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Walter Fraga: Luta de independência comportava projetos de Brasil

Historiador e professor da Universidade Federal do Recôncavo Baiano analisa luta pela emancipação e por cidadania

Publicado domingo, 26 de junho de 2022 às 06:00 h | Autor: Gilson Jorge
Confira entrevista completa

Na foto: O historiador Walter Fraga que participa da mesa: "A importância dos saveiros para o Recôncavo Baiano" posa para foto

Foto: Rafaela Araújo/ Ag. A Tarde

Data: 27/05/2022
Confira entrevista completa Na foto: O historiador Walter Fraga que participa da mesa: "A importância dos saveiros para o Recôncavo Baiano" posa para foto Foto: Rafaela Araújo/ Ag. A Tarde Data: 27/05/2022 -

Em 2011, o historiador e professor da Universidade Federal do Recôncavo Baiano, Walter Fraga, recebeu o Prêmio Clarence H. Haring da American Historical Association pela excelência do seu trabalho de pesquisa no livro Encruzilhadas da Liberdade. Nele, o intelectual são-felista analisa as ações de homens e mulheres escravizados que protagonizaram a luta pela emancipação e por cidadania, o antes e o depois da abolição, entre 1870 e 1910. No ano em que o Brasil celebra o bicentenário do Grito do Ipiranga, marca da Independência, A TARDE conversou com Fraga para recuperar os antecedentes baianos na luta pela independência, que tem como marco o dia 25 de junho de 1822, em Cachoeira, mas também o engajamento das populações negras escravizadas nas batalhas contra os portugueses, sob a crença de que o Império do Brasil traria também justiça social para os afro-brasileiros.

O Brasil comemora em setembro 200 anos de Independência. Para os baianos, essa história termina no Dois de Julho de 1823, mas começa em Cachoeira, antes mesmo do Grito do Ipiranga, com a instalação de um governo local em Cachoeira, no dia 25 de junho de 1822. Como era o clima na cidade e por que Cachoeira foi tão importante?

O movimento pela independência do Brasil envolveu as diversas regiões da antiga colônia portuguesa na América. Mas, na Bahia, o movimento seguiu um caminho próprio. Aqui, as lutas de independência assumiram um caráter de confronto aberto contra o domínio colonial português, houve mobilização de guerra e decisivo envolvimento das camadas populares. Até meados de 1822 ainda não havia se definido, pelo menos na cabeça dos que estavam em torno da corte do Rio de Janeiro, um projeto de Brasil como país independente de Portugal. O que se pensava, inicialmente, era manter o Brasil como reino unido a Portugal sob a regência de Pedro de Alcântara, que futuramente seria aclamado D. Pedro I. Pode-se dizer que a ideia de Brasil independente foi se impondo à medida que as câmaras municipais, pressionadas pelas manifestações populares, começaram a defender abertamente a independência definitiva. Os acontecimentos do 25 de junho em Cachoeira foram decisivos para precipitar o projeto de Brasil como país independente. Naquela altura dos acontecimentos, a cidade havia se tornado o centro da resistência contra a ocupação da cidade do Salvador por tropas portuguesas, desde meados de 1821. Para conter os ânimos da população e tentar garantir o domínio sobre a rota comercial do Rio Paraguaçu, os comandantes portugueses enviaram uma canhoneira com o fim de intimidar os ânimos populares que se avolumavam nas ruas. Foi nesse clima que populares tomaram de assalto a embarcação portuguesa desencadeando um conflito armado que se estenderia até o 2 de Julho de 1823, quando o chamado movimento libertador retomou a cidade do Salvador consumando a independência da Bahia e juntando-a ao Brasil.

Até hoje há uma rivalidade da cidade com São Félix, já que Cachoeira era econômica e politicamente muito forte naquele momento. Como era a configuração econômica da cidade?

Na época da independência, a vila de Cachoeira era o centro político de um imenso território que se estendia do Paraguaçu até o interior mais distante, o chamado sertão. Cachoeira era o grande entreposto comercial do interior da Bahia. Além de grande porto de exportação e importação, dali partiam as principais estradas que conectavam o litoral ao sertão, ao norte de Minas e ao norte do país. Nessa época, São Félix era parte da vila de Cachoeira e povoado estratégico como convergência das tropas de muares que iam e vinham do sertão. Até então não havia esse sentimento de rivalidade entre as duas margens do Paraguaçu. A câmara de Cachoeira era a instituição política que reunia representantes das diversas regiões, todos ligados aos interesses da lavoura de cana, das fazendas de fumo e da pecuária. Depois de alguma hesitação, essa elite política e econômica passou a defender a independência sob a direção de Pedro I. Avaliavam eles que este seria o caminho mais seguro para resguardar seus interesses voltados para a economia exportadora e continuidade da escravidão e do lucrativo tráfico que convertia africanos em escravos. Por seu lado, as camadas populares formadas por setores médios urbanos, libertos e mesmo escravizados tinham expectativas e interesses próprios com relação à independência. Para escravos e libertos, num momento em que tanto se falava em liberdade, a independência se apresentava como a oportunidade de verem abolida a escravidão e se inserirem como cidadãos livres num contexto de país independente. Pode-se dizer que a luta de independência comportava projetos diversos de Brasil.

