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MUITO

Vir a ser

Por Carla Bittencourt

22/11/2013 - 17:31 h
Imagem de músicos que participaram do concerto Lembrando Smetak, realizado na Reitoria da Ufba
Imagem de músicos que participaram do concerto Lembrando Smetak, realizado na Reitoria da Ufba -

Cem anos após seu nascimento, a obra do suíço Walter Smetak, que chegou à Bahia em 1957 e inspirou o Tropicalismo, ainda é um mistério por conta da sua ousadia e vanguardaQuis o destino que o suíço Walter Smetak (1913-1984) vivesse na Bahia a sua maior transformação. Aqui, o violoncelista formado nos conservatórios de Zurique e Viena rompeu com a música tradicional, tornou-se pesquisador de microtons e um dos mentores do Tropicalismo. Sobre isso, Rogério Duarte poetizou: "Entre o dó e o ré tem um abismo que Miles Davis explora. Entre o mi e o mi tem outro abismo, que Smetak explora".


Para chegar a esse universo que cabia em algo tão pequeno, Smetak ressignificou a cabaça usando as habilidades de luthier a favor da construção de mais de 150 plásticas sonoras. O som de ouvir com os olhos, flerte entre ocidente e oriente, novo e milenar, seria maior do que a arte. Pois também aqui, na Ilha de Itaparica, seu autor aprofundou a relação com a eubiose, misto de filosofia, religião e ciência que o fez buscar um novo mundo e, para isso, nova música e novo homem.

Os detalhes dessa história são contados por Jéssica Smetak no livro Som e Espírito, lançado pela coleção Gente da Bahia. Ignorando polêmicas sobre o gênero, Jéssica fez da conclusão do curso de jornalismo a biografia do avô. Como os dois não se conheceram, partiu dos textos dele - há 30 livros inéditos -, além de entrevistas com a família, amigos e alunos. De Oscar Dourado a Gilberto Gil, inventor do apelido Tak Tak, cantado por Gal Costa na música Língua do Pê.


"Na época de escrever, cheguei a sonhar com ele uma vez e, nesse sonho, eu também era irmã. Fico muito feliz de ajudar a preservar a memória do meu avô". Na biografia, as páginas da infância pouco conhecida vêm das cartas trocadas entre Jéssica e Leonie, irmã de Smetak, que tem 92 anos e mora nos Estados Unidos.
Do tio caçula, Uibitú, vieram pistas para entender a música que ficou na família. O nome dele pode ser uma: Uibitú é uma versão de Smetak para "to be or not to be", de Shakespeare. O pai brincava com as palavras e o menino gostava do que aprendia. A ouvir Joseba, por exemplo, que era como Smetak chamava Johann Sebastian Bach.

Uibitú andou na garupa da Prostituta da Babilônia, a velha moto BMW que identificou seu pai quase tanto quantos seus instrumentos. E, de tanto ver o velho misturando verniz, ele entendeu por osmose. Único entre os quatro irmãos, tornou-se violinista da Osba e, depois, compositor na companhia A Roda, de teatro de bonecos. "A gente acaba imitando o desvio".


50 anos na frente

Era uma figura singular aquele professor de cabeleira desalinhada e tantas chaves no bolso, que chegou a Salvador em 1957 para, como ele mesmo disse depois, no sotaque nunca perdido, escrever de lápis azul no céu azul. Veio a convite do compositor alemão Hans-Joachim Koellreutter para os Seminários Livres de Música, uma das escolas artísticas criadas na Ufba sob a reitoria de Edgard Santos.


Ali, Smetak tomou um galpão como oficina, onde dava aulas de improvisação. Ensinava a ouvir o silêncio. Fazia de pedras suas partituras. Do vento que tocou um violão, o pretexto para que seis desses instrumentos se transformassem num só.

Ganhou fama de bruxo e alquimista, o que mais folcloriza do que define esse poeta da ciência. Mas ele sabia o que representava: "Contemporâneo, não. Estou 50 anos na frente!", disse certa vez.


O flautista e compositor Tuzé de Abreu, que nunca foi aluno formal, é o único a tocar com Smetak em todas as formações do Grupo de Mendigos e do Conjunto de Microtons e a participar da gravação dos dois discos (o primeiro, de 1974, tem produção de Caetano Veloso e Roberto Sant'Ana).

Tuzé considera a si mesmo um filho. O professor enérgico e, lá no fundo, meio paternal "era um vulcão", sugere diante da intensa produtividade. Já o violoncelista e compositor mineiro Marco Antônio Guimarães guarda a pergunta que ouviu tão logo chegou aos Seminários. "Você já conheceu o louco do porão?". Ele desceu e ficou fascinado. Lembra como aquilo culminou no concerto no qual os instrumentos coletivos foram apresentados. Marco tocou o Pindorama, 28 sopros no nome indígena do Brasil.


De volta a Minas Gerais, ele construiu mais de 60 instrumentos e fundou o grupo Uakti, um dos mais expressivos herdeiros do múltiplo Smetak. "Hoje trabalho com uma linha musical diferente, mas, se não fosse ele, não teria feito nada disso".

