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Sustância com afeto: conheça histórias e tradições das baianas de mingau

Por Tatiana Mendonça

07/05/2018 - 11:25 h | Atualizada em 21/01/2021 - 0:00
Nos tabuleiros das baianas há mingau de milho, tapioca e aveia
Nos tabuleiros das baianas há mingau de milho, tapioca e aveia -

Comida é também, e talvez principalmente, memória afetiva. Não tem prato chique de restaurante estrelado que supere verdadeiramente uma qualquer delícia que se costumava comer quando pequeno, vindo de umas mãos amorosas que eram o próprio acalento. Para muita gente, um desses alimentos é o mingau, tão simplesinho, tão reconfortante.

Quando a vida vira uma correria doida e faltam a mãe, o pai, habilidades ou tempo, é possível encontrá-lo nas ruas de Salvador, vendidos por mulheres que amanhecem no meio da madrugada, com o céu ainda escuro, para preparar mingaus de milho, aveia, tapioca, carimã.

Rosemeire Pereira, 37, levanta às 3h da manhã e sai de Plataforma, onde mora, às 5h. Há sete anos mantém um tabuleiro no Campo Grande, no mesmo lugar onde a mãe, Maria da Conceição, trabalhou por quase quatro décadas.

Quando era pequena, Rose costumava acompanhá-la. Lembra que tirava uns cochilos nos fundos do posto policial que fica ali perto, deitada num pedaço de plástico que a mãe estendia. Uma vez, ela lhe perguntou o que queria ser quando crescesse, e Rose disse que ia vender mingau também. “Deus é mais!”, respondeu dona Maria, assustada de que a filha lhe herdasse a lida, mas não houve jeito.

Imagem ilustrativa da imagem Sustância com afeto: conheça histórias e tradições das baianas de mingau
| Foto: Luciano Carcará / Ag. A Tarde
Rosimeire tem um tabuleiro no Campo Grande; sua mãe trabalhou lá por 40 anos. Foto: Luciano Carcará / Ag. A Tarde

Depois de trabalhar um tempo como operadora de caixa num shopping center, Rose acabou perdendo o emprego e, então, voltou de vez ao tabuleiro. “É bom, porque tenho mais liberdade e praticamente a mesma renda”. Ali vende os mingaus – são sempre duas panelas cheias, o de milho, sagrado, e outro sabor que costuma variar –, bolos, lelê e café, claro, que não pode faltar.

As receitas do mingau são “em off”, ela diz, mas não contou nenhuma, então estão mais para secretas mesmo. Por um copo de mingau, daqueles de 300 ml, cobra R$ 3. Um homem chegou pedindo um. “Esse é bom, você sente o milho mesmo. Tem outros que só de longe”.

Uma mulher que proseava sentada num banquinho contou que passa ali todos os dias antes de ir para o trabalho e, inclusive, leva uma vasilha plástica que faz as vezes de marmita de mingau para agradar aos chefes. Naquele dia, foi mungunzá.

Às 10h30, Rose se arruma para voltar para casa. Vai lavar as panelas, bater o coco, preparar os bolos, além de cuidar dos afazeres domésticos e da filha, de 11 anos. No outro dia, tudo de novo. “Não posso nem viajar. Quando não venho, ouço lera depois”.

As baianas de mingau são, possivelmente, tão antigas quanto as de acarajé, embora sejam bem menos famosas. Descendem todas das chamadas “escravas de ganho”, que trabalhavam para dar boa vida aos seus senhores e ficavam com uma parte pequena das vendas. Apesar de terem retirado a iguaria do ambiente doméstico, a origem do mingau é indígena e vem do tupi (“comida que gruda”).

Em Arte Culinária na Bahia, Manuel Querino escreve, um tanto injustamente, que “embora a contribuição do silvícola fosse muito acanhada e rudimentar, todavia, deixou-nos a pamonha e a canjica feitas de milho, o beiju e o mingau preparados com a farinha de mandioca ou com a tapioca”.

Luta e formosura

Para o chef e consultor Alicio Charoth, não devemos levar essa história de origem tão a sério, que essa missão de encontrar pureza no Brasil é mesmo impossível. “A pobreza se irmana. Precisamos sempre reconhecer a importância das inter-relações sociais na formação do paladar brasileiro. Está tudo entrecruzado”. Mais importante, defende, é “engrandecer” o trabalho das baianas de mingau. “São mulheres lutadoras, que precisam ser fortalecidas”.

Imagem ilustrativa da imagem Sustância com afeto: conheça histórias e tradições das baianas de mingau
| Foto: Luciano Carcará / Ag. A Tarde
Elza Oliveira, 61, vende mingau há 25 anos. Foto: Luciano Carcará / Ag. A Tarde

Quando está pelo centro da cidade, Alicio as “prestigia” comprando mingaus de tapioca e de milho. “Gosto muito, quando bem feito. Tem que usar milho de verdade, por exemplo, o de pacote não é legal. E estou percebendo que algumas estão usando muito açúcar, o que acaba mascarando os sabores”.

Há cerca de 25 anos, Elza Oliveira, 61, vende mingaus, bolos e cuscuz no miolo do Largo 2 de Julho, onde mora. Foi parar ali depois de passar um tempo com seu tabuleiro em frente ao Mercado Modelo, nas proximidades do Shopping Piedade e perto de um posto médico do Imbuí. Diz que aprendeu as receitas com a “necessidade”. “Minha mãe fazia mais angu, que eu comia com o dedo com meus irmãos”.

