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ENTREVISTA

"A Revolta dos Búzios precisa ser conhecida", diz diretor de doc

"1798 - Revolta dos Búzios", do cineasta baiano Antônio Olavo, estreia nesta quinta

Por Albenísio Fonseca*

27/05/2024 - 12:43 h
Antônio Olavo traz às telas o planejamento do levante que pretendia derrubar o governo colonial na Bahia
Antônio Olavo traz às telas o planejamento do levante que pretendia derrubar o governo colonial na Bahia -

Com estreia nacional programada para esta quinta-feira, 30, o filme "1798 - Revolta dos Búzios", do cineasta baiano Antônio Olavo, traz às telas a influência iluminista da Revolução Francesa (1789) no planejamento do levante que pretendia derrubar o governo colonial na Bahia.

Para tanto, visavam proclamar a independência e implantar uma República democrática, livre da escravidão, onde haveria, conforme acenavam, “igualdade entre os homens pretos, pardos e brancos”.

O filme de Antônio Olavo integra um projeto conjunto de cinco cineastas da Bahia, três dos quais com suas produções já concluídas e dois em fase final de edição. Homenageado da Mostra Itinerante de Cinemas Negros Mahomed Bamba - MIMB, Antônio Olavo é roteirista e diretor de 19 documentários (sete longas).

“Seguirei nesse caminho, nessa luta, mesmo enfrentando obstáculos desanimadores, sonhando em realizar no cinema a trilogia das grandes lutas negras dos séculos XVIII e XIX na Bahia: 1798 - Revolta dos Búzios, a Revolta dos Malês e A Sabinada", salientou.

Traída, como toda revolução, a revolta em Salvador foi denunciada antes da deflagração. As sentenças máximas se abateriam sobre quatro homens negros: os soldados Luís Gonzaga (36 anos) e Lucas Dantas (23 anos), e os alfaiates João de Deus (27 anos) e Manoel Faustino (22 anos), enforcados e esquartejados em 8 de novembro de 1799 na Praça da Piedade.

A Revolta dos Búzios, também designada por Revolução dos Alfaiates, Conjuração Baiana, Sedição de 1798, Movimento Democrático Baiano e Inconfidência Baiana, “é uma história apaixonante, que precisa e merece ser conhecida mais amplamente pelos brasileiros”. Olavo tem se dedicado ao longo dos últimos 19 anos à pesquisa e estudo sobre esta conspiração republicana, tendo como principal fonte os “Autos da Devassa”, documento de inestimável valor histórico, com mais de duas mil páginas escritas no “calor da hora dos acontecimentos”, contendo o desdobramento minucioso da extensa investigação sobre a revolta.

Os “Autos”, principal fonte primária do episódio, cobrem o período de agosto/1798 a novembro/1799 com as transcrições manuscritas das dezenas de sessões da Devassa, incluindo a íntegra dos longos depoimentos das mais de 70 pessoas envolvidas na conspiração. Conforme o cineasta, a mobilização transcorrida na Província da Bahia é, ainda, “algo novo na nossa historiografia, diferentemente de outros movimentos conspiratórios no Brasil Colonial”.

Mais que um documentário, o filme de Antonio Olavo mostra o quanto, ao final do século XVIII, “Salvador era uma cidade agitada, barulhenta, suja e ao mesmo tempo cheia da vida que lhe conferia 60 mil habitantes, entre os quais 70% de africanos e afrodescendentes. Com ruas mal calçadas e estreitas, ladeadas por corredores de casarões, era dividida em Cidade Alta e Cidade Baixa”, enfatiza o cineasta.

Debruçado sobre historiadores que abordaram o tema, ele cita o professor Luís dos Santos Vilhena, que morou na cidade entre 1787 e 1799, ensinando grego. Vilhena escreveu que “há nela muitos edifícios nobres, grandes conventos e templos ricos e asseados”. Salvador era, então, sede da Capitania da Bahia, governada pelo fidalgo português Dom Fernando José de Portugal. Inclinada sobre a encantadora Baía de Todos os Santos, a cidade recebia pelo mar quase tudo o que consumia.

Em Salvador, toda a sociedade se utilizava da mão de obra escrava, e mesmo a Igreja, representada pelas principais ordens religiosas dos Beneditinos, Carmelitas, Jesuítas e Franciscanos, utilizava escravos dentro dos conventos e também os vendiam e leiloavam sem cerimônia.

Tanto quanto esmiuçar os Autos da Devassa, em 1798 - Revolta dos Búzios, o cineasta e pesquisador mostra que, entre os mais de 40 mil pretos e pardos aqui existentes, 12 mil eram escravizados e atuavam como base do funcionamento da cidade, totalmente dependente da população negra, livre ou cativa, visto que os brancos, nobres ou plebeus, não faziam trabalhos manuais. “As mulheres negras trabalhavam como doméstica ou em serviços de ganho nas ruas. Os homens exerciam ocupações de pedreiros, carpinteiros, marceneiros, alfaiates, ferreiros, ourives, cabeleireiros, padeiros, calafates, trabalhadores de ganho, entre outras”, revela.

Ainda segundo Olavo, e como demonstra no filme, “boa parte dos homens brancos eram comerciantes e funcionários da Coroa Portuguesa, outros tantos, buscavam ocupar o longo tempo ocioso em saraus e bailes palacianos, hábito contumaz de uma elite social mundana, ainda saudosa da época áurea em que Salvador era a capital da colônia, posto que perdera para o Rio de Janeiro em 1763”. Nesta cidade, onde o luxo e opulência de uma minoria branca se derramavam sobre as ruas, a majoritária população negra vivia em péssimas condições.

