MUITO
Teatro de rua: Salvador é um palco para a história
Alunos da rede fundamental foram ao Subúrbio 360º ver peça Resistência Cabocla, do Bando de Teatro do Olodum
Por Gilson Jorge

Ao longo dessa semana, centenas de alunos da rede fundamental de ensino de Salvador foram levados ao espaço cultural Subúrbio 360°, em Coutos, para assistir à peça Resistência Cabocla, uma montagem do Bando de Teatro do Olodum que venceu o edital da Fundação Gregório de Mattos para as comemorações dos 200 anos da Independência do Brasil na Bahia.
Na plateia, crianças de 7 a 12 anos eram orientadas pelo elenco a reagir, erguendo os braços para saudar os heróis anônimos da luta contra os portugueses, encerrada em 2 de julho de 1823. A mesma peça, estrelada por Jorge Washington, sob a direção de Cássia Valle e Val Soriano, havia sido apresentada em praça pública, no Campo Grande, nos dias 30 de junho e 1º de julho.
Sob o calor do patriotismo e do espírito cívico despertados pelo bicentenário, o teatro foi a espaços públicos em Salvador e no interior. Nos próximos dias 21 e 22, a Concha Acústica do Teatro Castro Alves recebe a Ópera da Independência, com texto de Cleise Mendes e direção de Paulo Dourado, com patrocínio do governo estadual através da Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb).
Em 24 de agosto, o Grupo de Arte Popular A Pombagem apresenta no Largo do Tanque o espetáculo O Museu é a Rua. Mas, findo o calendário cívico, permanece uma questão: independente das datas comemorativas, quais os caminhos para fortalecer de novo o teatro de rua em Salvador?
Modelos
Os interesses e afinidades de quem milita no setor apontam para três modelos: os espetáculos grandiosos com alto investimento cênico, como A Paixão de Cristo e Lídia de Oxum; palcos montados ao ar livre com um número limitado de cadeiras, como acontece em festivais de rua; e os monólogos independentes ou as performances, que muitas vezes são realizados exclusivamente com recursos dos próprios artistas.
Mas quer seja voltado ao entretenimento ou à reflexão, todos os modelos de encenação ao ar livre dependem, em maior ou menor grau, de apoio do poder público, inclusive com os editais.
Criador do Projeto Teatro Popular Contemporâneo, na década de 1990, o diretor Paulo Dourado é um entusiasta de obras teatrais ao ar livre para grandes plateias, competindo com as estruturas dos shows musicais mais populares. Como é o caso da Ópera da Independência, que estreia sexta-feira na Concha Acústica do Teatro Castro Alves, com ingresso gratuito.
Autor da tese de doutorado Em busca de um teatro popular contemporâneo, Dourado diferencia o teatro de rua, como aquele que se caracteriza quando a obra usa objetos de cidade, como muros ou árvores na sua cenografia e pode ser itinerante, do teatro na rua – ideia original do teatro grego, um teatro a céu aberto, mas que funciona em um lugar específico para essa atividade, e não em meio à paisagem urbana.
Pela sua definição, a Concha Acústica, onde será encenada a Ópera da Independência, é um teatro na rua. "É onde os artistas chegam e fazem sua rodinha, o modelo pré-histórico de teatro, o prototeatro, o teatro da contação de histórias", avalia Dourado.
Qualidade
E, pegando carona na sua projeção de um teatro carnavalizado, usando recursos da axé-music, como som potente e luz de qualidade, Dourado acredita que essa roda na praça precisa ser mais aberta.
"O teatro popular, para mim, não é mais o palhacinho na rodinha. Isso morreu há muitos anos. O público está acostumado com som e luz de qualidade", afirma o diretor que tampouco se anima com peças teatrais intimistas. "Se você quer fazer espetáculo para 20 pessoas, com metade sendo amigos que não pagam, que é o que a maioria faz, isso é um problema seu".
Realizadora do Festival Internacional de Arte de Rua, iniciado em 1995 no extinto Aeroclube Plaza Show, a produtora cultural Selma Santos considera que a rua é o local mais democrático para as artes cênicas e vê a tendência de espetáculos ao ar livre crescer, não apenas em Salvador.
"Quando eu comecei isso aqui, as pessoas tinham vergonha de passar o chapéu. Alexandre Casali, de O Sapato do Meu Tio, tinha vergonha. Mas depois ele arrasou, foi convidado para a Itália e hoje ele passa a mala, no espetáculo dele Mala sem alça, palhaço sem calça", afirma a produtora.
Selma considera que com sua tradição de eventos de rua, como o Carnaval e as festas de largo, Salvador poderia aproveitar mais a encenação teatral ao ar livre. Mas esse ano ela não pôde desfrutar da brisa soteropolitana para realizar o festival porque, com a mudança no governo estadual, os editais foram suspensos.
Com a incerteza gerada pela interrupção, Selma aguarda a retomada. "Até hoje, meus colegas e eu não fomos chamados para conversar", diz a produtora.
Por falar em Carnaval, este ano o Bando de Teatro Olodum também decidiu colocar o bloco na rua apresentando, via edital da Fundação Gregório de Mattos, a peça Resistência Cabocla.
