com Zeca de Abreu: da putaria à filosofia. Ia fazer a terceira, mas não sei. Enchi o saco. E também todo mundo agora está fazendo live. É um momento duro para o artista que depende do público”, afirma a atriz, para quem a sociedade precisa refletir sobre seu modo de vida.
Não se trata apenas das mortes, mas de um processo de mudança de comportamento. “Precisamos ver o mundo de uma forma diferente, ter uma ação diferente”, avalia a atriz. Ela ressalta que não tem uma postura de criticar quem está se dedicando ao riso, até porque para quem está confinado em casa a oferta de entretenimento lúdico é bem-vinda.
Às vezes, o difícil é conseguir dentro de si o ânimo para provocar o riso. Não apenas por pruridos morais, mas pela falta de interação com o público, que, afinal, é o que dá sintonia ao humor. No último dia 16 de março, o humorista Gregório Duvivier escreveu em sua coluna na Folha de S.Paulo um texto cujo título era “Faz um ano que todos os dias são iguais e hoje não consegui render nada”.
Stand-up
A ausência de contato com o público é uma das principais lamentações do comediante Guga Walla, integrante do elenco fixo da The Comedy House, primeira casa de Salvador dedicada ao stand-up, tipo de apresentação em que o humorista faz um monólogo para a plateia, e que ainda não tem prazo para voltar, mesmo com a liberação parcial de funcionamento para bares e restaurantes.
Sem a receita de suas aulas particulares de interpretação e sem as apresentações presenciais no The Comedy House, Guga tem se dedicado à internet, com lives no Instagram e um programa chamado Online Metendo, que vai ao ar esporadicamente pelo Zoom. “Sinto falta da resposta rápida do público no palco”, diz o comediante.

Guga, que iniciou a carreira fazendo shows para hóspedes do antigo Club Med, em Itaparica, é mais conhecido por interpretar o torcedor do Bahia Jair, da dupla Jair e Vicentino.
Sobre o humor no mundo pós-pandemia, o comediante afirma: “Tem isso que chamam de o novo normal, vamos nos adaptar”. Atualmente, o principal motivo para os sorrisos do comediante é a filha, nascida há dois meses, que tem dado novo sentido ao seu confinamento.
Palhaça há mais de 20 anos, Felícia de Castro estava em São Paulo quando começou o isolamento social há mais de um ano. Tinha cursos de palhaçaria e feminismo a ministrar agendados no Rio e em Salvador quando começou a fechar tudo.
Desde então, tem se dedicado aos cursos e vivências online, enquanto vai tocando a vida em isolamento junto com o filho de 7 anos. “A palhaçaria é uma grande medicina”, define a artista.
Ela pondera que não dá para rir com a tragédia, mas considera usar os fracassos da humanidade como matéria-prima para o humor. “É o momento de nos irmanarmos em compaixão nesse momento de tragédia humana”, afirma.
Reverter tragédia em riso é a missão do humorista, aponta o ator e músico Zéu Britto, que, mesmo com a tensão provocada pela disseminação do vírus, continua a fazer graça com a mesma desenvoltura de sempre.
Depois de ter se apresentado no Rio, em Teresina e em Salvador, no início do ano passado, com a turnê Sem Concerto, Zéu interrompeu a agenda para levar os pais de carro até Jequié, sua cidade natal, e quando voltou a Salvador já enfrentou o isolamento social.
Tinha a preocupação intensa de passar álcool em gel, no carro, em tudo que tocava, mas continuou a rir e a fazer piadas com a naturalidade de sempre, do jeito que o humor lhe ocorria.
“Eu tive que reinventar o ano inteiro, inventar como fazer humor. Aí voltou meu lance no Instagram que eu gosto muito, meu canal no YouTube, porque o artista tem que se manifestar”, defende Zéu, repetindo o “tem que se manifestar”.
“Era muita agonia com o álcool em gel, com a proteção, mas fazendo piada com tudo isso nos vídeos”, relata o artista, que fez uma espécie de reality show mostrando como ele e a família estavam se cuidando.
“Calabouço do esquecimento”
Mas, apesar da facilidade em transformar tragédias em contos engraçados, Zéu avalia que há muita coisa sobre o que não se pode rir. “É isso que me preocupa. A risada de coisa desnecessária nos colocou nessa situação em que estamos de governo, independentemente da doença. A doença pegou todo mundo, é internacional. Mas, no que tange a mim, como humorista, não faria graça, personagem, com o presidente que aí está”, afirma o artista.
Ele considera que o humor em torno da figura do presidente ajudou a trazer à tona coisas que estavam no que ele classifica como calabouço do esquecimento. “O bullying, o preconceito com o que o outro é, o preconceito racial, xenofobia, feminicídio. Se eu for falar de coisa aqui eu vou até chorar”, diz o artista, para quem todas essas atitudes encontraram eco na permissividade do riso.
“Riram e fizeram personagem com quem não deviam. Mas eu também não quero ser o careta, aquele que condena qualquer tipo de humor”, pontua.
Zéu define como bizarra a coincidência entre o momento político do Brasil e a pandemia. “Acontecerem barbaridades nesse período soa mais cruel ainda”, diz ele, que garante apagar a crise sanitária da mente quando vai trabalhar e se concentrar no cotidiano.
“Estar vivo é muito engraçado, independentemente de qualquer momento histórico péssimo”, diz o artista, que busca o humor cotidiano contido numa resposta de um entrevistado por uma equipe de TV ou um comentário fora de propósito numa reunião familiar.
“Mexer com as pessoas, tirar humor delas, esse é meu lance, independentemente do que esteja acontecendo com o mundo, de pandemia a bomba nuclear”.
Dercy
Sobre a política, em geral, faz questão de se declarar desinteressado em brincar com o tema, mas cita como referência no assunto a falecida humorista Dercy Gonçalves. “Ela conseguiu transformar uma entrevista a Jô Soares num espetáculo de teatro, falando dos políticos da terra dela, apontando um por um e o que eles estavam fazendo de errado”, diverte -se.
Às vezes, o humor serve justamente como trampolim para a política, mesmo que de forma involuntária, como no caso do extinto CQC. Após a eleição do presidente Jair Bolsonaro, que antes de se tornar candidato era constantemente ridicularizado no programa, a atriz e comediante Mônica Iozzi usou suas redes sociais para, às lágrimas, pedir desculpas por ter ajudado a popularizar o político.
Com o slogan Pior que está não fica, o palhaço Tiririca se tornou em 2010 o quarto deputado federal mais votado da história do país, com 1.348.295 votos.
Vereador em Lauro de Freitas há três meses, depois de receber 1.165 votos com o personagem Tenóbio, o humorista Gabriel Bandarra diz que seu histórico é diferente do político e palhaço paulista, pois, declara, sempre teve uma atuação política.
Bandarra considera que esse é um dos momentos mais difíceis da humanidade. “É o momento de quebrar um pouco, de sair do problema, é um bom momento para fazer humor”, acredita o político e humorista, que perdeu um parente para a Covid-19.
Ele ficou conhecido em todo o país com o personagem do Argentino do Arrocha, com o qual chegou a aparecer no Domingão do Faustão. Tornou-se sócio do site Burburinho News e há pouco tempo criou o personagem Tenóbio, com o qual viajou pelo interior fazendo vídeos críticos a administrações municipais.
No YouTube, é possível ver um vídeo em que Tenóbio critica o toque de recolher imposto durante a pandemia pela prefeitura de Lauro de Freitas, cidade que hoje o tem como representante popular no Legislativo.
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