Ela cresceu no interior de Sergipe e quando voltou a Salvador, onde nasceu, trabalhou vendendo cafezinho no Banco Econômico e atuando no setor de operações de um supermercado. Quando ficou desempregada, orou a Deus por uma ideia que a fizesse ganhar dinheiro, como conta. Espiando as mulheres que vendiam mingau, resolveu tornar-se uma delas, mas do seu jeitinho. “Fui melhorando, até botar como eu queria, mantendo o padrão, a qualidade. Para o mugunzá mesmo eu cato caroço por caroço, pra ele ficar todo branquinho”.

Pela formosura do tecido quadriculado azul e branco que recobre as panelas, já dá para ver o seu capricho. Antes da crise, diz que enchia quatro panelões fumegantes todos os dias, agora são só “dois pouquinhos de mingau”. Por isso passou a fazer tudo sozinha, depois de dispensar duas ajudantes, e também mudou o horário de trabalho. Antes, chegava 6h30, agora chega 7h. Saía 8h, com tudo já vendido, hoje precisa ficar até 11h.

De todo modo, diz que “dá para levar”, ainda mais agora que os filhos já estão crescidos e criados, graças ao mingau. “Dá devagarzinho. Mas não sobra dinheiro”. Ela não tira férias, nunca, bota a banca até no Carnaval. Mas está pensando, quem sabe, em se aposentar também na prática quando fizer 65 anos.

Uma moça chegou procurando bolo, ela avisou que o seu preferido tinha queimado um pouquinho, porque cochilou vendo o Masterchef, programa da Band, na noite anterior. Logo depois, um homem de cabelos desgrenhados chegou segurando uma nota de R$ 100 para pagar uma rodada de mingau (o copo custa R$ 4), café e bolo para as duas pessoas desafortunadas que o ladeavam.

“Não mexe com a coroa”, um rapaz gritou lá de cima, e ele explicou que não estava entendendo o fuzuê, se estava pagando. Elza sorriu indiferente. Antes de nos despedirmos, contou orgulhosa que Rui Costa, o governador, também já tomou mingau ali.

Quentinho e seguro

Entre 2013 e 2015, Ryzia de Cássia Cardoso, professora da Escola de Nutrição da Universidade Federal da Bahia, orientou uma pesquisa sobre o comércio de mingau no centro de Salvador, dentro de uma série de estudos sobre a comida de rua na cidade.

Fizeram parte da pesquisa mulheres que trabalham em pontos fixos e também os vendedores ambulantes, geralmente homens, que andam com carrinhos cheios de latões com mingau, produzidos em sua maioria por fornecedores terceirizados.

Na pesquisa, a nutricionista Áquila Mattielo entrevistou 39 vendedores, 117 consumidores e reuniu 28 amostras para análise da composição e segurança alimentar. E já que estamos falando de números, contabilizou incríveis 77 receitas de mingau.

Mas se esta palavra, segurança, ficou lhe preocupando, pode dormir e acordar tranquilo. As amostras não indicaram nenhum perigo aos consumidores. “O mingau tem uma vantagem em relação a outras comidas de rua por ser vendido quente, geralmente acima dos 60 graus. É uma zona sem tanto risco. Mesmo porque ninguém quer comer mingau frio”, diz Ryzia.

Além de seguro, o mingau é, também, saudável. “Tem leite, coco, milho, produtos locais. O de mugunzá, por exemplo, é o de mais alta contribuição em termos de energia. Atende a quase 20% do requerimento de uma pessoa adulta. Os consumidores entrevistados dizem que o mingau é um produto forte, que dá sustento. Eles se sentem alimentados, de fato”.

E para além da comida há a amizade, o “anote aí na caderneta”, o “guarde o meu”. “É diferente de quando você vai numa lanchonete, na padaria, que ou você tem o dinheiro, ou você não come. O vendedor de comida de rua tem uma sensibilidade, um olhar para o outro, que é diferente da empresa. Essas mulheres merecem tanto reconhecimento quanto as baianas de acarajé. Prestam um serviço que é muito conveniente para o funcionamento da cidade”.

Além do centro de Salvador, as vendedoras de mingau costumam ficar nas portas de escolas, hospitais e obras. A Associação Nacional das Baianas de Acarajé, Mingau, Receptivo e Similares (Abam), que representa a categoria, leva o mingau no nome, mas quase nada na prática. Dentre as cerca de 3.500 baianas associadas, só “seis ou sete” são de mingau, como conta Rita Santos, que dirige a entidade.

Imagem ilustrativa da imagem Sustância com afeto: conheça histórias e tradições das baianas de mingau
| Foto: Raul Spinassé / Ag. A Tarde
A baiana Iracema dos Santos fica de 7h às 12h no bairro do Comércio. Foto: Raul Spinassé / Ag. A Tarde

Iracema dos Santos, 60, é uma das poucas cadastradas na Abam. De pequena, acompanhava a mãe, que vendia acarajé, mas ela mesma optou pelo mingau. Quer dizer, é mais uma coisa do dia a dia, que faz com que consiga voltar cedo para casa e dar conta dos outros afazeres da vida. Mas quando tem jogo no Barradão ou show na Concha, também vende acarajé.

Ela mora em Nova Brasília e chega às 7h ao Comércio, onde trabalha. Fica até o meio-dia. Quem não quiser o mingau, os bolos, o cuscuz, o bolinho de estudante pode de café da manhã tomar até uma sopinha. Acostumada à luta diária, acha tudo rápido e fácil de fazer. “Comida não tem que dar trabalho, não”.

Está irmanada na sua leveza com o escritor gaúcho Alcione Sortica, que lapidou: “A vida é, apenas, um fio sutil entre o mingau infantil e o mingau senil. E tem gente que complica!”.

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