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ENTREVISTA – LUIS FELIPE SALOMÃO

‘O Brasil judicializou a vida social e política’

Corregedor nacional de Justiça fala sobre as raízes da judicialização excessiva no Brasil e aponta distorções

Por Divo Araújo

24/06/2024 - 6:00 h
Luis Felipe Salomão, corregedor nacional de Justiça e ministro do STJ
Luis Felipe Salomão, corregedor nacional de Justiça e ministro do STJ -

Com 80 milhões de processos à espera de decisão, a Justiça brasileira é uma das mais demandadas do mundo. Essa situação remonta a 1988, quando a atual Constituição Federal foi elaborada estabelecendo um rol de novos direitos para o cidadão. “Viemos de um processo de redemocratização que estabeleceu o Poder Judiciário como o grande guardião dessas promessas que a Constituição fez”, explica o corregedor nacional de Justiça e ministro do STJ, Luis Felipe Salomão, nesta entrevista exclusiva ao A TARDE.

Salomão esteve em Salvador em junho para participar de um seminário promovido pela Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário da Bahia (Ademi-Ba). No evento, ele falou justamente sobre os “Desafios para a redução da litigiosidade” no país. Na palestra e depois na conversa com a reportagem de A TARDE, ele apontou outras causas para essa judicialização excessiva e defendeu soluções criativas. Saiba quais na entrevista que segue.

À frente da Corregedoria Nacional de Justiça, o senhor colocou como meta a elaboração de estratégias para reduzir a litigiosidade, que definiu como quase patológica no Brasil. Quais são os reflexos dessa litigiosidade excessiva para o Poder Judiciário?

Nós vivemos um processo de judicialização da vida no Brasil. Da vida social, da vida política, da vida econômica e isso não começou ontem. Isso é desde a Constituição Federal de 1988. Há uma tendência de judicialização no mundo todo, mas no caso brasileiro ela se tornou mais acentuada por conta de um processo de redemocratização em que o constituinte fez questão de colocar na Constituição um rol de direitos para o cidadão. Viemos de um processo de redemocratização que estabeleceu o Poder Judiciário como o grande guardião dessas promessas que a Constituição fez. Promessas de cidadania, promessas de direitos. E, quando ele estabelece que o Judiciário é esse guardião, fica claro que houve um afluxo de demandas para fazer valer esses direitos. Já se dizia que o direito a ter direitos é o primeiro direito. Você precisa afirmar os direitos previstos na Constituição. O Judiciário ficou como esse lugar simbólico, onde você reivindica os direitos e leva as demandas. Houve então uma explosão de demandas. Esses números saltaram 30, 40 vezes em progressão aritmética, em cinco, dez, 20 anos, até chegar o momento atual, em que temos aí cerca de 80 milhões de processos em tramitação. Um processo para cada dois habitantes. Nós temos 30 milhões de causas novas por ano. Uma das maiores cargas de trabalho para juízes do mundo inteiro. É muito volume. Estamos falando realmente de uma explosão de causas sobrecarregando a máquina, chegando a um volume excessivo. Nós precisamos ser criativos e encontrar soluções criativas.

O senhor já disse que não existe uma única solução e que é preciso trabalhar em várias frentes para se combater esse processo de judicialização do país. A curto e médio prazo, o que pode ser feito?

