MUITO
Um milhão de amigos: a adoção coletiva de animais
Conheça uma história de amor e empatia que envolve a adoção de animais
Por Gilson Jorge
Em fevereiro de 2022, um casal de cães que circulava pelo Centro Histórico de Salvador, pegou o hábito de ir à lojinha do comerciante Luiz Pereira, especializada em artigos do sertão, para pedir comida na hora do almoço.
Por dias, Luiz não percebeu nada diferente, mas Dona Antônia Santos, que mantém um bar na vizinhança com o marido, Valter Barbosa, viu a fêmea perto do fim de linha da Praça Municipal e sentiu que o animal arfava.
Um dia, a cadela deixou seu companheiro na porta da pequena loja, passou picada por Luiz e se enfiou na despensa. O comerciante, que já havia se enternecido com o bichinho, deixou ela passar a noite no seu estabelecimento pensando em resolver a situação depois.
Quando voltou ao trabalho na manhã seguinte, o chão da despensa estava ensanguentado e a cadela cuidava de nove filhotes recém-nascidos. "É como se o cão tivesse levado ela para a maternidade", opina dona Antônia.
A cadela e seus filhotes não poderiam permanecer na loja e então iniciou-se uma grande operação comunitária. Com mais espaço em seu negócio, o comerciante Valmir Santana acolheu a cadela, batizada de Nega, embora alguns a chamem de Pretinha, que depois iria morar definitivamente com o casal Antônia e Valter.
A família de Luiz se encarregou de doar os filhotes entre amigos ou pessoas que comprovassem condições físicas e econômicas de cuidar dos pequeninos cães. "Eu entrevistei interessados por quatro meses", conta a estudante Beatriz Alves, filha de Luiz, que até hoje recebe no celular vídeos com imagens de um dos filhotes, agora enorme.
Além de oferecer abrigo para Nega, Antônia e Valter guardam sua caderneta de vacinação, alimentam diariamente a cadela e, frequentemente, servem comida para o novo crush da protegida. Muitas vezes, Nega cede de bom grado o próprio prato para o amado. Mas não é que ela seja uma versão canina de Amélia. Com alimentação garantida em toda a vizinhança, não é raro que ela deixe que os pombos devorem sua refeição. Embora, às vezes, ela venha correndo para espantar as aves, "tocando o terror", como define sua tutora.
Vira e mexe, dona Antônia brinca de reclamar do namoro da cadela na porta de casa. "Eu agora tenho que sustentar você e seu macho, né, mulher?", costuma dizer sorrindo a comerciante, enquanto leva o prato cheio para fora do bar. Mas sabe como é a masculinidade canina tóxica, né? Você dá um ossinho e ele quer a carcaça inteira. Outro dia, Seu Valter teve que botar para fora o crush de Nega, que ameaçou fazer xixi dentro do boteco para marcar território.
Nega acabou de completar um ano em seu novo lar. Mas o cuidado com ela continua sendo compartilhado pelos vizinhos, que lhe dão sobras de comida ao longo do dia. Ainda no ano passado, um grupo de moradores da rua fez uma vaquinha para bancar a castração da mascote. Sempre que Nega está solta e qualquer um deles aparece, ela sai correndo para demonstrar afeto. Às vezes, vai "bater patas" na Avenida Sete de Setembro e na Preguiça, mas sempre retorna correndo para o seu endereço, como se estivesse atrasada. "Eu acho curioso que ela sempre volta", afirma Seu Valter.
Seja em condomínios, repartições públicas ou empreendimentos privados, animais de rua recebem alimentação e outros cuidados oferecidos coletivamente. Uma relação que muitas vezes começa quando alguém se compadece de um animal abandonado, mas não tem a estrutura necessária para adotá-lo.
No inverno de 2018, uma cadelinha com meses de vida foi levada à Faculdade da Economia da Ufba, na Piedade, pelo porteiro do edifício à época, um funcionário terceirizado. Ele encontrou o animal perto de um contêiner de lixo no IAPI, onde morava, e sentiu pena ao vê-lo tomando chuva.
Como já tinha seu próprio pet e não podia criar mais um, o funcionário terceirizado levou o bichinho ao seu trabalho, na esperança de que ele pudesse ao menos fazer companhia nos plantões noturnos. A cor dos pelos e dos olhos da cachorrinha, além de seu olharzinho de cão sem dono, inspiraram o seu nome: Mel.
A direção da faculdade foi consultada sobre a adoção e explicou que, para a permanência do animal, seria necessário que um servidor concursado da unidade se responsabilizasse pela sua custódia. O que incluiu a ida à Escola de Medicina Veterinária para avaliação do quadro clínico da cadela e a assinatura de termos de responsabilidade.