Em Salvador, a música microtonal encontrou o rock nos anos 1990, quando a banda Crac! voltou de São Paulo provocada pelos irmãos Paulo e Arrigo Barnabé. A banda descobriu o acervo de Smetak na biblioteca da Ufba, a cantora Nancy Viégas, chorando do início ao fim do disco, que ouviu pela primeira vez. Mas as plásticas estavam encaixotadas, tudo cheio de poeira.


Eles voltaram para fazer a primeira de muitas faxinas e para ajudar nas mudanças de endereço. Lançaram o Manifesto Smetak e inventaram os próprios instrumentos partindo do Piston Cretino, mangueira e funil que, na explicação do mestre, produzia um som de seres com linguagem ainda em formação.

Daí vieram o Conjunto de Cretinos e o Broco de Microtons. Nancy acredita que entendeu melhor a dimensão daquilo quando começou a pesquisar a eubiose. Desenvolveu um jeito de cantar os microtons, e Tuzé sempre diz que Smetak ia adorar vê-la. "Fazer música é isso, estou sempre partindo do silêncio, vendo um sentido maior, que é o da própria existência".


O músico Edbrás Brasil, que esteve nas formações das três bandas, segue o exemplo do decompositor, seja nas trilhas para espetáculos de dança ou como educador. Porque foi Smetak que uma vez dividiu a palavra "instrumentos" e achou a resposta: instruir mentes. Para Edbrás, "mais importante do que a preparação do músico é pensar o mundo através dos sons".

Acervo


Desde 2010, as plásticas sonoras estão no Museu Solar Ferrão, na mostra Smetak - O Alquimista do Som. São as mesmas antes expostas nos museus de arte moderna da Bahia e de São Paulo, como a série de Choris ("que não choram nem riem, mas soluçam") e a Divina Vina, síntese da obra smetakiana, quase um templo em miniatura, na definição do próprio.

Há uma parte dessa obra, porém, que permanece inédita e é guardada por Bárbara, filha mais velha, na casa onde ele viveu, na Federação. Na laje que um dia foi oficina, ponto de encontro entre artistas e base para observação de discos voadores, estão textos nunca publicados, o último deles ainda preso à máquina de escrever, aproximando as palavras amor e morte.


Bárbara gosta de pensar numa ideia meio profética de Smetak, a de que ele voltaria em 2005. "E deve ter voltado mesmo, já está aí, um menino de oito anos". Há tempos, ela luta para que o acervo seja comprado e que, a partir daí, seja feito algo realmente do tamanho que o pai merece. A obra está em processo de tombamento e, devido a sua complexidade, estão sendo feitos estudos para definir não só as plásticas, mas a filosofia de Smetak, explica Elisabete Gándara, diretora de preservação do patrimônio cultural (Dipat/Ipac).
Ano que vem, o Solar Ferrão começa uma reforma, e é provável que o acervo seja guardado. A informação causou polêmica este ano, quando Bárbara desabafou nas redes sociais sobre a possibilidade de um despejo. A diretora da Dimus, Ana Liberato, desfez o que chamou de mal-entendido. "Apesar de pertencer à família, o acervo terá o mesmo tratamento de todas as obras sob a guarda do estado".

Cem anos, e a diversidade de Smetak permanece uma inspiração. Na sexta-feira (29), o público que for ao Museu de Arte Moderna verá o espetáculo Cabaça, do Grupo de Dança Contemporânea da Ufba.

"Escolhemos esse elemento tão simbólico da obra dele e propusemos um elenco cocriador, com danças quase independentes, danças de microtons", diz Carmen Paternostro, que assina a direção com Gilsamara Moura e André Rangel.


Por pouco, o MAM não foi palco também do espetáculo multimídia Constelação, de Lia Robatto, que, entre as experiências com Smetak, lembra dele dirigindo 12 bailarinas no I Festival de Música Instrumental. A proposta de ocupar o museu com diversas linguagens, mesmo as áreas em reforma, e criar esse desenho celeste, chegou a ser aprovada no edital Demanda Espontânea. Mas o prazo não foi suficiente para regularizar a Associação de Amigos de Smetak. A produtora Alana Silveira comenta: "Fica como reflexão para que ele não seja lembrado apenas no centenário".

Quem viu o filme baiano Depois da Chuva ouviu a influência desse som. Em cena, os músicos Mateus Dantas, Nancy Viégas e a banda Crac! experimentam suas versões dos microtons. Mateus foi além e, junto com Nicolas Hallet e Simone Dourado, começou, este mês, a gravar o documentário A Máquina do Silêncio. Nicolas: "O genial é que não havia limite entre forma e conteúdo. É mais do que a matéria e a energia de Einstein, e isso não é mera curiosidade intelectual. Bate. E quando ouve, você pira".


Outro projeto, este em literatura, está sob os cuidados de James Martins, do sarau Pós-Lida. Ele vai lançar o inédito Para crianças grandes e adultos pequenos, com poemas que Smetak escreveu e ilustrou entre 1968 e 1969, quando se naturalizou brasileiro. Lembra uma definição de Caetano, da espontaneidade de uma criança conduzindo uma mente sofisticada. James: "Uma obra cuja densidade é tanta que parece ingenuamente flutuar".

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