O Judiciário é um pouco vítima do seu próprio sucesso. Justamente por esse lugar onde se judicializou a vida social, a vida política, há o reverso da medalha. Que é uma excessiva exposição, uma cobrança muito maior da sociedade. Algumas vezes de maneira verdadeira, justa, outras nem tanto. Porque tem sempre alguém que perde a demanda e não gosta de ter perdido. Mas o Judiciário tem um papel fundamental de estabelecer segurança jurídica. E quando há uma disputa, qualquer que seja, em casa, na herança, na firma, no trabalho, no setor público, quando há uma demanda, esgarça o tecido social. E o Judiciário, como se fosse um cirurgião, vai lá, costura novamente e diz, ‘não, você tem razão, o outro não tem’. É como se ele fosse um garantidor da paz social quando atua. Cada juiz, na sua comarca, quando pega um processo para julgar, ele tem um alcance muito grande no trabalho que faz ali quase silencioso. Por outro lado, há algumas políticas públicas que têm um alcance muito maior. A Corregedoria Nacional de Justiça e o Conselho Nacional de Justiça, onde estou, têm essa capacidade. E é também uma característica brasileira. Vou te dizer, o nosso Conselho Nacional de Justiça, ele é diferente de outros conselhos do mundo inteiro, que só têm a atividade mais na área da disciplina, da apuração da responsabilidade disciplinar do juiz. O nosso conselho, no caso brasileiro, estabelece políticas públicas para o Poder Judiciário. Por exemplo, agora recentemente, nós fizemos uma semana inteira voltada para fornecer certidão de nascimento para população mais vulnerável, moradores de rua. Nós atendemos quase 200 mil pessoas no Brasil. Entregamos quase 30 mil certidões de nascimento. É um projeto maravilhoso. Entregamos para pré-egressos, para população indígena. Eu mesmo fui lá, em Tabatinga, no interior do Amazonas, na tríplice fronteira, entregar para a maior comunidade indígena do país. Recentemente fizemos um movimento para entrega de documentos de propriedade chamado de regularização fundiária também para as comunidades mais carentes do Solo Seguro Favela. Começamos no Rio de Janeiro, entregamos na favela de Heliópolis, fizemos um trabalho bem legal. Outra política pública bem bacana que a Corregedoria desenvolve é o estímulo à doação de órgãos. Numa parceria com os cartórios, por meio de um aplicativo, você pode se tornar um doador, manifestar sua vontade de graça. E o número de doadores praticamente triplicou em uma semana da nossa campanha. É bem bacana, um trabalho de grande alcance social. O que estou dizendo é que o Judiciário, em cada um dos juízes lá na comarca mais distante, quando ele está dando uma sentença, recompondo ali a paz social, ou quando se elabora uma política pública de largo alcance, tem um papel central na nossa democracia.

Voltando à questão do litígio, a gente sabe, por exemplo, que a saúde é um segmento que vive essa extrema judicialização. Quais outras áreas são afetadas por esse fenômeno?

Tem vários setores muito carregados hoje com essa pecha da judicialização. São demandas predatórias, não são demandas repetidas. São demandas frívolas, ilegais, em que se forja uma situação para se obter determinados benefícios. Nós temos uma sobrecarga grande no setor de saúde. Nós temos uma sobrecarga grande no setor aéreo. Nós temos uma quantidade enorme de demandas no setor bancário. Há uma litigiosidade grande na construção civil. Temos alguns setores que são muito afetados e algumas situações que já são crônicas. As ações previdenciárias entopem a Justiça Federal. Praticamente 40% do volume são de demandas previdenciárias, porque também não é só o Judiciário que atua. É o INSS, é o governo, outros programas. É um projeto em que nós estamos atuando numa padronização. O CNJ tem atuado bastante. Agora mais recentemente atacamos outra chaga. O CNJ baixou um provimento para tentar diminuir sobremaneira as execuções fiscais que entopem o Judiciário brasileiro. É o poder público usando o Poder Judiciário para cobrar tributos. Esses são alguns desses pontos, não todos.

O Brasil é conhecido por ser o país com o maior número de advogados do planeta. Isso de certa forma contribui para esse panorama?

É como você estava dizendo, não é só uma causa. Não se chega a uma situação como essa que estamos, se não fosse um conjunto de problemas que já vêm de algum tempo. Alguns, como te disse, são fruto dessa retomada da cidadania. O Judiciário é vítima do seu próprio sucesso. Outras são decorrentes da própria formação do Estado brasileiro. Você tem custas muito baixas, tem juizados especiais onde não paga advogado, onde não paga custa nenhuma. É um acesso direto da população. É bom por um lado, mas por outro sobrecarrega a máquina, é custoso. Você tem um Poder Judiciário que é diferente do mundo inteiro. É um Poder Judiciário forte, autônomo, independente, aberto a receber as demandas da sociedade. Você tem a questão do excessivo número de advogados, que precisam de mercado de trabalho para atender a todos. Tem uma série de fatores que vão fazendo com que essa máquina se sobrecarregue.

