OPINIÃO
Sopradores de Vida
Por Marcio Nascimento*

Está escrito nos documentos bíblicos que a humanidade surgiu a partir do sopro divino (Genesis 2:7). Frente às dificuldades enfrentadas por populações e governos, urge tratar de possibilidades reais no que tange aos problemas agravados pelo coronavírus (covid-19), especificamente aqueles relacionados à dificuldade de respiração.
Visando auxiliar na emergência de casos de falta de ar, segue uma proposta passo a passo para elaborar um respirador, ou ainda reanimador manual de baixo custo, facilmente feito em casa utilizando-se de garrafas PET, tesoura, canivete/estilete, e fita isolante (ou qualquer outra à disposição). No entanto, cabe ressaltar que este serve apenas para auxílio emergencial em casos respiratórios de pequena gravidade. Outra ressalva é de que crianças e jovens não devem manipular tais instrumentos de corte.
A receita é simples: i) recorte cuidadosamente uma garrafa PET para se adaptar ao rosto do paciente; ii) rasgue a base da tampinha de modo a transformá-la numa rosca; iii) conecte a uma outra garrafa PET (se necessário, utilize de fita isolante para fixar as extremidades); iv) bombeie gentilmente ar junto ao rosto da pessoa ao pressionar a extremidade do vasilhame. Isto deve promover uma ventilação artificial mínima que permita algum conforto antes do atendimento médico.
É preciso também chamar a atenção para as seguintes restrições: a) não usar vasilhames provenientes de produtos químicos; b) lavar tudo antes de usar; c) este dispositivo serve apenas para mitigar a falta de ar de pessoas que realmente precisem de cuidados médicos – não é adequado para quem está com nariz entupido; d) garrafas PET pequenas podem servir para bebês e crianças – as demais, para adultos; e) adaptações podem ser feitas para maior melhoria / conforto, incluindo a substituição dos vasilhames; f) a manipulação inadequada pode machucar o rosto; g) procurar imediatamente um posto de pronto atendimento, unidade básica de saúde, emergência, Santa Casa ou mesmo hospital se a falta de ar persistir, pois o procedimento não representa uma cura e deve ser considerado como temporário; h) por ser artesanal, este dispositivo pode apresentar falhas, e deve ser encarado apenas emergencialmente, por conter muitas outras restrições, como não ser adequado a pessoas com histórico de doenças respiratórias, e por exemplo ser uma possível fonte de infecções (também) respiratórias se o uso for prolongado.
Historicamente, o primeiro procedimento de ventilação mecânica foi proposto há quase cinco séculos pelo médico e anatomista flamengo Andreas Vesalius (ou Andre Vesale, 1514 - 1564) na obra “De Humani Corporis Fabrica” (Da Organização do Corpo Humano) de 1543, em sete volumes. Vesalius propôs assoprar ar pulmões adentro (i.e., ventilação com pressão positiva) por meio invasivo (traqueotomia) para demonstrar o mecanismo da respiração.
A primeira patente americana de equipamento de ventilação mecânica foi desenvolvida por Alfred F. Jones (c. 1828 - c. 1894) em 1864 (US 44,198: “Improvement in Vacum Apparatus for Treating Diseases”, algo como “Melhoria no Tratamento de Doenças por meio de Aparelho de Vácuo”). Consistia numa caixa onde se introduzia o paciente sentado, apenas com o pescoço e cabeça fora da mesma, e se exercia uma pressão negativa (i.e., menor que a ambiente, um ‘quase’ vácuo).
