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DIA INTERNACIONAL DOS POVOS INDÍGENAS

Indígenas anseiam por demarcações para cessar conflitos por terra

Senado deve começar a debater Marco Temporal nesta semana; STF retoma votação do tema até setembro

Por João Guerra

09/08/2023 - 6:00 h
Indígenas realizaram um ato contra o Marco Temporal nas ruas do Centro Administrativo da Bahia até a Avenida Paralela, no mês de maio
Na foto: Indígenas no ato contra a PL 2903
Foto: Raphael Muller / Ag. A TARDE
Data: 15/06/2023
Indígenas realizaram um ato contra o Marco Temporal nas ruas do Centro Administrativo da Bahia até a Avenida Paralela, no mês de maio Na foto: Indígenas no ato contra a PL 2903 Foto: Raphael Muller / Ag. A TARDE Data: 15/06/2023 -

Talvez por obra do acaso, quis o calendário que o Dia Internacional dos Povos Indígenas, comemorado nesta quarta-feira, 9, caísse na mesma semana em que a senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS) pretende colocar a proposta do marco temporal de terras indígenas em votação no colegiado. Ela é a relatora do projeto de lei (PL 490/2007) na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) do Senado Federal.

E o assunto promete movimentar Brasília. Em paralelo, até o próximo mês, a discussão sobre o tema deve voltar para a pauta dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). O julgamento chegou a ser suspenso no início de junho deste ano, quando o placar da votação estava em 2 a 1 contra o marco.

A iminência de uma definição sobre a forma de demarcação de terras indígenas e o temor de que tanto os senadores quanto os magistrados do STF tenham o mesmo entendimento da Câmara dos Deputados, que aprovou a iniciativa no final do último mês de maio, deixam lideranças indígenas do país inteiro em alerta, inclusive na Bahia.

De acordo com os dados do Censo 2022, o número de pessoas que se autodeclararam indígenas quase quadruplicou no estado, em comparação ao último levantamento do IBGE, fazendo com que a Bahia passe a contabilizar a segunda maior população indígena do país, com um total de 229.103 pessoas, representando 13,5% dessa fatia populacional.

As lideranças e especialista ouvidos pelo Portal A TARDE avaliam que a possibilidade do marco temporal ser declarado como constitucional pelo STF é um “retrocesso”.

Mas o que é o Marco Temporal?

De acordo com a ementa da proposição apresentada no Congresso em 2007, o texto “regulamenta o art. 231 da Constituição Federal, para dispor sobre o reconhecimento, a demarcação, o uso e a gestão de terras indígenas; e altera as Leis nºs 11.460, de 21 de março de 2007, 4.132, de 10 de setembro de 1962, e 6.001, de 19 de dezembro de 1973”.

Em linhas gerais, na prática, o que o marco temporal pretende é que para serem consideradas terras ocupadas tradicionalmente, deverá ser comprovado objetivamente que, na data de promulgação da Constituição (5 de outubro de 1988), essas terras eram ao mesmo tempo habitadas por indígenas em caráter permanente, usadas para atividades produtivas e necessárias à preservação dos recursos ambientais e à reprodução física e cultural.

No decorrer da análise do projeto na Câmara, foram incorporados outros elementos, tais como a autorização para a plantação de cultivos transgênicos em terras utilizadas pelos povos indígenas; a proibição de expansão de terras já demarcadas para indígenas; a adaptação dos processos administrativos de demarcação que ainda não foram finalizados de acordo com as novas diretrizes; e a anulação da demarcação que não cumprir essas normas.

Ademais, o projeto que foi aprovado na Casa estipula que o direito de usufruto das terras por parte dos povos indígenas não terá prioridade sobre os interesses da política de defesa e soberania nacional, o que permitirá a instalação de bases militares, unidades, postos militares e outras intervenções militares, sem a necessidade de consultar as comunidades indígenas envolvidas ou a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).

Coordenador do Movimento Indígena da Bahia (Miba) e Cacique da Aldeia Coroa Vermelha, que fica em Santa Cruz de Cabrália, no sul da Bahia, Zeca Pataxó, classifica o marco tempo como “um ataque à Constituição”.

“A gente não estava aqui em 1988, a gente estava aqui bem antes de 1500. Então, pra a gente, o retrocesso é muito grande e, por isso, a gente tem também trabalhado não só no Brasil, levando à ONU [a questão do projeto] para que esse marco temporal não possa ser aprovado”, defende o líder indígena.