O senhor em agosto agora vai assumir a vice-presidência do STJ e deixa a Corregedoria Nacional de Justiça. Olhando em retrospectiva, nesses dois últimos anos, qual é o legado que o senhor deixa à frente da Corregedoria?

Uma experiência muito interessante porque foram dois anos onde visitei todos os estados da federação. Eu posso dizer que conheço a Justiça de todos os estados por dentro. Fui a todos os segmentos da Justiça - Justiça Federal, Trabalhista, Militar. Acompanhei os juizados, fui a tudo. Tive realmente uma avaliação sobre todo o funcionamento do sistema de Justiça que foi muito rico. Nós procuramos deixar muita coisa. Projetos de alcance social, alguns já te mencionei aqui, o ‘Registre-se’, o ‘Um só coração’, a questão da regularização fundiária, outros projetos de implantação do Serp, que é um sistema integrado dos cartórios. Nós também trabalhamos numa dinâmica de fiscalização e de correições completamente nova. Aqui mesmo na Bahia é um exemplo disso. Nós viemos fazer uma correição, identificamos os problemas. E estamos trabalhando para melhorar o sistema de Justiça na Bahia como um todo. É muita coisa que nós fizemos e agora vamos levar essa experiência lá para trabalhar no STJ.

A questão da morosidade segue sendo a principal reclamação dos brasileiros quando se fala de Justiça. É uma questão que foi muito demandada na corregedoria? O que de mais grave chegou em relação a reclamações contra juízes?

É interessante a sua pergunta, porque realmente a gente passa a ter uma visão muito precisa da situação do nosso sistema de Justiça. Nós temos um Judiciário, como te disse, reconhecido no mundo inteiro como um Judiciário autônomo, independente, forte. Onde temos autonomia administrativa, financeira, diferente de muitos países. Na maioria dos países essa prática não existe. Por outro lado, temos que gerir uma demanda monstruosa de 80 milhões de processos em tramitação. Precisa gerência, eficiência de gestão, precisa de estrutura de pessoal, pagamento adequado para os servidores e magistrados para ter um quadro de pessoal gabaritado. Nós precisamos ter uma Justiça de primeiro mundo para prestar um serviço de primeiro mundo. E nós, efetivamente, temos uma qualidade muito boa. Porque senão, por esse volume que temos, o maior do mundo, já teríamos entrado em colapso. Um ponto interessante disso tudo é que, na parte disciplinar, embora tenha procurado olhar com bastante rigor, os juízes corretos, os juízes sérios, são a grande maioria. Há um universo enorme de juízes que trabalham direito e não concordam de não ver punidos aqueles que se desviam do caminho correto. E esses são um número muito pequeno. A grande maioria, mais de 99% dos juízes, são operosos, trabalhadores, dedicados. Pouquinho menos de 1% são os que se desviam e esses merecem a sanção correta para não contaminarem e não ampliarem a situação.

Uma das críticas da sociedade é de que a punição mais severa para um juiz é a aposentadoria compulsória. O magistrado se aposenta, mas continua recebendo os vencimentos. Qual a sua opinião?

Essa é uma questão que envolve a modificação da lei. Não é uma questão que o Judiciário escolheu. É uma proposta que existe na lei. Mas nada obstante a isso, eu acho que há uma desinformação, certa má compreensão sobre essa questão. Vou explicar. Assim como qualquer cidadão que contribui para sua previdência, o juiz paga mensalmente para, ao final, ter sua aposentadoria. Quando você faz uma aposentadoria compulsória e aplica uma pena para o juiz, não me parece justo ele perder o que contribuiu ao longo da história. Seria o mesmo que pegar alguém condenado por um crime de homicídio, a maior pena que pode acontecer, e cassar a aposentadoria do sujeito. Uma coisa não tem a ver com a outra. Ele cometeu um crime, vai ser preso por isso. O juiz que cometeu uma infração grave, vai ser expulso da magistratura, mas não perde o entendimento da aposentadoria. Guardadas as proporções são coisas que se equivalem. Agora, o ideal seria efetivamente que a lei e o parlamento pudessem debater qual a melhor fórmula para aplicar essa sanção.

