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Som em trânsito: artistas discutem problema histórico da circulação da música em Salvador
Por Daniel Oliveira
A capital baiana é conhecida dentro e fora do Brasil pela sua potente e vasta produção musical. Uma cultura vigorosa, que atravessa a última virada de século, passando antes por Dorival Caymmi e João Gilberto, Tropicália, Novos Baianos, o rock de Raul e Pitty, o ambiente carnavalesco da axé-music e, mais recentemente, por uma diversa, criativa e relativamente nova geração de artistas.
Em 2015, Salvador recebeu, da Unesco, o título de Cidade da Música. A única capital brasileira com tal reconhecimento. Todo esse legado se faz presente tanto no cotidiano como na sua imagem, nos seus componentes simbólicos e de identidade. E, mais do que isso, configura-se como uma força motriz que se renova, trazendo também novos desafios para quem vive a música. Principalmente os que dizem respeito à circulação: a oferta e a abertura de lugares para shows, as possibilidades de estúdio de gravação e a ampliação da visibilidade dos artistas para a construção de um cenário mais sustentável.
Simultaneamente à intensificação do enfraquecimento do mercado da axé-music de 2010 para cá, ocorre um novo processo de transformação da realidade musical local. Artistas de estilos variados, que surgiram no universo alternativo da cidade a partir dos anos 2000 – e não negam a importância sonora da axé-music –, têm-se destacado de maneira crescente nos últimos anos em Salvador e em outros lugares do país.
A lista é extensa: BaianaSystem, Attoxxa, Larissa Luz, Maglore, Ronei Jorge, Josyara, IFÁ, Giovani Cidreira, Lívia Mattos, Baco Exu do Blues, Lívia Nery, Jadsa Castro, Radio Mundi, Luedji Luna, Duo BaVi, Tabuleiro Musiquim, Aiace Félix, Funfun Dúdú, Afrocidade, Orquestra Rumpilezz e muitos outros. Segundo o jornalista, DJ, produtor, curador e realizador do Festival Radioca Luciano Matos, que vem catalogando anualmente os lançamentos fonográficos, são, em média, 150 discos baianos por ano, a maioria de Salvador. “Muita coisa do circuito independente, pouca coisa além disso. E com muita qualidade”, diz.
Ele percebe, dentro da diversidade de estilos, uma atenção especial dada pelos artistas aos sons afro-baianos e ao eletrônico. “Não tem uma sonoridade única, é claro. Mas acho que tem uma coisa dos ritmos e sonoridades ligadas ao Carnaval, às festas, que existia há algum tempo, mas que o axé tomou para si e que durante um tempo ninguém ou pouca gente explorava de outras formas. Isso, hoje, junto com o eletrônico, aparece mais. Tem a ver um pouco com a perda de receio de utilizar esses elementos mais caracteristicamente baianos”.
Embora o cenário musical tenha essa intensa e criativa produção, ainda há dificuldades e desafios. Um indício é a mudança de uma parte desses artistas para outras capitais, especialmente São Paulo, ou a alternância entre elas ao longo do ano. Em outras épocas, talvez até mais restritas em termos de gravação e circulação, isso também aconteceu com bandas, cantores e compositores. No entanto, o contexto atual guarda as suas particularidades.
Diferentes trajetos
Para Teago Oliveira, cantor e compositor da banda Maglore, que reside em solos paulistanos há cerca de seis anos, esse movimento de migração ainda tem ocorrido, entre outros motivos, por conta da facilidade, estando em São Paulo, de circulação para outras capitais. As distâncias são encurtadas e os roteiros por diferentes lugares são favorecidos.
Ao avaliar as condições cotidianas para fazer música em Salvador, Teago identifica a falta de uma quantidade maior de profissionais qualificados nas áreas de produção, sonorização e iluminação, o que também dificulta a circulação na capital baiana. Apesar disso, constata-se que a cena musical da cidade tem sido alvo de holofotes da imprensa do Sul, de interesse do público e de outros artistas nacionalmente. “Salvador está virando referência estética em São Paulo”, afirma.
Giovani Cidreira, Josyara, Lívia Nery, Luedji Luna, Jadsa Castro, Tiganá Santana, e os integrantes da banda de rock Vivendo do Ócio também estão morando atualmente em São Paulo. Lá alguns têm se conectado, dialogado e, na medida do possível, feito shows e projetos conjuntos.
