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CINEINSITE

A luta pelo não esquecer é tema de Deslembro

Por Rafael Carvalho | Especial para A TARDE | Foto: Divulgação

21/06/2019 - 0:00 h | Atualizada em 21/06/2019 - 12:36
Na trama, Joana é filha de dissidente político desaparecido na ditadura
Na trama, Joana é filha de dissidente político desaparecido na ditadura -

O cinema brasileiro tem se debruçado cada vez mais sobre seu passado histórico recente e as mazelas políticas que o Brasil viveu nos últimos anos. Os anos de governo militar permanecem como um período nebuloso, ainda não totalmente desvendado e aprofundado como se deve. Em Deslembro, da cineasta Flavia Castro, o gesto de olhar para trás encontra um momento específico dessa história no país: não necessariamente os anos de chumbo, mas seu momento de abrandamento, quando as famílias exiladas começam a voltar para o Brasil.

Na trama, acompanhamos a família da jovem Joana (Jeanne Boudier), que vive expatriada na França. Ela mora com os dois irmãos mais novos, a mãe (Sara Antunes) e o padrasto. Nasceu no Brasil, mas pouco conhece de lá. Quando se decreta a Lei da Anistia (1979) e os perseguidos políticos são descriminalizados, é a hora de voltar para o Brasil.

O Brasil da família de Joana é o Rio de Janeiro. A contragosto, a garota retorna à Cidade Maravilhosa, que, no seu entendimento, está ligada a algo não tão maravilhoso assim, apesar de sua memória de criança ter retido muita pouca coisa daquele tempo.

Agora, ela precisa se adaptar a uma nova vida ao mesmo tempo em que o passado nebuloso – e trágico – da família vai se desvendando para ela.

Deslembro, como o próprio título indica, lida com os meandros da memória – aquilo que desejamos esquecer, mas que é salutar lembrar.

O filme parte de um episódio particular para ilustrar uma situação que diz respeito a uma memória coletiva que merece ainda muita revisão e não pode ser apagada ou suavizada. O filme estreou ano passado na seleção oficial do Festival de Veneza e, desde então, vem circulando por uma série de festivais, dentro e fora do Brasil.

Despertar adolescente

Deslembro é também um delicado olhar para a juventude e o desabrochar – político e sensível – de uma adolescente marcada por um atravessamento histórico profundamente ligado às feridas políticas do Brasil.

Amante de rock e de literatura, caldo cultural que ela cultivava com interesse na sua vida parisiense, Joana tem certa dificuldade para se adequar à rotina no Rio de Janeiro – todo aquele sol, praia, Bossa Nova e uma juventude ligada a outras transas.

Em casa, a garota insiste em continuar falando francês e é seu ímpeto de inquietação que chacoalha as incertezas da família. Em meio às dúvidas e inseguranças advindas com a puberdade, a garota não perde de vista o tom questionador com que se lança sobre todos ao redor. Nesse sentido, vale destacar o ótimo desempenho da atriz Jeanne Boudier, neste que é seu primeiro trabalho nas telas de cinema.

Para Joana, o retorno ao país natal acaba lhe reacendendo dúvidas pessoais e familiares: seu pai foi dado como desaparecido político, mas pouco se fala disso dentro de casa. Joana passa então a questionar a mãe e a avó (vivida por Eliane Giardini) sobre o real destino de seu pai, algo que naturalmente traz memórias dolorosas para a família.

Na memória de Joana, a figura paterna ainda é uma imagem difusa, por quem ela sente uma espécie de sintonia e ligação, apesar da distância temporal de convívio.

O desabrochar adolescente da personagem vem acompanhado das dúvidas e também da vontade de conhecer a história de sua família – algo que se confunde com a própria história do Brasil.

Pai ausente

A cineasta já havia abordado o tema da ditadura militar no documentário Diário de Uma Busca (2010). Ali ela revisa e investiga a morte de seu próprio pai, Celso de Castro, um jornalista militante que foi encontrado morto em circunstâncias suspeitas.

Ele viveu muito tempo no exílio, sempre em companhia da família, o que revela o conhecimento de causa da realizadora ao encenar tais temáticas e vivências. No salto para a ficção, é visível que Deslembro bebe muito dessa experiência real.

"Foi durante a montagem do documentário Diário de Uma Busca, absorta por testemunhos, cartas, diferenças entre as minhas lembranças com as de outros familiares, que surgiu a vontade de ir mais longe em um trabalho sobre a memória", confidencia a cineasta. Nesse sentido, Deslembro e Diário de Uma Busca são filmes complementares e têm na figura do pai essa imagem do homem brasileiro que lutou e pereceu no confronto ideológico e mortal que se instaurou no país a partir da resistência contra as imposições militares.

No longa de ficção, porém, a imagem paterna – seu desaparecimento – surge como mistério ainda a se desvendar, e o filme se concentra mais nos dilemas da jovem e suas inseguranças inquisidoras.

Na mesma medida em que Joana quer conhecer todas as circunstâncias acerca da morte do pai, a mãe busca esconder detalhes que possam trazer ainda mais mazelas para o seio familiar. Deslembro trabalha, portanto, na chave do embate entre a verdade histórica e política dos fatos contra as dores íntimas que isso provoca. São as feridas abertas que o Brasil ainda precisa aprender a soprar e curar.

Deslembro / Dir.: Flavia Castro / Com Jeanne Boudier, Eliane Giardini, Jesuíta Barbosa / Em cartaz

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