Universidades distinguem a relevância de personalidades
De acordo com a Ufba, 97 personalidades já se tornaram Doutores Honoris Causa pela universidade

Com 19 anos, o músico baiano Armandinho Macêdo, filho e sobrinho dos criadores do trio elétrico e da guitarra baiana, fez vestibular para o curso de Música na Universidade Federal da Bahia (Ufba) e perdeu. “Tomei pau, na prova teórica tirei zero”, lembra.
Com 70 anos, o guitarrista recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Ufba, em maio deste ano. “É um diploma que vem coroar o meu trabalho e me trazer esse reconhecimento dos acadêmicos”, diz Armandinho.
De acordo com a Ufba, 97 personalidades já se tornaram Doutores Honoris Causa pela universidade por contribuição ao país ou à humanidade. Em latim, o título significa “doutor por causa de honra”. E não é apenas nas artes que o diploma é concedido.
A líder sindical baiana Creuza Oliveira vai se tornar a primeira trabalhadora doméstica do Brasil a se tornar Doutora Honoris Causa. Presidente de Honra da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas, Creuza vai receber o diploma em novembro, por indicação do Instituto de Psicologia da Ufba.
Para a líder sindical, o título prestigia os saberes das trabalhadoras domésticas. “A academia sempre bebeu na fonte da luta da categoria para produzir pesquisas dessas mulheres que são, na grande maioria, negras periféricas, mães solo e que sobrevivem do emprego doméstico e que levam os filhos para a faculdade com essa renda”.
Outra baiana Doutora Honoris Causa é a psicanalista Urania Tourinho Peres, que também é membro da Academia de Letras da Bahia. “O título foi uma grande honra e me deixou muito contente e agradecida. É, seguramente, uma valorização de nossa atividade na universidade e na sociedade como um todo”, comenta Urania, que recebeu o diploma há dois anos.
País sem memória
Para Armandinho, a titulação tem sido uma forma de consagrar personalidades baianas. “Vivemos num país sem memória, mas um prêmio como esse mostra que, com certeza, já estamos um passo à frente para um caminho melhor”. Ele destaca ainda o diploma que o cantor e compositor Caetano Veloso recebeu no início deste mês na Faculdade de Doutores da Universidade de Salamanca, na Espanha.
Essa é a segunda vez que Caetano se torna Doutor Honoris Causa. A primeira foi pela Ufba, há 25 anos. A universidade também homenageou a cantora Maria Bethânia, irmã de Caetano, com o mesmo título, em 2016. “Antes, o estudo acadêmico só respeitava o clássico, esse reconhecimento do músico popular é um avanço que falta no nosso país”, pontua Armandinho.
Outro Doce Bárbaro, Gilberto Gil, é doutor por universidades nos Estados Unidos, Espanha e Portugal. Em março, teve um título aprovado pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e recebeu mais um diploma do Instituto Federal da Bahia (Ifba). “Obrigado, obrigado e infinitamente obrigado”, disse Gil, no discurso de agradecimento no instituto.
Hip hop
As instituições baianas também homenageiam personalidades de fora do estado. É o caso do rapper paulista Mano Brown, líder do grupo Racionais MC's, que se tornou Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) nesse último sábado, 16. Apesar de não ser da Bahia, Mano Brown é filho e neto de baianos.
Reitora da UFSB, a professora Joana Angélica Guimarães da Luz destaca que, neste ano, são celebrados os 50 anos da cultura Hip Hop. “Ninguém melhor do que Mano Brown para representar esse momento”, afirma a reitora. Para ela, é preciso que se reconheça a importância do Hip Hop para os jovens, que têm a voz e a escuta negadas com frequência pela sociedade.
Antes de Mano Brown, apenas a ex-presidente Dilma Rousseff havia recebido o diploma da UFSB. Para a reitora da universidade, ao aceitarem o título, os homenageados conferem prestígio à própria UFSB: “Nos sentimos muito honrados por termos pessoas como Dilma Rousseff e Mano Brown vinculados à nossa história”.
Para a Ufba, o diploma de Doutor Honoris Causa simboliza que a instituição está atenta ao valor de obras científicas, artísticas, culturais, sociais e políticas que não necessariamente estão ligadas à formação acadêmica. O diploma, assim, é um reconhecimento da relevância do homenageado para a sociedade.
Nas duas universidades, a proposta do diploma deve ser feita por uma unidade acadêmica, a exemplo do caso de Creuza Oliveira. Na UFSB, também pode ser realizada pela reitoria, como aconteceu com Mano Brown. A partir da indicação, o conselho universitário da instituição elabora um parecer da trajetória da pessoa para votação dos membros do grupo.
A indicação da psicanalista Urania, por exemplo, foi feita pelo Instituto de Humanidades, Artes e Ciência Professor Milton Santos, da Ufba. Reconhecendo a importância do diploma, ela destaca que a educação deve ser mais igualitária no país: “A educação, o acesso ao ensino e a aprendizagem, seguramente, deveriam ser para todos. Infelizmente, não é”.
Trabalhando com serviços domésticos desde os cinco anos de idade, Creuza é uma das brasileiras que não tiveram acesso à educação na infância.
A baiana foi à escola pela primeira vez aos 16 anos e concluiu o Ensino Médio aos 30. Ativista desde a década de 1980, Creuza destaca que outras colegas de profissão também merecem o reconhecimento acadêmico: “Esse título Honoris Causa podia ser de várias outras companheiras domésticas, essa história tem muito mais pessoas”.
O título de Creuza foi proposto por professoras da Ufba. “Tem mulheres negras nesse grupo que sofreram para chegar nesse espaço da universidade. Muitas delas tiveram mães, irmãs, avós que foram trabalhadoras domésticas”, afirma Creuza.
Prestígio
Para a líder sindical, o prestígio das domésticas é um reconhecimento do valor econômico do trabalho delas: “Dizem que o trabalho doméstico não gera lucro para os patrões, mas a gente gera essa possibilidade de buscarem a própria riqueza”. Apesar disso, a próxima doutora da Ufba explica que os saberes das domésticas são silenciados dentro das casas onde trabalham.
No caso de Armandinho, a valorização da trajetória do músico é também um reconhecimento do saber intuitivo. “Não existe um músico que não tenha o lado intuitivo, que seja só teórico”, diz o recém-titulado doutor.
Ele conta que o pai, Osmar Macêdo, também não tinha formação acadêmica: “Ele era igual a mim, nunca estudou música, virou músico no trio elétrico”. Armandinho lamenta que Osmar e o tio, Dodô, não tiveram o mesmo reconhecimento da academia.
Para o guitarrista, o título que recebeu, proposto pelo maestro Alfredo Moura, é uma celebração do saber não acadêmico. “Hoje, a situação está tão mais aberta que eu estou recebendo título de acadêmico diretamente do reitor da universidade”.