CINEMA
Atores de A Jaula falam do filme com A TARDE
Por João Gabriel Veiga*

O universo de A Jaula, estreia do documentarista João Wainer na ficção, é majoritariamente confinado dentro de um carro. No entanto, o espaço limitado daquele carro não possui um centímetro quadrado de vazio: ali estão a adrenalina do suspense, as angústias sociais, luta de classes, o desespero do protagonista Djalma e a sede de vingança de um misterioso médico.
No filme, Chay Suede vive Djalma, um assaltante que se descobre em uma trama mirabolante quando entra em uma SUV estacionada na rua. Controlado remotamente pelo proprietário, o Dr. Henrique (Alexandre Nero), o automóvel foi modificado para se tornar uma impenetrável jaula, da qual seu prisioneiro não pode escapar. Em conversa com o A TARDE, a dupla de atores e o cineasta dissecam o debate do longa e falam sobre o processo de criação de A Jaula.
“Venho de outro lugar”, diz João Wainer sobre o desafio de fazer seu primeiro longa de ficção. “Eu estava muito aberto, trabalhando com pessoas muito boas, inteligentes e experientes, então todo mundo colaborou. O Nero ajudou pra cacete em vários momentos que ele nem sabe. Nas conversas que a gente tinha, ele me perguntava sobre o subtexto, e eu pensava e aprendia com ele”.
No entanto, o diretor diz que sua experiência na rua foi essencial para realizar esse filme: “No jornal, você acaba vendo a vida como ela é, conhecendo as pessoas, conversando com todo tipo de gente”. Após ter assinado o documentário Pixo (2009) e trabalhado no Carandiru, Wainer traz elementos dessas vivências para compor o mundo de A Jaula. “Queria trazer essas coisas para criar algo condizente com a realidade que a gente vive”, diz.
Para Chay, tirar Djalma das páginas do roteiro e colocá-lo em cena foi um processo árduo. “Foi uma preparação bem física. Fiquei bem preocupado e focado em perder o máximo de peso possível a tempo de começar, e continuar perdendo durante o filme. Quando eu soube que o João ia filmar em ordem cronológica, eu me dei essa liberdade de poder emagrecer durante o filme, não só antes”, explica o ator, uma escolha que reflete a privação de água e alimentação que seu personagem sofre.
“Eu me apeguei ao que eu tinha, as informações do personagem que estão no roteiro. Ele é casado, ele tem um filho, ele mora em Campo Redondo, ele já cometeu uns crimes. A partir daí, passei a pensar no personagem a partir dessas informações estáticas que estão no roteiro, mas me inspirei em muita gente que já conheci na minha vida, na minha adolescência, em gente que eu fico ‘fuçando’ na internet, stalkeando [risos]”, diz Chay.
Ele revela que parte de seu laboratório consiste em ver o perfil de pessoas nas redes sociais. “Quando fiz o Ícaro [personagem da novela Segundo Sol], eu via nos Ícaros daí de Salvador, seguia os stories, via como eles falavam, como eram as brincadeiras que eles faziam, qual era a temperatura deles. Na hora de compor esse personagem, eu tentei individualizá-lo como qualquer personagem que eu faço. Eu não coloco nenhum personagem como estatística nem como massa. Cada personagem, eu penso muito individualmente sobre. Penso sobre aquele cara, não sobre quem ele é na multidão”, detalha.
A linha borrada
Ao contrário de Chay, cuja presença física toma conta da tela, Alexandre Nero paira sobre a narrativa apenas com sua voz. “Eu nunca tinha feito isso. O teatro, de onde eu venho, trata do contato físico, do olho no olho, saliva com saliva. Quando acontece de você não estar contracenando com a pessoa, é sempre mais complicado”, diz Alexandre.
Ele explica que fez diversas leituras do roteiro com Chay, algo que o ajudou, e participou das gravações usando um microfone – algo que só o satisfez na pós-produção. “Acabou ficando melhor depois, quando eu fui dublar no estúdio, vendo as cenas, vendo as reações. Aí eu fiquei um pouco mais calmo e entendi a musicalidade. Uma naturalidade demais era algo que não funcionava com aquele texto, precisava de uma certa dramaticidade. Foi um processo bem mais complexo do que atuar”, reflete.
