CRÍTICA
Belfast e a nostalgia inofensiva de Kenneth Branagh
Indicado a 7 Oscars, incluindo melhor filme, película busca afeto nas memórias do seu diretor
Por Renata Ramos

Muito conhecido por promover adaptações cinematográficas de obras aclamadas de William Shakespeare como Henrique V (1989) e Hamlet (1996), e de blockbusters como Thor (2011) e Assassinato no Expresso do Oriente (2017), o diretor norte-irlandês Kenneth Branagh abraça seu passado em Belfast para compor uma manifestação quase autobiográfica.
O longa se inicia através de belas imagens de uma Belfast atual; colorida, desenvolvida, iluminada e acolhedora, para logo após nos conduzir para 15 de agosto de 1969, São nas ruas acinzentadas de uma Belfast em preto e branco que a história acontece. Kenneth propõe viajar no tempo e retornar à sua cidade natal para explorar a visão de Buddy, um garotinho que vivencia a inocência da infância ao lado de sua família sob o plano de fundo de uma Irlanda envolta nos conflitos políticos, religiosos e sociais ,conhecidos historicamente como “The Troubles”, movimento separatista entre protestantes e católicos que atormentava o país no final da década de 1960.
Sentimentalismo nostálgico
Ao dramatizar o dia a dia de uma família na Belfast de 1969, encontramos em Buddy o alter ego do cineasta. Um garotinho apaixonado por sua família, carros, cinema, futebol (torcedor fanático do Tottenham) e toda liberdade inocente que sua infância proporciona. As crianças brincam livremente e os adultos tentam manter as ruas em ordem, até que conflitos religiosos e políticos acontecem e modificam drasticamente aquele universo.
Fica clara a intenção do diretor em tornar sua obra um produto feito sob medida para premiações como Oscar, mas talvez nessa tentativa de emular sentimentos densos mantendo a leveza infantil em evidência, Branagh insista em uma formalidade excessiva, o que acaba fazendo com que o foco principal seja dissipado e acabe imerso apenas no puro sentimentalismo nostálgico.
Sempre buscando o caminho mais seguro e sem demonstrar qualquer coragem narrativa, Branagh toma emprestado de obras como os também infantes Esperança e Glória (Boorman, 1987) e Império do Sol (Spielberg, 1988), a tentativa de passar o escopo da narrativa, e a sua urgência, pela ótica de uma criança que claramente não compreende a irracionalidade do seu entorno.
Com a falta de apuro nessa escolha narrativa, fica muito difícil criar um vínculo afetivo com qualquer personagem que esteja permeando a órbita do garotinho, exceto seu avô interpretado pelo ator Ciarán Hinds, indicado ao Oscar de ator coadjuvante, onde encontramos cenas em que a simplicidade e afeto nos ensinamentos geracionais fazem ressoar ondas de sentimentos genuínos seja pelo carinho presente nos diálogos ou pela naturalidade em que os atores demonstram aquela troca de contato, mas todo o resto soa enlatado e demasiadamente formal.
A mãe interpretada pela atriz Caitriona Belfie muito se assemelha a um arquétipo genérico construído para abraçar um conceito amplamente idealizado de mães que possuem uma devoção por sua família tão forte e ofuscante, que o filme afasta a ideia de oferecer a ela algum traço marcante de personalidade que possa de alguma forma individualiza-la, precisa representar um ideal feminino materno de fácil identificação. O pai interpretado pelo ator Jamie Dornan segue a mesma linha de idealização, seguindo um outro arquétipo, a do homem provedor, com toques extras de doçura e romantismo. Óbvio que sendo uma espécie de autobiografia, possa ser assim afinal que Branagh enxerga seus pais, mas o unidimensionalismo presente na tela dificilmente deve fazer jus.
O foco parece ser perdido quando o diretor se preocupa muito em cumprir um check list de elementos narrativos que assegurem a sua obra uma posição idealizada, mas esquece que para uma proposta tão íntima o caminho ideal seria a criação de sentimentos. Um sentir com intenção e propósito que deve ser trabalhado nos detalhes das relações, nos diálogos e na construção de uma intimidade entre os familiares. Entretanto, a construção de complexidade fica restrita tão somente ao personagem principal Buddy, interpretado pelo ator mirim Jude Hill, que entrega uma atuação impecável capaz de tornar os 98 minutos da dramédia mais interessantes.
Esse buraco emocional tenta ser preenchido com muita insistência pela trilha sonora, que sempre funciona aqui como um termômetro sentimental para aquilo que o filme falha em construir, dando voz a cenas sentimentalmente vazias. Nem os versos mais belos de Van Morrison conseguem atribuir um significado vivo a toda experiência vivida pelos personagens. O que realmente ganha destaque, são os aspectos catastróficos de uma cidade condenada pela violência onde ainda que com todas as dificuldades, parece exercer um magnetismo que prende cada morador naquele local. Um espaço onde o reconhecimento e acolhimento coletivo se prova ser a âncora que prende seus personagens.
Diante da presença paterna inconstante e dos conflitos violentos das ruas incompreensíveis para Buddy, podemos observar de perto uma de suas maiores paixões; o cinema, onde encontramos John Ford com O Homem Que Matou O Facínora (1962) e Como Era Verde O Meu Vale (1947), que vai atribuindo mais uma camada que reafirma a intenção de transmitir a vivência de uma classe operária também explorada aqui por Kenneth.
O cinema se mostra como um espaço onde Buddy sempre consegue se conectar com sua família e reunir tudo que ama em um único ambiente. A representação de sua paixão pela dramaturgia chega ao ápice na cena do teatro, onde o filme abre mão de seu formato monocromático para colorir um momento mágico para o garotinho no teatro com sua avó, interpretada pela atriz Judi Dench.
Esse fluxo de revisitar memórias através da criação de obras que visitam o próprio passado não é lá um artifício original na sétima arte, dependendo quase que exclusivamente da conexão emocional e empática com o telespectador para conferir alguma força a obra. Nisso, Belfast falha e é definido como um inofensivo exercício de nostalgia. Uma reminiscência sem cores, ainda que com notável candura, que não parece ser forte o suficiente para permanecer ecoando por muito tempo na cabeça de qualquer um que não seja o próprio Branagh.
Belfast recebeu 7 indicações ao Oscar, incluindo as principais categorias como; Melhor filme, Melhor direção e melhor roteiro original. A premiação ocorrerá dia 27 de março.
Siga o A TARDE no Google Notícias e receba os principais destaques do dia.
Participe também do nosso canal no WhatsApp.
Compartilhe essa notícia com seus amigos
Siga nossas redes