SAÚDE
Bahia lidera número de casos de HTLV com 130 mil infectados
Por Jane Fernandes | Foto: Uendel Galter | Ag. A TARDE
Um estudo inédito realizado pela FioCruz Bahia estima que o estado tem cerca de 130 mil pessoas infectadas pelo vírus HTLV, ocupando a liderança nacional em número de casos. Quando o foco está nas taxas que relacionam a prevalência do vírus com a população, a Bahia tem três microrregiões com mais de 20 casos por 100 mil habitantes: Barreiras (24,83), Salvador (22,90) e Ilhéus-Itabuna (22,60).
Transmitido principalmente através de relação sexual, aleitamento materno e compartilhamento de agulhas, o HTLV é um retrovírus que infecta o linfócito T, uma célula humana de defesa, gerando diferentes doenças. Responsável pelo estudo, a médica infectologista e pesquisadora Fernanda Grassi ressalta que, apesar dos prejuízos à qualidade de vida dos portadores que desenvolvem sintomas, o HTLV é tão negligenciado que sequer consta na lista de doenças da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Grassi lembra que o número reduzido de pesquisas sobre o vírus reforça a importância da pesquisa desenvolvida pela FioCruz, que utilizou amostras de cerca de 234 mil pessoas, de 394 municípios, como base de dados. O estudo utilizou testes realizados no Laboratório Central de Saúde Pública da Bahia (Lacen) no período de 2004 a 2013, encontrando uma taxa média de 14,4/100 mil no estado.
A pesquisadora acrescenta que uma análise de dados dos últimos dois anos mostram que a tendência quanto ao HTLV se mantém no estado, com aumento do número de casos totais. De acordo com a Secretaria da Saúde da Bahia (Sesab), em 2018 foram confirmados 693 diagnósticos, enquanto 2017 teve 712 novos casos. Este ano, a Sesab já confirmou infecção pelo vírus em 206 pessoas (até 28/5). Grassi diz que estudos apontam que o vírus HTLV1, tipo predominante na Bahia, chegou ao Brasil com o tráfico de africanos para fins de escravidão. Vale ressaltar que os resultados do estudo indicam maiores taxas de infecção em microrregiões com predominância de comunidades quilombolas e que pretos e pardos correspondem a 77,2% dos casos registrados pela Sesab este ano.
Doenças
A paraparesia espástica tropical (PET) e leucemias e linfomas da célula T são as doenças mais comuns entre os portadores do vírus. A infectologista Monique Lírio explica que a PET é uma mielopatia associada ao HTLV1 que pode provocar fraqueza muscular, dificuldade para andar, alterações nos reflexos, rigidez muscular e incontinência urinária, entre outros sintomas. Em quadros avançados, o paciente pode precisar de muletas e até cadeira de rodas para se locomover.
A médica esclarece que a mielopatia atinge de 5% a 10% das pessoas com HTLV1, mas muitos pacientes podem apresentar sintomas de forma isolada ou combinada sem que seja possível fechar o diagnóstico dessa doença. Eles também podem apresentar dor neuropática crônica e disfunção erétil, entre outras manifestações. Cerca de 2% dos infectados desenvolvem leucemias e linfomas, mas a maior parte dos portadores do vírus permanecem assintomáticos por toda a vida.
Lírio lembra que não há tratamento direto para o vírus, apenas para as doenças e sintomas apresentados pelos portadores. Ela destaca que a infecção exige acompanhamento multidisciplinar, com especialistas como infectologista, neurologista, urologista e fisioterapeuta, e muitas vezes é necessário acompanhamento psicológico. “É uma doença sem cura, então gera muita angústia”, comenta.
“O vírus causa alteração no sistema imune e predispõe a algumas doenças infecciosas, por exemplo parasitoses, tuberculose, hanseníase e diversas lesões de pele”, acrescenta a infectologista. A médica conta que a maioria das pessoas é diagnosticada quando doa sangue ou, no caso das mulheres, em exames pré-natais. Na sua opinião, o ideal seria incluir a testagem nos exames de rotina de todas as pessoas com vida sexual ativa. Ela diz que o vírus é pouco conhecido até mesmo entre profissionais de saúde, então é comum que pessoas passem dois, três anos apresentando sintomas sem que a suspeita de infecção por HTLV seja considerada.
“Em se tratando de local endêmico como é Salvador, é importante testar HTLV em qualquer paciente com queixa de fraqueza em membros inferiores, de caráter progressivo, com rigidez na movimentação das pernas, andar arrastado, reflexos aumentados (hiperreflexia)...”, defende Lírio. Ela acrescenta que o vírus também deve ser considerado como possível causa de incontinência urinária.
PACIENTES PROCURAM EVITAR A GRAVIDEZ
Embora diagnosticada ainda na infância, Adijeane Oliveira de Jesus, 33 anos, começou a apresentar sintomas graves relacionados ao HTLV1 apenas nos últimos seis anos. No entanto, esse período foi suficiente para uma evolução acelerada da paraparesia espástica tropical, que a tirou do mercado de trabalho e fez com que decidisse não ter filhos. A decisão de não engravidar é compartilhada pelas suas duas irmãs, que até o momento têm o vírus na forma assintomática.
Para Adijeane, o diagnóstico veio a partir de uma doação de sangue feita pelo seu pai, o que levou à testagem de toda a família. Todos tiveram resultado positivo: ela, as duas irmãs, o irmão e a mãe. Na época, todos eram assintomáticos, mas ela ressalta que a infecção deixa os portadores em constante expectativa. Faz pouco tempo que o irmão faleceu, aos 34, por conta de leucemia causada pelo HTLV. Adijeane conta que entre descobrir o câncer e o óbito, tudo aconteceu muito rápido.
Como o vírus é transmitido pelo leite materno, a chefe do setor de infecções sexualmente transmissíveis da Secretaria Municipal da Saúde, Helena Lima, informa que a prefeitura fornece a fórmula infantil (leite artificial) a todas as mães portadoras do HTLV. A testagem é obrigatória no pré-natal e, caso o resultado seja positivo, a gestante recebe orientação sobre a importância de que o companheiro e parentes façam o exame. A preocupação de Adijeane e suas irmãs é que, embora reduzido, há também o risco de transmissão placentária do HTLV. Por conta disso, a infectologista Fernanda Grassi, pesquisadora da FioCruz Bahia, recomenda que gestantes com o vírus sejam acompanhadas em serviços de referência. “É preciso discutir que tipo de parto deve ser feito”, exemplifica. Ela acrescenta que esse acompanhamento deve auxiliar o dimensionamento dos riscos da transmissão da mãe para o bebê.
Nascido há 64 anos, quando o vírus nem havia sido descoberto, o presidente da Associação HTLVida, Francisco Daltro Borges, contraiu o vírus da mãe. Entre as dores, cãibras e quedas frequentes, da infância até a detecção do vírus e o diagnóstico de paraparesia mais de quatro décadas se passaram. A descoberta veio de uma doação de sangue feita por sua esposa, que foi comunicada do resultado positivo e orientada a levar toda a família para testagem.
Dezoito anos após descobrir o vírus, Francisco usa muletas, toma medicação para a bexiga hiperativa e faz fisioterapia continuamente, tanto para evitar incontinência urinária quanto para a parte motora. Acredita que teria uma melhor qualidade de vida se o diagnóstico tivesse acontecido mais cedo, e por isso tem atuado junto com os cerca de 250 associados à HTLVida para a maior divulgação do vírus.
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