ACM Neto mantém o carlismo vivo
O fato é o que o grupo político existe, precisa de um nome e “carlismo” é uma opção que faz total sentido.
“Faz sentido falar carlismo em 2024?”, perguntou-me um leitor recentemente. “Só os mais velhos falam em carlismo”, afirmou outro.
O fato é o que o grupo político de ACM Neto existe e não tem um nome próprio, apesar de ter candidatos em quase todas as grandes cidades da Bahia. Precisamos de um nome pra esse grupo. E “carlismo” é uma opção que faz total sentido.
Hoje, quem se refere ao grupo de ACM Neto costuma mencionar o nome do ex-prefeito de Salvador. Fala-se assim, em “grupo de ACM Neto”, ou algum outro nome do tipo. E faz sentido. É uma coalizão ideológica, mas centrada num líder personalista.
Essa mesma característica deu origem à palavra “carlismo”, que combina o sufixo “ismo”, típico de grupos ideológicos, com o nome do líder. Não por acaso, os líderes do novo e do velho carlismo tem o mesmo nome.
Lealdade ao líder
A liderança personalista é só uma das semelhanças entre os grupos de ACM e Neto. O que se chama de “grupo de ACM Neto” é apenas o grupo herdeiro daquele que seu avô criou. Esse grupo já teve Paulo Souto, José Ronaldo e o próprio ACM Neto como candidatos a governador.
A trajetória dos três tem um ponto em comum: eles começaram a carreira no grupo do ACM original, o velho carlismo. É uma constatação óbvia, mas importante. Entre 2007 e 2012, muita gente garantiu que o carlismo estava morto. O fato é que boa parte dos carlistas continuaram no grupo e, juntos, reconquistaram o protagonismo da política baiana.
O atual prefeito Bruno Reis também era militante carlista quando o avô de Neto estava vivo. Por sinal, a ascensão dele também remete ao carlismo raiz. Bruno Reis foi assessor de ACM Neto desde o início da carreira do ex-prefeito. Ao sair da Prefeitura, Neto escolheu como sucessor um aliado íntimo e antigo. A lealdade pessoal foi o principal critério.
Neto aprendeu com o avô. ACM também costumava priorizar a lealdade pessoal ao escolher os candidatos do seu grupo. Clériston Andrade, Mário Kertész, César Borges e Paulo Souto foram alguns dos políticos que chegaram a cargos importantes pelo mesmo motivo. E Kertész passou a ser preterido quando o líder se sentiu ameaçado por ele.
O velho ACM também começou a construir sua hegemonia política a partir da Prefeitura, cargo que assumiu por indicação da ditadura militar, pouco após apoiar o golpe de 1964. A primeira gestão dele foi marcada pela construção das ‘avenidas de vale’ e outras obras viárias alinhadas com o modernismo urbanístico dos anos 1960.
Não por acaso, o grupo de ACM Neto também apostou em obras viárias em meio a um discurso de modernização. A marca do primeiro mandato de Neto foi a renovação da orla com a introdução do uso misto e a redução da velocidade permitida para carros em diversos trechos. As obras aproximaram a orla daquilo que os urbanistas enxergavam como moderno nos anos 2010.
Mesmo em 2024, a grande aposta da Prefeitura é o BRT, uma obra mais antiquada do ponto de vista urbanístico, mas tipicamente carlista do ponto de vista político.
Baianidade conservadora
Outra marca do carlismo foi o uso da cultura baiana como arma política. Sobram exemplos na famosa campanha de 1990, começando pelo samba-reggae “ACM Meu Amor”. Programas eleitorais daquele pleito descreviam ACM como “negro de pele branca” e incluíam cartas de Jorge Amado ao amigo que ele chamava de “Mestre Antônio”.
O novo carlismo se comunica da mesma forma. ACM Neto e Bruno Reis adotam jingles em ritmo de pagodão e fazem questão de dançar em frente às câmeras em todo carnaval, além de publicizar certa intimidade com artistas. A valorização da cultura, do Pelourinho, das festas e do turismo é central também para o novo carlismo.
Essa valorização da baianidade vai bem além da propaganda. O carlismo se diferencia de todo o resto da direita brasileira por ter uma agenda sólida de políticas públicas para a cultura, inclusive em diálogo com o campo progressista. Salvador é a única grande cidade onde é fácil encontrar artistas de esquerda dizendo que a política cultural da direita é melhor.
Desconfio que um dos segredos do sucesso carlista está aí: antes de tudo, trata-se de uma ideologia baiana, adaptada à realidade local e ao gosto do eleitor. Na Bahia, até os conservadores valorizam uma boa festa e um bom batuque, e os carlistas sabem disso.
O Carlismo em movimento
Há diferenças? Claro. O novo e o velho carlismo são fenômenos históricos e devem ser entendidos assim. Felizmente, as piores práticas do velho ACM sequer são possíveis no nosso tempo.
O carlismo dominou o governo estadual e a Prefeitura em todo o período da ditadura, e até os anos 2000 continuou muito importante no estado e nos principais municípios da Bahia. Assim, foi possível construir uma profunda hegemonia política, alianças com os grandes grupos econômicos do estado e aderir a práticas controversas sem medo da punição.
Esse tipo de hegemonia seria impossível no nosso tempo. O Ministério Público é mais independente, a democracia está mais consolidada e o mercado de jornalismo também. O Brasil mudou. A Bahia mudou. É natural que o carlismo tenha mudado junto.
Apesar das mudanças, o conceito de “carlismo” nunca foi tão importante, e nunca fez tanto sentido. Até 2007, chamar alguém de “carlista” soava como xingamento. Era como uma acusação de submissão a um político então visto como dono do estado.
Hoje, porém, o cenário é outro. ACM morreu como líder de um grupo político poderoso. Neto transformou o avô em líder de uma tradição que sobreviveu à morte dele e chegou a 6 décadas de protagonismo na política baiana.
Quando conceituamos e discutimos o carlismo, não estamos apenas avaliando o passado ou saciando uma curiosidade histórica. É o grupo mais bem sucedida da história da política baiana, especialmente em períodos democráticas. Entender o carlismo é entender o eleitor da Cidade da Bahia e do estado da Bahia.
É, também, uma tarefa necessária para avaliarmos o futuro: quais traços do carlismo devem morrer e quais devem permanecer? A imprensa precisa discutir o assunto. O eleitor precisa cobrar as mudanças. E ACM Neto precisa responder a essa cobrança - afinal, por mais que o carlismo tenha mudado, a liderança ainda é de um Antônio Carlos.
*Pedro Menezes é analista político do Grupo A TARDE