A escolha de um grupo que tradicionalmente se apresenta em um teatro provocou críticas em artistas de rua, mas isso não mexeu com os ânimos dos integrantes.
Ao comentar a apresentação da peça no Campo Grande, o ator Jorge Washington afirma: "Para mim, enquanto ator, é um privilégio ter um espetáculo com aquela estrutura, falando de um tema que é caro ao povo preto". Ele se refere à narração da história da guerra pela independência a partir da visão dos cidadãos anônimos baianos. "A história oficial não conta dessa forma. Os heróis são outros, né?".
Uma das diretoras do espetáculo, Cassia Valle destaca a importância das apresentações em espaços públicos para que haja reflexão e aproximação do povo com a sua história.
"É fundamental. Deveríamos ter mais e mais espetáculos como esse", declara Cássia diante da forte acolhida do público.
Val Soriano, a outra diretora do espetáculo, encara a oportunidade como uma grande celebração, pelo bicentenário da independência e pelo Bando de Teatro do Olodum: "A gente criou um espetáculo que envolve o público, o público recebeu muito bem".
Fórum
Alguns grupos populares de teatro apostam no contato cara a cara com o público para despertar o interesse não apenas pela arte, mas pela política.
"O teatro de rua é fundamental. A importância dessa arte se dá justamente na possibilidade de criarmos no espaço público das ruas um lugar de convivência, de a gente se olhar, se conectar e fazer dali um fórum também", afirma o poeta e filósofo Fabrício Brito, mestre em cultura e sociedade pela Ufba e criador do grupo A Pombagem.
Adepto do teor militante do teatro de rua, Brito relaciona o contato entre ator e plateia à discussão sobre a cidade e rejeita a visão da via pública como um mero lugar de passagem.
Também por isso, o fundador de A Pombagem lamenta que a celebração do bicentenário da independência não tenha deixado espaço para mais artistas de rua, como Marcos Cristiano, fundador do Movimento de Teatro de Rua da Bahia.
"Ele é um dos artistas históricos do teatro de Rua em Salvador, mas justamente por essa negligência das políticas culturais com essa linguagem, ele é bem militante”, afirma Brito sobre o amigo.
Nascido em Itabuna, Marcos Cristiano começou no teatro pelas mãos de Mário Gusmão, que o pinçou no movimento cultural grapiúna e o incentivou a estudar na Escola de Teatro da Ufba. Em Salvador, Marcos se engajou na fundação do Movimento de Teatro de Rua da Bahia.
Passou em concurso para professor da rede municipal de ensino, o que garantiu seu sustento, e criou personagens como Brasilino, um palhaço que toma emprestado características típicas de Sílvio Santos e aborda transeuntes em bairros periféricos, provocando reflexão política.
Frustrado com o que considera falta de políticas públicas para o teatro de rua, há dois anos Marcos Cristiano não sai com o seu personagem.
O artista considera que a gestão cultural é elitista, reclama que os editais priorizam artistas consagrados e se queixa da falta de regulamentação da Lei 8.638, de 2003, que criou a Casa do Teatro de Rua da Bahia.
Em breve
A lei, proposta pelo então deputado estadual Zilton Rocha, permitiu que a casa fosse criada em 2010, em um imóvel no Pelourinho. Mas como a lei ainda não foi regulamentada, o Ipac ainda cobra do Movimento de Teatro de Rua da Bahia o aluguel do imóvel.
O assessor de relações institucionais da Funceb, Kuka Matos, afirmou que deve haver uma reunião em breve com a nova diretoria geral do Ipac, Luciana Mandelli, para tratar do assunto.
A regulamentação da Lei também permite ao governo ceder o casarão no Pelourinho à Casa do Teatro de Rua da Bahia por um período de cinco anos, renovável. Até agora, os contratos são de um ano. "Se a Lei fosse regulamentada teríamos condições de manter viva essa linguagem que tem um forte retorno sociocultural", afirma Marcos Cristiano.
Em nota, a Fundação Gregório de Mattos assinala sua preocupação com o acesso democrático aos recursos dos editais: "Vale ressaltar que, nos processos de seleção de projetos, a FGM contrata comissão externa para avaliação e seleção especializada, supervisionados diretamente pelos conselheiros do Conselho Municipal de Política Cultural, a fim de garantir a idoneidade de todos os procedimentos".
A presidenta do Conselho Municipal de Políticas Culturais para o biênio 2022/23, Iyá Marcia D'Ogun, defendeu a lisura do processo de escolha nos editais. "Nós participamos do processo para fiscalizar e não temos acesso a nomes. Nos processos que participei, eu vi lisura", afirma a presidenta.
O presidente da FGM, Fernando Guerreiro, considera que com as apresentações cênicas do Dois de Julho a fundação marca um espaço importante nos grandes eventos da cidade.
"Sempre achei importante não só fazer shows, mas trabalhar com espetáculos teatrais", diz Guerreiro, que essa semana foi indicado o representante do Nordeste no Fórum Nacional de Gestores Municipais de Cultura.
Para edições futuras, o presidente da FGM, que também é diretor teatral, aposta em espetáculos que mesclem teatro, dança e música: "O espaço público traz para alguns espetáculos uma grandeza maior, porque quando você monta espetáculos para a rua, todo o processo é outro, a direção, a encenação, a postura dos atores".
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