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“Sempre foi difícil me colocar numa prateleira”, diz atriz Laila Garin
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Em um palco escuro, com apenas um feixe de luz, surge uma mulher de vestido que, de costas, entoa: “Os sonhos mais lindos sonhei, de quimeras mil, um castelo ergui”. É a atriz baiana Laila Garin que interpreta Elis Regina no espetáculo Elis, A Musical, que completou uma década no mês passado, e volta aos palcos em novembro. Com cabelos rebeldes e 20 centímetros mais alta do que Elis, Laila encontra nos detalhes a força para interpretar quem quiser.
“Quando a gente conversa com alguém, não importa muito as palavras que se usa, importa a energia que você emana”, diz a artista. Filha de pai francês e mãe baiana, Laila saiu de Salvador aos 24 anos para “puxar o próprio tapete”, como diz, e buscar novos desafios. Morou na França, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Desde então, tem acumulado personagens de mulheres intensas como as cantoras Edith Piaf, Carmen Miranda e Clara Nunes.
Mais recentemente, interpreta Norma, uma mulher prestativa e amigável na série Fim, da Globoplay, que estreou no último dia 25 e lança dois episódios por semana. Já são quatro lançados, de 10 no total. Baseada no romance homônimo de Fernanda Torres, a produção trata sobre um grupo de amigos do Rio de Janeiro que se conheceu na juventude e manteve a relação até a velhice. De São Paulo, onde mora, Laila, que já recebeu prêmios de Melhor Atriz de teatro, como o Prêmio Shell e Prêmio APCA, fala nesta entrevista sobre a sua trajetória, da saudade de Salvador e de questões polêmicas, como inteligência artificial, ética, direitos autorais e falta de apoio à cultura.
Como ficou a sua relação com Salvador desde que deixou de morar na cidade?
Eu vivi em Salvador por 24 anos. Sou cria da Escola de Teatro da Ufba [Universidade Federal da Bahia]. Só depois de formada é que fui fazer um estágio na França e, em 2003, vim morar em São Paulo. A relação com Salvador não ficou como eu queria. A gente vivia outros tempos e eu tive que aguentar minha saudade e investir muito tempo na batalha que é São Paulo. Mas eu volto para Salvador sempre com os espetáculos. Sempre que posso e a produção permite, passo por Salvador. Minha família mora aí também, então, vou sempre passar Natal e cuidar da minha mãe.
Quais eram as atrizes baianas que lhe inspiravam na época em que morava em Salvador?
Eu assistia de tudo. Assisti A Bofetada, Los Catedrásticos e Dendê e Dengo, com Rita Assemany e Iami Rebouças. Eu até fundei um fã-clube para Rita Assemany quando eu tinha uns 13 anos porque eu gostava muito dela. Cheguei a trabalhar com ela em Medeia, ela fazia Medeia e eu era do coro.
Você sentiu a necessidade de ir para o eixo Rio-São Paulo para dar vazão à sua multiplicidade?
Eu acho que não foi por isso. Quando saí de Salvador, a cidade estava num momento muito efervescente de teatro e eu estava muito feliz aí. Em Salvador, as peças, mesmo quando não são chamadas de musical, já têm essa multidisciplinaridade que é própria do baiano. Eu comecei a cantar porque toda peça de teatro que a gente fazia, a gente cantava. Daí, eu fui estudar canto lírico, dança e mímica. A Bahia dá conta. O que eu queria era puxar um pouco do meu tapete, me sentir menos confortável, passar por novos desafios. Era mais uma fome de mundo e de diversidade do que uma insatisfação com Salvador.
Você já passou por diversas plataformas, como teatro, streaming, cinema e novela. Sempre pensou em ser uma artista multiplataforma ou isso foi acontecendo?
Isso foi acontecendo. Durante um tempo isso foi até um problema, porque as pessoas têm necessidade de te classificar e sempre foi difícil me colocar numa prateleira. Sou uma baiana sem cara de baiana, sou uma francesa que é brasileira, sou cantora, mas sou atriz. As coisas mudaram porque, antigamente, só tinha Fábio Jr., que teve que escolher virar mais cantor que ator. A referência que eu tinha era televisão e o teatro, então, eu desejava fazer novela. Mas era algo muito impossível, porque era uma baiana com um cabelo que todo mundo alisava, que sofria bullying, que achava que não combinava com a televisão. Demorei a acreditar, mas foi acontecendo. Porém, sempre fui buscando pelo teatro. Eu sou multi, mas eu me considero filha do teatro. É a partir dele que eu vou para qualquer lugar. Quando eu vou trabalhar como cantora, por exemplo, meu approach é como atriz. Eu encaro o arranjo de uma música como dramaturgia.
Você já interpretou Edith Piaf, Carmen Miranda e Elis Regina, mulheres fortes e que passaram por muito sofrimento. Como se relaciona com a história delas?
