MUNDO
Curtis, o legado indígena
Por Ranulfo Bocayuva, do A TARDE
Comparada a uma Bíblia fotográfica e etnográfica, a gigantesca obra de Edward S. Curtis (1868-1952) O índio norte-americano, composta de 20 volumes de textos e fotografias sobre 80 povos indígenas dos Estados Unidos, documenta não somente sua vida, costumes, tradições, organização social e política e seus rituais espirituais e religiosos, mas também denuncia, pelo menos implicitamente, seu extermínio. Estima-se que cerca de dez milhões de índios tenham morrido nos EUA.
Não há, hoje, quase nenhum vestígio destas sociedades primitivas. Desde o século XVI até 1900, adotou-se política de extermínio destas sociedades, aliando ataques violentos (como, por exemplo, o massacre de Wonded Knee, em 1890) e propagação de epidemias. Integrantes de tribos remanescentes foram, em seguida, integrados a partir de práticas de assimilação forçada.
Fotos e estudos de Curtis podem ser acessados no site (clique aqui para acessar). Algumas delas também serão expostas na Caixa Cultural, em Salvador, a partir do dia 7, incluindo as fotos Cânion de Chelly (navajo, 1904), Oásis em Badlands (sioux, 1905), Acampamento Piegan (1911), Tecelão de cobertor (navajo, 1907) e O velho poço de Acoma (1908).
Se não fosse o trabalho fotográfico de homens como Curtis (é claro que outros estudiosos também documentaram a vida indígena, mas não com igual vigor e intimidade), como novas gerações de americanos poderiam conhecer suas origens étnicas? A resposta foi formulada em outubro de 1906 pelo presidente Theodore Roosevelt, autor do prefácio do primeiro volume e um dos mais importantes defensores do projeto. Ele atribuiu a Curtis o mérito de não somente ter conseguido observar e retratar com intimidade a vida das tribos das montanhas e planícies, mas também o de ter conseguido juntar toda esta documentação na forma de um livro. O trabalho de edição durou mais de cinco anos.
Embora a obra tenha sido financiada por J. P. Morgan, um dos mais poderosos homens na época, Curtis teve ainda que pedir somas significativas para terminar seu projeto. Em 1913, Morgan morreu antes da finalização da obra, mas seu filho decidiu continuar financiando-a.
Nos seus passos iniciais de fotógrafo estreante em Saint Paul, Minnesota, em 1898, Curtis contou com o apoio de especialistas em etnografia indígena, como o naturalista George Bird Grinnell, que o levou para expedição, em Montana, orientando-o também na catalogação sistemática de dados e imagens.
Para realizar a obra, rica em detalhes sobre as tradições e cultos dos apaches, sioux, comanches, crees, entre outros povos, o fotógrafo e etnólogo contou ainda com apoio do especialista Frederick Webb Hodge (autor de Índios americanos no Norte do México, escrito em 1910) e de William Myers, jornalista e pesquisador.
Mas, apesar de criticado e classificado de “pictorialista” por etnólogos profissionais por ter pagado por fotos posadas, incluindo danças e cerimônias, Curtis foi especialmente hábil em pesquisar, observar e fotografar temáticas referentes à mitologia e espiritualidade dos povos indígenas, duas áreas em que outros falharam em documentar. E também não há dúvidas sobre a objetividade das descrições sobre a vida e meio ambiente, dos velhos, jovens, cerimônias, jogos e hábitos do cotidiano, o que constitui banco de dados jamais visto em qualquer outra obra, conforme depoimento do professor Mark Gidley, de Literatura Americana da Universidade de Leeds, da Grã-Bretanha.
Seria difícil questionar, inclusive, o tom nostálgico e pessimista de Curtis e de suas imagens, que nos remetem à ideia do extermínio dos povos indígenas e da falta de perspectivas na sociedade americana. Enfrentando tanto sol como neve, percorrendo montanhas e planícies, estabelecendo comunicação inédita e arriscando sua própria vida, ele conseguiu retratar o que todo americano deveria, certamente, se orgulhar: amor dos índios pela natureza, respeito pela vida e fé nos princípios de verdade, honestidade e generosidade (palavras de um chefe sioux). Curtis morreu falido e isolado, mas sua obra o engrandece.
Ranulfo Bocayuva l Jornalista, diretor-executivo do Grupo A TARDE
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