Cacique Zeca Pataxó, Coordenador do Movimento Indígena da Bahia (Miba)
Cacique Zeca Pataxó, Coordenador do Movimento Indígena da Bahia (Miba) | Foto: Reprodução | Instagram @zecapataxo

A pauta chegou à Casa Alta depois de ser aprovada pela Câmara dos Deputados no final de maio deste ano, sob protesto de indígenas de todo o país, que ocuparam a Praça dos Três Poderes, em Brasília, contra a proposta. O texto passou com um placar de 283 votos a favor e 155 votos contra, com o apoio em massa da chamada “bancada ruralista” e de parlamentares do Centrão que, no meio da discussão entre liberações de emendas e conquistas de cargos na gestão federal, quiseram passar um recado de insatisfação contra o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Para Zeca Pataxó, os interesses econômicos de parte da bancada na Câmara se sobrepuseram aos interesses do país. “Foi aprovado na Câmara porque a gente sabe que tem um maior interesse da bancada ruralista. A bancada do agronegócio, que tem diversas fazendas, diversos locais dentro de Terra Indígena, que quer fazer desmatamento não só no Amazonas, mas aqui também na região do nosso povo Pataxó”, acusa o cacique.

Na mesma linha, a defensora pública Aléssia Tuxá, que é coordenadora o Grupo de Trabalho sobre Igualdade Étnica da Defensoria Pública do Estado da Bahia (DPE-BA), estrutura responsável por fomentar a defesa judicial e extrajudicial dos direitos dos povos indígenas e ciganos no estado, qualifica a ideia do marco temporal como absurda e representante de um método de negação da história.

“O direito ao território indígena não está relacionado e não tem o mesmo fundamento que o direito à posse civil, a posse individual. Esse direito no âmbito indígena decorre dos vínculos de ancestralidade. É a posse imemorável, é o vínculo com aquela terra. O processo de violência e tentativa de discussão é constante. Então você ter que adotar uma data pra dizer quem estava ali ou não, quem tem direito baseado nisso, é negar a história. É uma forma de tentar desestimular mesmo a história e passar por cima disso”, explica.

Primeira defensora pública indígena da Bahia, Aléssia Tuxá
Primeira defensora pública indígena da Bahia, Aléssia Tuxá | Foto: DPE-BA | Divulgação

A esperança do governo e dos indígenas, contudo, é que no Senado, a proposta não passe. Por lá, diferente de como foi na Câmara, que teve uma tramitação acelerada, o senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), prometeu que o PL passará por todo o ritual legislativo. E, além disso, a própria Thronicke, já disse que mantém diálogo com o governo sobre o projeto e tentará chegar a uma solução de consenso sobre o tema. Em outra frente, parlamentares ligados ao agronegócio pressionam para que a análise seja acelerada.

Outro cenário que se mostra favorável ao que os indígenas defendem é o momento mais ameno da relação do governo Lula com o Congresso. Após a liberação de um montante considerável de emendas para congressistas de partidos do Centrão e a promessa de acomodação de parlamentares de partidos como o PP e o Republicanos em cargos da administração federal, um ambiente com maiores oportunidades de governabilidade apontam que, pelo menos no Senado, a agenda do governo federal terá uma vida facilitada.

A defesa de ser mantida a forma de demarcação dos territórios indígenas como é feita conforme à Constituição de 1998 encontra morada na opinião pública. Em uma enquete realizada no site do Senado Federal, 16.403 votantes são contrários ao marco temporal, ao passo que 1.468 são favoráveis.

Por outro lado, e não menos importante, há a matéria sobre o mesmo tema que é analisada pelos ministros do STF. O Supremo vota uma ação que julga se a promulgação da Constituição pode servir como marco temporal para essa finalidade, situação aplicada quando da demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. O STF já adiou por oito vezes o julgamento. A última vez ocorreu em junho de 2023.

Os magistrados julgam um impasse de uma terra indígena em Santa Catarina. Em 2003, foi criada a TI Ibirama-Laklãnõ, mas uma parte dela, ocupada pelos indígenas Xokleng e disputada por agricultores, está sendo requerida pelo governo catarinense no STF. O argumento é que essa área, de aproximadamente 80 mil m², não estava ocupada em 5 de outubro de 1988. Os Xokleng, por sua vez, argumentam que a terra estava desocupada na ocasião porque eles haviam sido expulsos de lá. A decisão sobre o caso de Santa Catarina firmará o entendimento do STF para a validade ou não do marco temporal em todo o país.