Talvez eu busque fazer essas mulheres fortes para tentar entender a minha mãe e homenageá-la, mas eu adoro catarse, amo as emoções fortes. Eu tenho, realmente, essa aproximação com mulheres muito fortes. Mas eu também fiz Macabéa, que é o oposto de tudo isso, e foi incrível fazer uma mulher frágil. Eu acho que para cada uma tem uma coisa. Elis, para mim, é minha declaração de amor a essa geração dela. Acho que é um pessoal que fez muito pela humanidade, pela liberdade, pelos direitos humanos, que é essa geração com a idade de Elis, dos meus pais. Sou muito apaixonada por essa galera como Gil, Caetano, Ney Matogrosso. Elis continua potente hoje. Eu achei que ia fazer uma celebração de 10 anos de musical, mas ela está muito viva, principalmente para os jovens.
Como é a preparação para viver personagens baseadas em pessoas reais?
Dennis Carvalho, diretor do musical, me dizia que não queria que eu imitasse Elis Regina. Tanto que escolheu a atriz que menos se parecia com ela para fazer. E me dei essa liberdade. Elis tem muito material de vídeo, áudio, show, entrevista, então, você pode pegar gestos e trejeitos. É um prato cheio. Eu pensava: "Eu não tenho acesso às vísceras dela, só tenho acesso às minhas", daí eu conclui que tinha que colocar ali o que era meu. Pensei no que Elis me tocava, como eu a sentia. Quando a gente conversa com alguém, não importa muito as palavras que você usa, importa a energia que você emana. Então, depois, fazendo Carmen Miranda, Clara Nunes, eu entendi que, sim, tem um trejeito e outro que você pega, mas o que importa mesmo é a energia que você coloca em cena. E a essência é difícil de aprender. Eu assisti a muitos vídeos, mas o que eu mais fiz foi sentir, não é um processo muito racional. A gente brinca com o imaginário das pessoas. Eu faço um gesto de mão aqui que lembra o de Carmen Miranda e a pessoa que assiste acredita e, naquele momento, você cria um pacto com ela. É quase como se fosse uma brincadeira de marionete.
Recentemente, houve uma polêmica da presença de Elis Regina em um comercial a partir do uso de inteligência artificial. Tendo interpretado tantas pessoas reais, como você pensa que deve ser equilibrada a homenagem e o respeito ao legado daquela pessoa?
Eu não assisti ao comercial. Pensando de uma maneira geral, tem coisas em relação à inteligência artificial que são gravíssimas. Eu acho que a gente não tem ética sólida suficiente para lidar com as nossas questões, com os direitos autorais, com o respeito ao trabalho, por exemplo. Não confio na ética do ser humano porque ela não dá conta nem do que a gente tem aqui, no plano humano. Eu acho perigoso porque o ser humano já mostrou que não presta. A humanidade deu errado. Eu morro de medo do que possa acontecer com o uso dessa inteligência, morro de medo da Alexa [assistente virtual da Amazon]. Eu nunca quis morrer, sempre achei uma sacanagem esse negócio de morrer. Mas, do jeito que vão as coisas, eu estou pensando que essa história de ficar aqui para sempre não vale a pena. Sou trágica.
Nos últimos anos, os artistas, especialmente, atrizes e atores têm sido sistematicamente atacados no Brasil. Como é que tem sido essa luta e o que ainda é preciso para garantir o direito à arte no país?
Tem uma ignorância muito grande. A origem de tudo isso é a falta de educação. Enquanto a arte não tiver na cesta básica do cidadão, a gente vai passar fome. Você não mata alguém na rua só porque você não tem uma arma ou porque não tem dinheiro. Você não mata uma pessoa porque você tem um valor de amor à vida, respeito ao próximo, compaixão e empatia. Como é que se cria esse valor? Através da arte e da educação. Só que esses valores estão ameaçados. Enquanto a gente achar que arte é supérfluo, estamos com alguma coisa errada, porque estamos achando que valores éticos não são fundamentais.
Como foi a experiência e como foi participar da adaptação do livro Fim para a série da Globoplay?
Eu não tenho ídolos. Mas, eu sou, desde sempre, apaixonada por Fernanda Torres. Sabia de cor o texto inteiro do filme Eu sei que vou te amar. Ela é genial. Já tinha lido o livro e amado e, de repente, depois de eu fazer um episódio da série Sob Pressão e Chacrinha, com [o diretor] Andrucha Waddington, ele me chamou para fazer Fim. Foi uma coincidência da vida muito linda. Eu acho esse livro incrível e a série desenvolve mais os personagens femininos, vai mais para o passado, não fica só no momento antes da morte. Foi maravilhoso desenvolver essas histórias com um elenco incrível. A gente fez uma preparação para esse envelhecimento, porque é o grande barato da série. O protagonista da série é o tempo, como a vida nos transforma.
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