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Curtas baianos discutem masculino e feminino na Mostra Tiradentes
Por Rafael Carvalho | Especial para A TARDE

A Mostra de Cinema de Tiradentes, que acontece desde a última sexta, 18, iniciou nesta segunda, 21, a seleção competitiva de longas e curtas-metragens. Este ano, dois curtas baianos foram selecionados para esta mostra: “Onze Minutos”, de Hilda Lopes Pontes, e “Um Ensaio sobre a Ausência”, de David Aynan. Eles já foram exibidos em Salvador na última edição do Panorama Internacional Coisa de Cinema, na mostra competitiva nacional de curtas.
Curiosamente, ambos lidam, à sua maneira, com questões complementares: o feminino e o masculino, a grosso modo. Em Tiradentes, eles foram exibidos nesta segunda-feira dentro da mesma sessão, e isso faz com que o diálogo entre eles seja ainda mais aproximado e sugestivo, apesar de tão distintos em formato e construção narrativa.
Em “Onze Minutos”, uma mulher pega um táxi à noite rumo ao aeroporto. O filme se passa quase que completamente dentro do carro, a partir da interação dela com o motorista. O sentimento de desconforto da mulher e situações de tensão logo se tornarão uma provação para ela. O filme discute, entre outras coisas, os espaços da mulher a partir de uma situação banal – uma ida ao aeroporto – mas de como isso pode se tornar um calvário para ela.
Por outro lado, “Um Ensaio sobre a Ausência” segue a cartilha do documentário de observação para acompanhar o cotidiano de Rômulo, um homem negro que mora em região periférica de Salvador e tem uma filha morando em outra cidade com a mãe. Aos poucos o curta vai revelando mais camadas da vida desse personagem, na medida em que ele segue sua rotina lidando com as dificuldades do dia a dia, mas apresentando uma postura muito consciente – e nunca vitimizada – que poucas vezes é atribuída a esses sujeitos.
Masculino/feminino, ausência e presença
“Onze Minutos” faz parte de uma trilogia que já se encontra no meio do caminho (esse é o segundo filme, precedido por “Estela”, e seguido por “Em Cima do Muro”, em fase de pós-produção). O título faz clara referência ao dado alarmante de que a cada onze minutos uma mulher é violentada no Brasil.
“Acredito que precisamos de mais histórias protagonizadas por mulheres e que tenha roteiro e/ou direção feita por uma mulher. O lugar de fala se torna potente e verdadeiro e as questões são mais bem resolvidas. Daí resolvi escrever três filmes que mostrassem mulheres em seu cotidiano e como somos, de maneiras diferentes, julgadas, maltratadas, assediadas e silenciadas”, define a realizadora.
Por sua parte, David Aynan defende o estudo da masculinidade em “Um Ensaio sobre a Ausência” a partir de um outro viés, não necessariamente em contraponto ao que o filme de Lopes Pontes busca sugerir. Segundo Aynan, “o curta faz parte de um projeto de uma série de filmes que abordam a masculinidade negra. Fizemos uma pesquisa de aproximadamente dois anos sobre o tema, onde eu e o assistente de direção, o antropólogo Valdir Alves, nos debruçamos em pensar as especificidades da masculinidade negra”, revela o diretor.
O filme expõe essa questão frontalmente numa cena em que descobrimos Rômulo frequentando uma universidade pública – a UFRB em Cachoeira – e nos flagramos numa aula a que ele assiste justamente sobre a condição do homem negro e as demandas sociais que recaem sobre ele. Imediatamente pensamos na situação do personagem e sua vulnerabilidade posta à prova pela sociedade, tendo de batalhar para dar apoio à filha que mora longe.
Fica evidente, então, uma ideia de ausência, posta desde o título, onipresente no filme – tem a ausência do Estado na vida daquela comunidade, a ausência de um trabalho fixo para Rômulo, de uma vida estável, a ausência dele na vida da filha. Aynan complementa: “A ausência paterna é um dos maiores problemas que vivenciamos em nossa comunidade. Eu como pai presente, tenho uma filha de 4 anos e, tendo tido um pai ausente, me desafiei a buscar olhar para esse fenômeno da ausência paterna com a complexidade que ela demanda, evitando o reducionismo e a análise apressada”, observa.
Em “Onze Minutos”, por sua vez, é a ideia de presença a deflagradora do drama. Os dois sozinhos no carro, e o homem em situação de poder, gera o conflito. Mas longe de estereótipos, a relação da passageira com o motorista apresenta muitas nuances. “O ‘homem bonzinho’, aquele homem de bem, é visto socialmente como intocável porque ele sabe esconder suas garras, suas falhas e sua violência, ele guarda sua opressão para as mulheres que entendem como mais fracas e vulneráveis”, pontua a diretora.
Experiências pessoais
Outros paralelos podem ser feitos entre os dois filmes, como o fato deles partirem de experiências e vivências pessoais. David Aynan conta que conheceu Rômulo na faculdade, estudaram juntos e criaram uma relação de amizade. No processo de pesquisa sobre as múltiplas facetas da masculinidade negra, ele logo pensou em Rômulo como personagem para o filme. “Nosso objetivo era dar profundidade a esses personagens, nem expondo uma tese, nem fazendo uma defesa ou meramente uma crítica. O objetivo era retratar a humanidade desses personagens”, conta o diretor.
No caso de Hilda, a situação da protagonista no táxi não chega a ser autobiográfica, mas é o tipo de relato comum entre mulheres que já sofreram assédio. “Falar sobre as sensações e traumas que vivi com os homens e que vejo tantas outras mulheres sofrendo foi a maneira que encontrei de me comunicar com outras mulheres”, revela a cineasta.
“Onze Minutos” e “Um Ensaio sobre a Ausência” tratam, de modos distintos, dessa dualidade entre o feminino/masculino. Cada vez mais parece que discutir o lugar de um é falar e estar atento para a posição do outro na sociedade. Complementam-se, mas também criam embates que estão longe de se equipararem na vida social.
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