Até o momento, o placar está em 2 a 1 contra o marco temporal. O relator do caso na Corte, ministro Edson Fachin, e o ministro Alexandre de Moraes foram contrários à tese. Na direção oposta, Nunes Marques votou a favor do marco temporal.

Efeitos na Bahia

O cenário de discussões em Brasília é particularmente desafiador para os povos indígenas localizados na Bahia. A maioria habita a região sul do estado, onde se encontram aldeias das comunidades Pataxó e Truká, entre outras presentes em municípios como Porto Seguro, Ilhéus, Santa Cruz Cabrália, Pau Brasil e Prado.

Conforme informações fornecidas pela DPE-BA, pelo menos 14 grupos indígenas residem no estado, incluindo os povos Pataxó, Truká, Tuxá, Atikun, Xucuru-Kariri, Pankararé, Tumbalalá, Kantaruré, Kaimbé, Tupinambá, Payayá, Kiriri, Pankaru e Pataxó Hã Hã Hãe.

No ano de 2023, o estado da Bahia possui no mínimo 11 territórios indígenas oficialmente reconhecidos pela fundação. A maioria dessas áreas está situada nas regiões sul e extremo sul do estado. Além disso, há territórios em processo de regularização, como é o caso dos territórios de Barra Velha do Monte Pascoal (Porto Seguro), da etnia Pataxó; Tupinambá de Olivença (Ilhéus, Una e Buararema), da etnia Tupinambá; e Tupinambá de Belmonte (Belmonte).

O órgão da administração federal responsável pela demarcação é a Fundação Nacional do Índio. Cabe à Funai promover estudos de identificação e delimitação, demarcação, regularização fundiária e registro das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas, além de monitorar e fiscalizar as terras indígenas. O prazo entre o início e fim do processo pode levar anos.

De acordo com a defensora pública Aléssia Tuxá, a demarcação de terras indígenas na forma como está prevista na Constituição de 1988 poderia minorar os conflitos de terras envolvendo indígenas e outros atores onde essa fatia da população busca ter a sua territorialização garantida.

“A situação do sul da Bahia, que na verdade é a situação dos povos indígenas em geral. Mas o recorte geográfico que eu acho que é interessante fazer porque a situação do sul da Bahia, em termos de violência, é uma das mais graves do país hoje. A gente tem um número elevado de homicídios de indígenas nesse contexto de conflito pelo território e, parece simplista, mas a verdade é que tudo se resolve com a demarcação. Por quê? Porque se a demarcação tivesse sido feita tal qual a Constituição Federal estabelece, que no prazo de cinco anos os territórios indígenas estariam demarcados, nós não estaríamos tendo esses conflitos. Em 2023, a Constituição faz 35 anos e ainda estamos nessa luta”, destaca Tuxá.

Segundo dados do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), pelo menos nove indígenas foram assassinados no estado da Bahia em 2022, número maior que dos anos anteriores: 4 em 2018; 1 em 2019; 5 em 2020; e 6 em 2021.

Para o antropólogo, ativista e secretário de Assuntos Indígenas do município de Santa Cruz de Cabrália, Juari Pataxó, diferente do que os defensores do marco temporal falam, de que a tese garantiria uma maior segurança jurídica para produtores rurais e, dessa forma, diminuiria os conflitos por terras nas áreas onde os indígenas pretendem se instalar.

O antropólogo, ativista e secretário de Assuntos Indígenas do município de Santa Cruz de Cabrália, Juari Pataxó
O antropólogo, ativista e secretário de Assuntos Indígenas do município de Santa Cruz de Cabrália, Juari Pataxó | Foto: Reprodução | Instagram @juari_pataxo

“Pra nós [indígenas], eu acredito que fique muito bem pior como já está sendo. Se o marco temporal for aprovado, vai ter muito mais morte, muito mais conflito. Imagina mexer com tantos territórios que já existem. Imagina você simplesmente parar com um processo de demarcação que já demora décadas. É lógico que vai ter mais conflito”, avalia Juauri.

O indígena, contudo, se diz esperançoso em relação ao que virá. Segundo ele, nos últimos quatro anos, os povos originários tiveram seu acesso à Funai “proibido”. A criação de um Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e os indícios de um governo que se comprometeu a encampar a pauta dos primeiros habitantes do que veio a se tornar o Brasil. “Foi aberta mais uma vez a porta pro diálogo. Pra poder reconstruir todos esses diálogos, não só de áreas de territórios, mas de áreas de sustentabilidade, de segurança e de educação”, fala esperançoso.

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