Como conta a cantora e compositora Josyara, que nasceu em Juazeiro, chegou a Salvador aos 15 anos e em breve vai lançar seu segundo álbum, Mansa Fúria, produzido por Junix e apoiado pelo projeto Natura Musical, existe uma ligação de sonoridade entre os artistas. “Vejo uma semelhança na canção, na cantoria, particularmente entre mim, Giovani e Jadsa, mas também há uma coisa rítmica, dançante, que também vem da axé-music. Então, essa cena atual é muito dançante, apesar de ter coisas profundas e densas, tem uma coisa de vibração”, reflete.
Ela conta que o seu movimento de ida para São Paulo resulta, entre outras razões, de uma saturação das possibilidades de lugares para apresentação. “Fiz muita coisa antes, casas, barzinho e chegou uma hora que não tinha mais onde tocar. Ainda temos poucos espaços para música autoral, com estrutura, que recebe o som independentemente de bilheteria. Os espaços ainda são poucos e pequenos. Então, para gerar uma renda de cachê é muito complicado”.
Além dos teatros, praças e largos mantidos pelo Estado, com programação de shows, funcionam hoje em Salvador 30 estabelecimentos com alvará para a realização de eventos sonoros ao vivo, segundo dados fornecidos pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano.
No caso de Josyara, se, por um lado, as dificuldades de circulação mais ampla contribuíram para a tomada desse percurso em direção a São Paulo, por outro, havia também um desejo de interagir com artistas que circulam na capital paulista. “Via que existia uma cena acontecendo aqui, que já tinha tocado em tudo que é canto, mas que também precisava dar uma olhada para lá também”.
Outra opção escolhida por alguns artistas é o trânsito contínuo entre Salvador e outras cidades. É o caso da cantora e compositora Larissa Luz, que tem rodado, com mais frequência, entre o Rio, São Paulo e a capital baiana. “Acredito nesse caminho, circulando. Criando novos vínculos sem deixar de ter as raízes fincadas no meu lugar de origem. No eixo Rio-São Paulo é notório que conseguimos angariar mais coisas e num ritmo diferente, mas não é uma regra”, considera.
Desafios do instrumental
Para os artistas da música instrumental, os desafios de circulação são ainda maiores. O grupo IFÁ, um dos mais representativos desta cena, ao lado da Orquestra Rumpilezz, tem feito apresentações tanto na capital baiana como fora do estado desde o lançamento do seu primeiro disco cheio, em 2016.
O baterista Jorge Dubman pensa que, embora hoje seja possível “produzir o próprio álbum dentro do seu quarto com um PC, placa de som e um software” ou com o patrocínio do Estado por meio das políticas de editais, a circulação é um entrave para o fortalecimento da cena soteropolitana.
“O grande problema é a circulação. Vejo muitos artistas com ótimos trabalhos, mas que não têm a oportunidade de se apresentar fora do seu estado ou país. O artista não vive só do trabalho local, e sim da expansão desse trabalho. É a hora de sair, entende? Salvador não tem casas de shows de médio e grande porte, e isso dificulta, principalmente se a banda for grande”, expõe Dubman, que, além do IFÁ, teve dois álbuns, 90’s Mindz e Drumahmental, do projeto solo Dr. Drumah, lançados por selos estrangeiros.
Em tempos de crescimento e de transformação da cena musical da cidade, o cantor e compositor do grupo Radio Mundi, Vince Athayde, que também é produtor e proprietário da casa de show Commons Studio Bar (Rio Vermelho), acredita que a falta de uma distribuição econômica mais justa de recursos para o Nordeste, num período de crise econômica e instabilidade política, também prejudica o mercado e a circulação musical em Salvador. “Isso também explica a questão migratória para São Paulo”.
Espaços variados
De acordo com Vince, que já fez parte dos grupos Lampirônicos e Vince de Mira e o Batuque do Vigia, há um circuito de espaços de show, de pequeno porte, entre 50 e 300 pessoas, como Lalá Multiespaço, Commons Studio Bar e Lebowski Pub, de médio porte (praças e largos do Pelourinho) com capacidade de até mil pessoas e de grande porte, por exemplo, a Concha Acústica, para até cinco mil.