O primeiro ventilador mecânico de pressão positiva foi desenvolvido pelo relojoeiro, empresário e inventor alemão Johann Heinrich Dräger (1847 - 1917) em 1907, recebendo o nome comercial Pulmotor (DE 209287: “Verfahren und Vorrichtung zum selbsttaetigen Umsteuern der Luft-, Druck- und Saugperioden von Apparaten zur kuenstlichen Atmung” ou “Método e dispositivo para reverter automaticamente a pressão do ar e os períodos de sucção dos aparelhos de respiração artificial”, em 1908; FR 394804: “Méthode et Appareil pour Provoquer la Respiration Artificielle” ou “Método e Aparelho para Induzir Respiração Artificial” em 1909; US 1,044,031: “Method of Causing Artificial Respiration” ou “Método de Indução da Respiração Artificial” em 1912).
Originalmente, este dispositivo era controlado pelo tempo, pois a troca entre inspiração e expiração era realizada basicamente por meio de um relógio, um tubo de oxigênio e uma válvula redutora de pressão elaborada em conjunto com seu filho, o engenheiro alemão Alexander Bernhard Dräger (1870 - 1928), chamada Lubeca. Tal particular válvula surgiu a partir da necessidade de ambos produzirem cerveja. Melhorias foram apresentadas ao longo dos anos.
O primeiro ventilador mecânico manual portátil e comercial recebeu o nome Ambu (“Artificial Manual Breathing Unit” ou “Unidade de Respiração Manual Artificial”), e foi criado pelo prolífico inventor e engenheiro alemão Holger Israel Hesse (1900 - 1967) e pelo dentista e médico anestesista dinamarquês Henning Moritz Ruben (1914 - 2004). A patente foi depositada em 1956 e concedida quatro anos depois em nome de Hesse apenas (DK 89883, “Apparat til kunstigt åndedræt ved intermitterende indblæsning af luft i en patients luftveje”, algo como “Aparelho para respiração artificial, injetando ar intermitente no trato respiratório do paciente”). Tal equipamento foi considerado em 1964 pela Associação Médica Americana (AMA, “American Medical Association”) como “um dos mais significativos avanços dos últimos 25 anos”. Hesse já trabalhava no desenvolvimento de equipamentos médicos desde 1935 por meio de sua companhia Testa Laboratorium, fundada dois anos depois, e renomeada como Ambu em 1986. Seu primeiro equipamento foi um teste rápido de hemoglobina chamado Sicca. Após seu passamento, a empresa passou a ser administrada por sua esposa, Ruth Hesse (1918 - 1979).
Exatamente pelo fato de que tais patentes de equipamentos de ventilação mecânica originais não têm mais validade, pode-se propor a empresários e governos que invistam na produção em série destes itens, sem a necessidade de pagamento de royalties às empresas. Neste momento delicado da disseminação do coronavírus, um equipamento similar ao Ambu é mais confiável, seguro e adequado que qualquer respirador manual caseiro. Inclusive pode-se aproveitar da tecnologia das patentes mais recentes e já expiradas, de pouco mais de vinte anos (isto é, válidas até o ano 2000) para elaboração de tais produtos sem a necessidade da quebra de patentes. Uma estimativa de preço deveria portanto reduzir em até 80% o valor comercial dos itens disponíveis atualmente no mercado (isto se ainda houver redução de impostos, e utilizando de novos materiais, bem mais baratos, à disposição).
A proposta pode ser estendida a respiradores mecânicos convencionais, mais elaborados, semiautomatizados ou não. Embora mais caros, a estratégia de se utilizar da tecnologia de patentes expiradas deveria ser ao menos consideradas pelos governos e sociedade, pois este consiste num dos princípios patentários: a disseminação do conhecimento e da tecnologia em prol da humanidade após a restrição de uso por vinte anos aos inventores. Outras possibilidades podem surgir, a partir da colaboração eficiente e inteligente de profissionais de exatas, como tecnólogos, engenheiros e estudantes, universitários ou não. De toda sorte, tais políticas públicas devem salvar vidas ao permitir um alento a possíveis doentes com falta de ar, restaurando assim aos necessitados o sopro da vida.
*Professor da Escola Politécnica, Departamento de Engenharia Química e do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA
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