Companhia
O assistente administrativo João Alexandre Neto, que já tinha um pet em casa, aceitou ser o tutor oficial do bichinho. "Para a gente, era também interessante manter um cachorro para fazer companhia. À noite, só fica uma pessoa no prédio. E durante a pandemia ela foi mais importante ainda", destaca João, que não ficou a sós na tarefa de organizar a vida de Mel em seu novo lar.
Um grupo de professores se comprometeu a dar dinheiro regularmente para a compra de alimentos e outros artigos. Inicialmente, ela foi acomodada na área externa de um refeitório, enquanto não havia certeza sobre a convivência da cadelinha com a comunidade acadêmica. Algumas pessoas têm medo de cachorro.
Mas deu tudo certo e o dormitório de Mel foi montado ao lado da portaria, a sua comida é preparada no refeitório ocioso e na lateral direita do prédio foi adaptado um lugar para seus banhos.
Em dias de frio, Mel se encolhe no chão no meio do caminho quando percebe que está sendo levada para a água. A tarefa de dar banho, dar comida e avisar ao tutor se há algo de errado com a cadela fica a cargo do porteiro Jailton Oliveira, o Bem-te-vi.
O sucesso da cadela extrapola as grades azuis da faculdade e sempre aparece alguém da vizinhança para saber dela ou oferecer alimentos . "Tem um rapaz da igreja que traz comida. Ela come ração, mas com esses outros sabores ficou difícil ela ingerir coisas secas, então, a gente mistura", diz João.
Muito dócil
Os servidores da faculdade afirmam que, no princípio, a presença de Mel foi questionada, mas que não há mais resistência. "Ela é muito dócil. Você chega da rua estressado, encontra ela aqui e fica desarmado", avalia o assistente administrativo Marcelo Soares.
Às vezes, a adoção coletiva começa quando há notícias de agressão a um animal. Quando uma rede varejista construiu uma unidade em Lauro de Freitas, em 2016, cerca de 30 cães que ocupavam o terreno anteriormente permaneceram em seu território. Com o tempo, a Rede de Mobilização pela Causa Animal (Remca) passou a receber denúncias de sumiço de alguns bichos.
A Remca fechou um acordo com o mercado, que assumiu os custos de castração dos cães. A maioria dos animais conseguiu um tutor, mas Caramelo, Nega e Chitara permaneceram ocupando o estacionamento do mercado.
"Como não há lares disponíveis para todos os animais em situação de rua, temos que trabalhar o direito à cidade dos animais", afirma a advogada e professora Ludmila Prazeres, da Remca, que relata a adesão de alguns funcionários do mercado que também dão alimentos aos três cães.
Outra integrante da ONG e vizinha do mercado, a empresária Luciana Boaventura passa diariamente no estacionamento para dar ração aos bichos. Ela gasta cerca de R$ 200 por mês com a alimentação dos três.
Abandono
O abandono de animais em si já é cruel, mas quando isso acontece em locais específicos, que provocam aglomeração de bichos, é pior. Essa concentração é duplamente arriscada, pela possibilidade de incidentes, como o incêndio na colônia de gatos em Piatã, e pela propagação de doenças entre animais não vacinados.
"Muitos gatos são deixados sãos e adoecem. Há alguns filhotes que pegaram herpesvírus e perderam a visão", relata a designer Márcia Meneses, que esteve outra vez na colônia, que frequenta regularmente, como integrante da União de Proteção Animal Salvador (Upas).
A ONG mantém em sua sede atualmente 273 gatos disponíveis para adoção. Interessados devem visitar a página @gatinhossos no Instagram.
À frente da ONG Adão e Cão, a parapsicóloga Iane Magalhães declara que precisou fazer terapia para lidar com a crueldade humana ao longo dos 28 anos em que milita na proteção aos animais. Entre as atrocidades que já viu estão cabeças ensangüentadas, mutilações e casos de zoofilia. “Há um ano, recebemos um pinscher que foi enterrado vivo. Uma vizinha viu e denunciou", conta Iane. O animal foi tratado por cinco dias, mas não sobreviveu. Tinha muita areia nos pulmões.
Vacinação e comida
O cuidado coletivo de um animal exige boa coordenação para que não haja lacunas no cronograma de tarefas. O presidente da Comissão Estadual de Saúde Única do Conselho Regional de Medicina Veterinária da Bahia, José Eduardo Ungar de Sá, ressalta que é preciso estar atento ao esquema de vacinação dos animais e à quantidade de comida que os bichos ingerem.
Eles não podem passar fome, mas também não devem comer demais para não ficarem obesos. E é preciso ter atenção especial com os ossos dados aos cães, para que ao mastigá-los os "doguinhos" não engulam pedaços pontudos que possam perfurar a parede do intestino.
"Os animais de rua normalmente aprendem a se virar, mas o ideal é que os ossos oferecidos aos cães sejam cozidos antes em panela de pressão para ficarem molinhos", ensina Ungar, que mantém em sua clínica a privilegiada cadela Austrália, que foi deixada há mais de um ano na porta do estabelecimento.
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