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OPINIÃO

Dois e Dois: Quatro

Por Marcio Luis Ferreira Nascimento*

11/07/2021 - 14:30 h
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Certeza e verdade são substantivos femininos muito utilizados em conversas. Particularmente, em determinadas circunstâncias envolvendo argumentações, referem-se a situações onde não se resta dúvida e algo se encontra em conformidade com a realidade. Algumas pessoas, visando expressar suas impressões sobre certeza e verdade, utilizam rotineiramente a expressão poética “como dois e dois são quatro”, belamente ilustrada em famoso poema brasileiro, ao afirmar: “como dois e dois são quatro / sei que a vida vale a pena”.

A certeza e a verdade por trás de afirmações como “dois e dois são quatro” escondem receios naturais do ser humano. Chega a ser curioso que boa parte das pessoas que argumentam utilizando-se desta sentença abominem a matemática em seus afazeres. No entanto, além de incrivelmente bela, a matemática pode ser interessante para aqueles que, por alguma razão, a evitam ou mesmo desprezam.

Faz algum sentido tal desdém pois, para a maioria das crianças, jovens, e mesmo adultos, a matemática é considerada chata. Embora exista tal estigma, se apresentada de maneira distinta da habitual, a matemática pode despertar interesse e até mesmo fascínio a pessoas desinteressadas. Pode-se citar algumas razões. Talvez a principal seja a apresentação de maneira muito abstrata, demasiadamente conceitual. Isto pode atrapalhar muito a compreensão, pois uma grande parte dos alunos não conseguem entender num primeiro momento certas abstrações. Uma maneira de contornar esta situação seria partir de problemas práticos, criando imagens vivas, caracterizando os conceitos e não simplesmente enumerando definições.

Tomemos por exemplo o conceito de soma. Quanto vale dois mais dois? O papel dos professores, ao alfabetizar, passa por ilustrar como realizar tal cálculo da forma mais concreta possível, passando aos poucos para a abstração.

Pode-se por exemplo aprender a fazer esta conta ao dançar um xote, preferencialmente formando um par, pois é uma música romântica, para dançar juntinho. Seguindo o compasso da zabumba, são dois pra lá, dois pra cá, resultando em quatro passos. Este ritmo musical binário tem origem em uma dança alemã de quase duzentos anos, “schottische”, que significa escocesa, erroneamente atribuída, pois de fato é uma polca. Fez grande sucesso quando o Brasil ainda era um império, recebendo acréscimos e modificações ao longo dos anos e de diversas culturas e classes sociais, de nobres a escravos, e que tornaram o xote um ritmo singular e genuinamente brasileiro. Esta dança versátil é cheia de variações rítmicas de norte a sul, também conhecida como pisadinha.

Quando crianças, aprendemos muito ao interagir manipulando objetos, sejam estes lápis, tampinhas, moedas, palitos ou brinquedos. Ao colecionar, jovens aprendem paulatinamente o conceito de conjunto e uma de suas operações mais básicas, a soma, por exemplo ao juntar dois conjuntos de objetos. Brincadeiras por trás de atividades reforçam o caráter lúdico do aprendizado das propriedades numéricas. O próprio corpo pode ser utilizado, ao se considerar os dedos como objetos que servem para reforçar a ideia de soma. Não deixa de ser um procedimento inteligente, pois cada dedo pode também ser utilizado para contagem, outra atividade lúdica e extremamente importante ao ensino de matemática. O uso de expressões similares para indicar a soma tem o sentido de apresentar possibilidades outras, por exemplo por meio do uso de verbos “juntar” “adicionar” e termos como “conte tudo”, “junte tudo”, etc.