O uso de tecnologias, da inteligência artificial já vem sendo utilizado para agilizar os processos? O senhor considera que ele deve ser intensificado?

Fizemos uma pesquisa na Fundação Getúlio Vargas e identificamos todos os sistemas de inteligência artificial que têm hoje em funcionamento no Poder Judiciário brasileiro. Visitamos cada um dos tribunais, cada um dos segmentos, tribunais superiores e constatamos que nós temos um bom e avançado sistema de inteligência artificial. Longe ainda da ideia de um juiz robô. Mas nós fazemos triagem por tipo de processos, aplicação de precedentes, separando quais os casos que vão receber os precedentes, quais os que não vão. A gente tem um uso de tecnologia bastante avançado e na pandemia, como o Judiciário retomou logo as suas atividades, foi o primeiro que retomou com o uso da tecnologia, nós também desenvolvemos ferramentas importantes. Eu diria que o nosso Judiciário, com praticamente 100% dos processos digitalizados, é um dos mais tecnológicos do mundo. Os julgamentos também são transparentes, abertos ao público. Nós temos motivo para nos orgulhar.

Falando em mudanças na sociedade, o senhor coordenou o grupo de juristas responsável por reformar nosso Código Civil. Dos 2.046 artigos, pouco mais de mil e poucos devem ser modificados. Por que fazer uma reforma tão ampla?

Nós procuramos o grupo de juristas que elaborou essa proposta que agora vai ao exame do Senado Federal. É o que tem de jurista mais gabaritado no país, são os processualistas mais renomados no Brasil e no exterior. Nós nos debruçamos durante seis meses e foi um debate muito rico, muito intenso, sobre os variados temas do código. Qualquer um pode perceber o quanto a sociedade evoluiu nesses últimos 15, 20 anos. Não só pelo impacto das tecnologias. O próprio avanço civilizatório na área do direito de família, na área do direito de reprodução, na sucessão, nas empresas, no impacto das tecnologias, das redes sociais. É óbvio que o principal diploma do cidadão comum, que é o Código Civil, é o diploma do cidadão, é a lei do cidadão comum. É óbvio que esse diploma tem que estar preparado para essa e para as futuras gerações, porque as mudanças são muito rápidas. E, se nós não tivermos a regulação adequada, vamos ficar para trás. Os grandes países do mundo estão atualizando suas leis civis para adequar essas mudanças de comportamento, da sociedade. E nós procuramos fazer isso dentro dessa proposta que apresentamos, mas com muita segurança. No caso do direito das empresas, nós procuramos incentivar o empreendedorismo, a segurança jurídica, a força dos contratos. No caso do direito de família, nós pegamos toda jurisprudência que já vinha consolidada do Supremo, do STJ, que contempla avanços na área dos costumes, mas com segurança, tudo com base na jurisprudência. Pegamos a parte de novas tecnologias e inovamos no mundo, criando um livro só sobre direito digital. Foi um trabalho talvez dos mais interessantes na minha carreira. Realmente foram muito ricos os debates com os maiores especialistas do Brasil.

O senhor nasceu em Salvador, mas fez toda a sua carreira no Rio de Janeiro. Qual é a relação que o senhor tem com a capital baiana?

Com muito orgulho, sou soteropolitano. Nasci aqui no Hospital Português, mas meus pais foram para o Rio de Janeiro quando eu era muito novinho. Então, realmente não tenho a referência, nem a satisfação de ter tido a infância e a juventude aqui. A minha infância, a minha juventude, minha faculdade e depois a minha carreira da magistratura, foram no Rio de Janeiro.

Raio-X

Atual corregedor nacional de Justiça, Luis Felipe Salomão é formado em Direito pela UFRJ e pós-graduado em Direito Comercial. É ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) há 16 anos. Ingressou na magistratura como juiz substituto, foi titular da 2ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro e se tornou desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ). Atuou como promotor em São Paulo. Presidiu a comissão de juristas instituída pele Senado para elaborar o anteprojeto de reforma do Código Civil. Em agosto, deixa a corregedoria e assume a vice-presidência do STJ.

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