Recentemente, tivemos o Festival de Saveiros, em São Félix, que busca recuperar o papel dessas embarcações na cultura do Recôncavo. Qual a importância histórica dos saveiros no transporte das tropas para Salvador?

Na época da independência, o rio Paraguaçu era a principal via de comunicação entre a capital e o interior mais distante. Cachoeira e São Félix eram os grandes entrepostos nesse circuito de transportes de pessoas e mercadorias. Os saveiros eram peças fundamentais nesse circuito, pois logo se revelaram a embarcação mais apropriada para navegar com desenvoltura tanto nas águas do Paraguaçu como no mar interior da Baía de Todos-os-Santos. Na época da guerra de independência, os saveiros foram também o principal meio de transporte das tropas que marcharam do Recôncavo para libertar Salvador do domínio português. Além dos saveiros, havia diversos outros tipos de embarcações, inclusive as canoas que foram fundamentais para a rendição da canhoneira que bombardeou a cidade de Cachoeira logo depois do 25 de junho quando a Câmara se pronunciou favorável ao reconhecimento de Pedro I como autoridade legítima do Brasil. O festival realizado este ano em São Félix fez uma homenagem justa aos saveiros e aos saveiristas como protagonistas do processo de fundação do Brasil como país independente.

Há quem argumente que se o Corneteiro Lopes tivesse dado toque de recolher durante a batalha do Dois de Julho e os portugueses saíssem vencedores, talvez houvesse uma cisão territorial do país, com Portugal ocupando as terras ao norte de Minas Gerais. O senhor acha essa visão plausível? Eventualmente, a Bahia e o Nordeste poderiam ter permanecido sob controle português até a década de 1960 ou 1970, quando acontece processo de descolonização?

Mesmo que tivessem vencido os conflitos de 1821 e 1822, dificilmente os portugueses teriam condições de manter a Bahia como sua área de domínio apartada do resto do Brasil. Desde o final do século 18, a então província da Bahia juntamente com a de Pernambuco foram palco de vários movimentos autonomistas e com forte penetração nas camadas populares. A Revolta dos Alfaiates, que tinha em sua liderança gente das camadas populares, muitos deles negros e mestiços, já questionavam o estatuto colonial e tinham em sua bandeira o combate aos preconceitos contra as ‘pessoas de cor’. Portanto, não havia contexto possível que pudesse conter por muito tempo a ideia de independência, que do ponto de vista das camadas populares estava fortemente ligado a expectativas de mudanças que pudessem incluí-las.

Seu premiado livro Encruzilhadas da Liberdade trata também da frustração dos negros escravizados que lutaram contra os portugueses sonhando com uma liberdade que só viria às vésperas da República, sem inclusão social. Como avalia a participação dos brasileiros negros na luta pela independência e o pós-independência?

Na época da independência, a população africana e afro-baiana representava mais de 70% da população total da cidade da Bahia e do seu Recôncavo. Grande parte dessa população estava presa à escravidão ou havia vivido a experiência do cativeiro. Mas o peso numérico não explica por si só o intenso e decisivo envolvimento das populações negras e mestiças nas lutas de independência. Duas questões são importantes: primeiro, que grande parte dessa população era escravizada e, segundo, mesmo os livres e libertos ocupavam a base da pirâmide dos que eram excluídos econômica e politicamente. Os negros, sejam escravos ou livres e libertos, tinham bons motivos para apostarem na independência como uma chance de superar a exclusão e abolir a escravidão na época da independência. Para eles, o projeto de Brasil era mais inclusivo do ponto de vista das liberdades e da cidadania. Por isso mesmo havia fortes temores por parte das elites baianas com o alistamento dos cativos nas tropas que marcharam para libertar Salvador. Ainda assim, a maioria dos combatentes que libertaram Salvador no 2 de julho de 1823 era negra e mestiça.

O site Salvador Escravagista mapeia referências elogiosas, em logradouros e monumentos, para denunciar a atualidade do pensamento escravagista.  Essas homenagens são um sinal do quão longe a liberdade dos brasileiros negros está de ser completa?

Importantíssima essa iniciativa de denunciar esses monumentos que enaltecem personagens e acontecimentos que estão relacionados à escravidão. Inclusive muitos dos chamados heróis da independência, alguns deles ostentando nomes de ruas e estátuas no centro da cidade, eram figuras que se envolveram na luta de independência para defender a sobrevida da escravidão e do tráfico. De alguma maneira, esses monumentos projetam a mesma lógica da dominação escravista na medida em que invisibiliza parcelas significativas da população que se envolveram nas lutas passadas e tinham outro projeto de Brasil independente com liberdade para todas as pessoas.

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