DOMÉSTICAS
Trabalho escravo: reinserção social é desafio para vítimas
Sequelas físicas, mentais e sociais quase nunca são cuidadas após o resgate
Por Priscila Dórea
De acordo com o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), entre 2017 e 2024, foram resgatadas 35 trabalhadoras domésticas vítimas de exploração análoga à escravidão na Bahia. Exaustivo, sem folga, sem férias, sem salário e sob controle de outra pessoa por 10, 30, 50 anos, até mais, o trabalho escravo deixa sequelas físicas, mentais e sociais, que dificilmente são cuidadas após o resgate.
No último dia 7, o cantor Leonardo entrou na lista suja do trabalho escravo do governo federal, onde 24 empregadores domésticos baianos estão presentes.
“Fazia tudo, absolutamente tudo da casa, lavava, passava, acordava 5h para fazer o café, cuidava até do jardim e não recebia dinheiro. Era maltratada e tratada de formas horríveis. A ‘negra desgraçada’, como mais me chamavam. Era uma vida muito triste”, conta desolada Madalena Santiago da Silva, 64 anos, que por mais de 50 anos trabalhou em uma casa onde foi resgatada, em 2022, pelo Ministério do Trabalho e da Previdência (MTP).
Hoje, Madá (como é conhecida) está aposentada e tem a própria casa, que conquistou com a ajuda de muita gente, pois o dinheiro da indenização (R$ 100 mil) tem sido dado em parcelas demais para, efetivamente, a ajudar a reconstruir a vida. A vida de Madá, sem dúvida, melhorou muito, mas as sequelas dos mais de 50 anos de trabalho escravo ainda afetam o dia a dia.
Necessidades
"É nítido o quanto ela precisa ser acompanhada por um psicólogo e outros cuidados para conseguir melhorar e sentir bem em todos os sentidos”, explica a secretária de assuntos jurídicos do Sindicato das Empregadas Domésticas da Bahia (Sindoméstico-BA), Valdirene Boaventura Santos, vizinha de Madá, e que também foi vítima de trabalho escravo durante parte da infância e da adolescência.
O principal problema, aponta Valdirene, é que apenas resgatar não é o suficiente. "Essas pessoas são dependentes emocionais dessas famílias e, quando são libertas, têm extrema dificuldade em se relacionar com outras pessoas e com o mundo de forma geral. Não é à toa que ouvimos casos onde elas votam para a família que trabalhavam”, explica Valdirene.
Desequilíbrio
Com indenizações que não condizem com os muitos anos trabalhados e sofridos, há ainda muita dificuldade em conseguir emprego e uma casa. “Quando acho um lugar que talvez consiga pagar, a região é muito perigosa e fico sem saber o que fazer. Ainda tem o problema do trabalho, porque além da minha idade, o fato de eu não ter cursos e coisas assim dificulta muito encontrar um emprego”, lamenta a vítima de trabalho escravo Marilene da Silva, 59 anos, que aos 17 anos foi para a casa de uma família para ser cuidada como filha, “mas na verdade não era nada disso”.
Assim como Madá, ela fazia tudo na casa. “Fiquei 41 anos lá. Quando o casal mais velho morreu, o filho deles, que cuidei desde bebê, mandou que eu cuidasse do filho dele também e então me colocou para fora. Eu não sabia o que fazer ou para onde ir, mas acabei na casa de minha irmã, onde moro hoje de favor. Quando eu entendi o que havia acontecido comigo de verdade, fiquei muito desolada”, relata.
Coordenadora do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e Combate ao Trabalho Escravo da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos (SJDH), Hildete Nogueira aponta que educação e autonomia financeira nesse momento também são muito importantes, assim como ter os devidos cuidados com a saúde, não só mental, mas física também.
“Muitas pessoas não tiveram acesso algum à saúde básica ou mesmo foram alfabetizadas, por exemplo, e então trabalhar com elas a construção de sonhos e realizar desejos que sempre tiveram, como ir ao cinema ou conhecer o mar. Todo esse trabalho é feito junto a inúmeras secretarias, mas a verdade é que precisamos ampliar as nossas equipes e aumentar a nossa rede. É algo desafiador e ainda precisamos avançar muito”, afirma Hildete.
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