Centro intelectual

Antônio Olavo salienta, também, o cenário internacional. “No final do Século das Luzes se testemunhava o advento da Revolução Francesa, que difundiu a semente das revoluções, com os direitos do homem e do cidadão pelo mundo ocidental, ameaçando destruir tronos, sob o tremular da bandeira da República e da Liberdade”. Esses acontecimentos ecoavam em Salvador, mais importante centro intelectual da Colônia que, mesmo sufocada pelas amarras opressivas da Metrópole, possibilitava fáceis canais de circulação das ideias revolucionárias, devido principalmente ao seu movimentado porto marítimo.

Como na pergunta do rap que marca o início de 1798 – “que história é essa, que ninguém nunca me contou?” - o filme destaca, ainda, o quanto na Cidade da Bahia a elite ilustrada começava a substituir seus livros em latim, a língua culta, pelos escritos em francês, a língua da época.

“Jornais, livros e folhetos vindos da Europa, trazendo as novas do iluminismo, circulavam discretamente na cidade e animavam encontros e debates. Essas ideias ganhavam adesão não somente entre ‘a nobreza da terra’, interessada na autonomia política, mas ampliavam-se para camadas de baixa renda, como alfaiates, marceneiros, pedreiros, cabeleireiros, ferreiros e ourives, quase todos pretos e pardos”, destaca.

Conforme o cineasta, “no início de 1798, pairava no ar um ambiente de grande movimentação política que caminhava clandestinamente pelas ruas e becos. Os boatos circulavam dando conta de que homens ilustrados realizavam reuniões clandestinas para a leitura de livros e folhetos proibidos, de inspiração iluminista, e promoviam encontros e debates nos distantes e isolados arrabaldes de Itapagipe e Barra. O surgimento de “papéis revolucionários” na madrugada de 12 de agosto, deflagrando o movimento sedicioso de 1798, provocou a reação imediata do governador Dom Fernando, que no mesmo dia baixou uma portaria determinando a abertura de uma Devassa sob o comando do intendente da polícia, desembargador Magalhães Avelar de Barbedo, com o objetivo de identificar os autores.

De imediato, a Devassa comparou letras de antigas petições no arquivo do governo e apontou o requerente de causas Domingos da Silva Lisboa como autor dos “papéis”. Domingos foi preso, mas para surpresa geral, uma semana depois, em 20 de agosto, apareceram mais dois manuscritos. O surgimento destes novos panfletos tensionou ainda mais o ambiente político, desnorteando a investigação em curso. Preocupado com as incertezas e dimensões que os acontecimentos iam tomando e sem obter provas para incriminar Domingos, embora o mantendo preso, o governo buscou outro alvo e em 22 de agosto mandou prender o soldado Luiz Gonzaga das Virgens. A notícia da prisão de Gonzaga logo se espalhou e chegou até Lucas Dantas. Imediatamente Lucas desceu para as Portas do Carmo, no Taboão, onde morava o ourives Luiz Pires, um dos mais ativos conspiradores e em cuja casa as ideias revolucionárias circulavam com facilidade, e ao chegar, encontrou reunidos os alfaiates João de Deus e Manuel Faustino, o cirurgião prático Freitas Sacouto e o ourives Nicolau de Andrade.

Temerosos de uma onda repressiva, os homens decidiram ampliar os contatos e convocar um grande ajuntamento no Campo do Dique, atrás do Convento do Desterro, para a noite de sábado, 25 de agosto, com o objetivo de avaliar a força de que dispunham e definir os próximos passos. Caso a afluência fosse grande, seria libertado Luiz Gonzaga e desencadeado o Levante. Nos dois dias que se seguiram, muitos contatos e convites foram feitos, com promessas de se levar muita gente, criando com isso uma grande expectativa com a reunião, que se revelou frustrante, pois somente 18 homens compareceram.

No domingo 26 de agosto, dia seguinte à fracassada reunião no Campo do Dique, o governador, já bem informado da conspiração pelas delações de três homens convidados de última hora, baixou nova portaria instalando outra Devassa, sob a responsabilidade do desembargador Francisco Sabino da Costa Pinto, que iria investigar o Levante que se projetava fazer na cidade, a fim de estabelecer um Governo Democrático. A onda de prisões prosseguiu nos meses seguintes, com os processos de investigação, denúncias, interrogatórios, acusações e defesas. O governo português juntamente com a elite baiana, queria uma rápida apuração e uma punição rigorosa. Pressionadas por um desfecho rápido, punitivo e exemplar, as Devassas Avelar de Barbedo e Costa Pinto formalizaram os Autos Sumários de culpa de 37 réus: 34 presos, dois foragidos e um morto na cadeia pública.

Das 51 pessoas presas, 16 delas foram soltas, uma morreu na cadeia e 34 foram consideradas culpadas e sofreram condenações que variavam de humilhantes açoites públicos, venda para o exterior, degredo perpétuo ou temporário e a morte na forca, seguida de esquartejamento dos corpos.

Os membros das classes mais abastadas, porém, foram inocentados ou indultados. Note-se que era voz corrente na Bahia, que este movimento conspiratório teve participação expressiva dos homens letrados. Mesmo alguns deles tendo sofrido incômodos com a Devassa, nenhuma punição mais grave se abateu sobre eles.

1798 - REVOLTA DOS BÚZIOS / Dir.: Antonio Olavo / Estreia nesta quinta-feira (30) / Salas e horários: cinema.atarde.com.br

*Especial para A TARDE

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Tags:

Antônio Olavo cinema brasileiro documentário história do brasil Revolta dos Búzios

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