Quando seu personagem de fato entra em cena, tudo mudou para Nero: “Eu tô em casa. Foi a parte mais fácil, que nunca é fácil. Ter a respiração de outro ator já muda tudo”.
O debate social de A Jaula faz o trio refletir não só sobre a ficção, mas também a realidade. “Quando recebi a primeira proposta para o filme, a gente ainda falava que era impossível Bolsonaro ganhar a eleição. Ingênuos… Naquele momento, já era latente, como sempre foi, a questão da justiça com as próprias mãos, a sensação da classe média e média-alta de um estado que não funciona para eles. Só que, conforme o mundo foi andando, o roteiro foi se ressignificando. É um roteiro atemporal, que vai se significando e ressignificando, mas como o filme reverbera já está completamente fora do meu poder de decisão”, pondera Chay.
Para Alexandre, a linha entre a ficção e a realidade está borrada nesta discussão. Foi algo que ele pensou ao compor seu personagem: “Ele é humano. Eu não o vejo como vilão. Tem gente que acha que ele é herói, infelizmente. Eu como cidadão acho que ele é o vilão, mas tem uma grande parcela da sociedade que acredita em justiça pelas próprias mãos, que acha que é assim que tem que se resolver na bala, na barbárie”, diz Nero.
“Eu sempre repito que não defendo meus personagens, mas tento compreendê-los. quem tem que julgar é o público. Eu enquanto cidadão posso julgar, mas enquanto ator, não tô aqui para isso. O Dr. Henrique tem sua humanidade em ser um cara cheio de problemas que chegou em seu ponto-limite, mas a questão é: podemos passar desse ponto-limite? É por ai que a gente vai? Todo mundo chega nesse limite, quem nunca pensou ‘vou matar esse cara’ quando algo acontece? Mas e aí, a gente mata? É assim que vamos nos resolver?”, indaga o intérprete.
A violência autorizada
João acrescenta que essa tensão se relaciona diretamente com os eventos políticos do Brasil. “A gente tá vivendo um momento em que o governo avaliza a violência. As pessoas estão quase que se sentindo autorizadas a serem mais violentas do que elas são, ou tirarem a violência do campo da fantasia e levar para o campo da realidade. Era inevitável a gente fazer citações no texto ao Bolsonaro. Pensamos bastante o quanto que poderíamos pesar a mão, mas quero ver como o público vai reagir. Muita gente vai achar o Dr. Henrique incrível. De repente alguém resolve fazer isso com um ladrão por ai. É delicado, mas é algo que sempre existiu. O Brasil é um país violento e, nos dias de hoje, as pessoas estão autorizadas a pegar, a tirar a violência delas da terapia e levar para a vida real”, declara.
Para Chay, é então que o cinema pode exercer uma de suas grandes funções: fazer pensar. “O cinema tem o papel de iluminar de uma maneira mais democrática as coisas que a gente não tem capacidade de enxergar na nossa própria vida, seja por separação geográfica, classe social, qualquer coisa que a gente não acessa no nosso dia-a-dia, seja até porque a gente não quer ver. Tudo isso influencia no que você é capaz de enxergar. Ele tem o poder de trazer um olhar para coisas que muitas vezes nós não temos recursos para definir, observar e ter opinião”, diz o ator.
“Uma coisa é você dizer ‘ah, tá tudo bem em fazer justiça com as próprias mãos, porque vagabundo é vagabundo’. Outra coisa é você ver essa tal justiça sendo feita. o cara sendo morto, sendo ferido, esse crânio sendo afundado num espancamento, num linchamento. Haja estômago para ver isso. O cinema mostra coisas que o nosso olho não alcança. E ele traz a chance de reflexão e até de mudar nossas opinião sobre certas coisas”, conclui Chay.
A Jaula segue em cartaz. Veja salas e horários: cinema.atarde.com.br.
*Sob supervisão do editor Chico Castro Jr.
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