“Essas casas fazem um papel de transição. Quando você consegue ver que o seu som está crescendo, levando mil pessoas para o Pelourinho, acontece uma migração de porte. E a partir daí é interessante apostar no mercado de São Paulo e de outros estados”, opina o artista e produtor. Ele também questiona a pertinência da noção de música alternativa aplicada a essa cena soteropolitana atual: “Há um tempo o que não era axé-music é que era o alternativo. As bandas todas de reggae e de rock faziam parte desse pacotão”.
Mesmo com essa multiplicidade de lugares, de diferentes tamanhos e características, que já significam um avanço em relação há 10, 20 anos, percebe-se um certo consenso entre artistas e produtores quanto à concentração das casas no Rio Vermelho e à necessidade de ampliação do circuito. Para Luciano Matos, isso vem acontecendo: “É concentrado no Rio Vermelho, mas também já está começando a mudar. O Santo Antônio tem opções e outros bairros começam aos poucos. Mas acho que ainda falta estrutura”.
De outro ângulo, nota-se atualmente uma pluralidade maior de públicos frequentadores do bairro, nos espaços fechados, nas ruas e nas balaustradas. “O Rio Vermelho é o lugar onde tem todos os nichos reunidos. Não era assim na década de 1990. Tem uma série de casas de shows, vai abrindo espaços. Vejo uma diferença muito grande nos últimos 20 anos na circulação dentro de Salvador”, fala Vince.
O papel do Estado e da prefeitura também é considerado central nos desafios para a expansão das possibilidades dessa cena musical no cotidiano de Salvador. Para Josyara, “como é Cidade da Música, tem que ter festivais na rua, inserindo os artistas que estão no dia a dia, em espaços abertos, sem necessariamente precisar de edital. Não ter tanta burocracia. Mas, ao mesmo tempo, ter as chamadas de edital”. Iniciativas próprias, como aponta Dubman, também são importantes: “Os editais são ótimas ferramentas para realizar um trabalho bacana e com uma certa estrutura, mas nem todos têm essa sorte de ser contemplados, e é aí que entra o “faça você mesmo” produzindo seu próprio material no quarto com uma mínima estrutura, mas com muita verdade e amor no que está fazendo”, acredita. Aliado a isso, a realização de festivais, como o Radioca, Lado BA, Big Bands, e as premiações, a exemplo do Festival da Educadora e do Caymmi de Música, são essenciais.
Temporada de verão
Um fato que ainda caracteriza a cena musical de Salvador é a sazonalidade do mercado e da circulação, ainda muito centrada no verão. É o período no qual a cidade tem mais movimento nas ruas, as praias ficam lotadas e as casas de show e bares cheios quase diariamente. Tal fluxo é levado ao ápice no Carnaval. Nesses meses, os artistas soteropolitanos que vivem em São Paulo e Rio de Janeiro retornam para Salvador e os circuitos locais são ampliados.
“É uma coisa que está na gente. É muito clara a quebra quando começa o verão e depois que acaba. No verão todo mundo vai para a rua, as pessoas de fora vêm fazer mais shows, tem as produções, entra mais renda. Tem mais fervor mesmo. Por mais que ainda haja poucos espaços, aqui a gente tem muito assunto, projetos”, completa Josyara, que passou a última temporada de verão na cidade.
Isso não significa, entretanto, que a agenda do restante do ano seja vazia. Luciano Matos, no seu site El Cabong, vem listando, por exemplo, mais de 20 eventos, em média, por final de semana – quase sempre com maioria de artistas autorais. Embora haja movimento o ano inteiro, os maiores projetos e investimentos ocorrem entre novembro e fevereiro.
Com grande diversidade rítmica, de gêneros e referências, que abarca e reivindica contextos variados da música feita em Salvador – de samba do Recôncavo, samba-reggae e pagode até o rock, a cúmbia, o funk e o eletrônico –, essa expressiva cena musical se depara com problemas históricos de circulação, mas também reconhece e promove avanços na cidade, sejam em iniciativas próprias ou em políticas públicas. Como acredita Larissa Luz, “Salvador tem um potencial incrível. Dá para organizar a cena de um modo que se torne sustentável, sem que seja necessário sair para conseguir produzir e fazer a carreira evoluir”.
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