Todo professor é também um contador de estórias e histórias. A passagem da linguagem verbal para a escrita, particularmente para a linguagem simbólica, é outro importante e cuidadoso passo que requer estratégias, como por exemplo o uso de bons livros. Por sinal, o símbolo de adição tem uma história irregular e algo curiosa. Há mais de cinco séculos, antigos manuscritos e os primeiros livros ensinavam a somar “dois e dois” em latim, sendo a conjunção “et” escrita de formas diferentes, como o “&” comercial ainda empregado hoje. Como estas formas de escrita tem cruzamentos ao escrever, com o passar dos anos os livros foram modificando o símbolo até chegar a uma cruz. Esta nova simbologia, muito cara aos cristãos, de certa forma foi disseminada por religiosos, pois eram aqueles com maior domínio da escrita e facilidade da leitura em latim.

Em termos abstratos, pode-se ainda incluir uso da geometria ao invés da álgebra enquanto primeiro recurso para ilustrar o resultado de dois e dois. Por exemplo, dois ângulos retos de 90º juntos formam um ângulo de 180º, e dois ângulos de 180º numa mesma direção resultam num giro completo. É papel da geometria esclarecer certos aspectos de forma visual, pois consegue induzir o senso estético através de desenhos, outra atividade lúdica que pode ser considerada enquanto estratégia de ensino.

Particularmente com respeito a álgebra, ela não consiste apenas do uso de símbolos. Mas o ensino fica muito prejudicado quando o(a) docente, ao não conhecer as dificuldades dos alunos(as), esparrama um monte de letras e números numa aula. Mesmo a geometria, embora seja baseada em aplicações desde seus primórdios, torna-se relativamente difícil quando ensinada de modo abstrato. Nestas condições não é possível esperar muito interesse.

Uma boa aula deve ser estrategicamente bem concebida. Isto não significa apenas seguir de maneira lógica, o que por sinal consiste num dos fundamentos matemáticos ensinados pela geometria, concebida formalmente há 2300 anos pelo matemático grego Euclides de Alexandria. Propostas de reforço e repetição são bem vindas quando se tem uma classe heterogênea, visando a compreensão do que se pretende ensinar.

Certa feita, durante uma célebre entrevista ao completar 80 anos, o grande poeta, escritor, crítico de arte, biógrafo, tradutor, memorialista e ensaísta brasileiro Ferreira Gullar, pseudônimo de José Ribamar Ferreira (1930 - 2016), tendo recebido o Prêmio Camões de 2010 em sua terceira passagem pela FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty: www.flip.org.br), afirmou: “arte é uma coisa imprevisível, é descoberta, é uma invenção da vida”. Poder-se-ia afirmar a mesma coisa, sem medo de errar, apenas substituindo arte por matemática.

É da lavra do mesmo Gullar um dos mais belos poemas da língua portuguesa, publicada na obra “Dentro da Noite Veloz: Poesia”, Editora Civilização Brasileira (1975): “como dois e dois são quatro / sei que a vida vale a pena / embora o pão seja caro / e a liberdade pequena”. A cantora e compositora brasileira Adriana da Cunha Calcanhotto (n. 1965) homenageou este livro na célebre canção “Vambora” (1998).

O pão continua caro, e a liberdade necessita estar sempre vigiada. Sobre o pseudônimo, o poeta declarou em entrevista em 2010 o seguinte: “Gullar é um dos sobrenomes de minha mãe, o nome dela é Alzira Ribeiro Goulart, e Ferreira é o sobrenome da família, eu então me chamo José Ribamar Ferreira; mas como todo mundo no Maranhão é Ribamar, eu decidi mudar meu nome e fiz isso, usei o Ferreira que é do meu pai e o Gullar que é de minha mãe, só que eu mudei a grafia porque o Gullar de minha mãe é o Goulart francês; é um nome inventado, como a vida é inventada eu inventei o meu nome”.

É preciso concordar que a matemática precisa ser inventada e reinventada, seguindo a afirmação de que a vida realmente vale a pena, como dois e dois são quatro. Com certeza e com verdade.

*Professor da Escola Politécnica, Departamento de Engenharia Química e do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA

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