MOSTRA INTERNACIONAL
Desumanidade nazista é tema de filme exibido na Mostra de SP
“Zona de Interesse” mostra um paraíso idílico ao lado de um campo de concentração
Por Rafael Carvalho | Crítico de cinema*
Desde que ganhou o Grande Prêmio do Júri (espécie de segundo lugar) no Festival de Cannes, “Zona de Interesse” vem causando curiosidade pelo retrato que faz da família nazista que mora ao lado do campo de concentração de Auschwitz, durante a Segunda Guerra Mundial. Dirigido pelo cineasta inglês Jonathan Glazer, trata-se de uma mudança e tanto de ares em sua obra, apesar do diretor apresentar aqui o mesmo tipo de controle de cena já usado em filmes anteriores, como os ótimos “Sob a Pele”, “Reencarnação” e “Sexy Beast”.
Já “Zona de Interesse” é um filme duríssimo, tanto na temática quanto esteticamente. Filmado em planos estáticos ou com movimentos laterais panorâmicos, enquadrados seguindo um rigor formal cartesiano, o longa trata desse sentido de controle e ordem tão próprios da ideologia nazista.
Na trama, acompanhamos a família de Rudolf Höss, comandante que coordenou o funcionamento de um dos maiores centros de prisão e extermínio judeu da época (trata-se de um personagem real). Para ficar perto da família, ele, junto com sua esposa Hedwig (a incrível Sandra Hüller, a mesma protagonista de “Anatomia de uma Queda”), construíram um paraíso idílico para viver no lugar, enquanto sabemos das atrocidades cometidas a poucos passos dali.
Aliás, nunca vemos o que se passa dentro do campo de concentração – e com razão, pois já conhecemos os horrores dessa história. Glazer escancara o cinismo e a frieza dos nazistas diante do genocídio, pois eles também sabem o que se passa para além dos muros e o que provoca as cinzas que saem das grandes chaminés vistas ao longe.
Glazer encontra um ponto de vista interessante e pouco usual para falar do holocausto, mas “Zona de Interesse” acaba caindo na armadilha de achar tão genial esse conceito de encenação que se prende muito a ele – o filme todo tem essa frieza calculada. A única coisa que consegue dizer sobre isso é o quanto os nazistas eram guiados por ações desumanas e perversas, uma ilustração do conceito de “banalidade do mal” cunhado pela filósofa Hannah Arendt.
Por um lado, evita-se o retrato maniqueísta dos nazistas como monstros selvagens. Por outro, o filme estaciona em um tipo de crítica que se quer mordaz e aguda sobre o comportamento daqueles alemães, porém sem conseguir avançar nas causas dessa adesão ao pensamento hediondo difundido por Hitler.
Ver e ouvir
Outro nome muito aguardado pelo público cinéfilo que acompanha a Mostra de Cinema de São Paulo é o do cineasta sul-coreano Hong Sang-soo. Desta vez, ele apareceu com dois longas, ambos lançados este ano, algo comum na produção prolífica que ele vem mantendo desde sempre.
O cineasta é uma máquina de fazer filmes, todos eles muito simples na forma, mas destacando os dramas humanos com alguma leveza e muita profundidade. Na Mostra deste ano, o público viu “Na Água” e “Em Nossos Dias”, filmes aparentemente distintos entre si, mas que possuem certas semelhanças se olharmos (e ouvirmos) bem.
Isso porque “Na Água” é, esteticamente, o filme mais “diferente” do cineasta, sempre à procura de um tipo de encenação limpa e segura. Pois este é quase todo filmado fora de foco, como se alguma coisa atrapalhasse a vista (de quem filma ou de quem assiste).
Desde já o filme causa certo desconforto enquanto vamos acompanhado a rotina de três amigos que estão numa casa de praia e um deles, que é ator, demonstra o desejo em dirigir um curta. Com “Em Nossos Dias”, o trabalho artístico também é posto em evidência a partir de histórias paralelas sobre uma jovem atriz que pega dicas com uma outra atriz mais experiente, enquanto acompanhamos também um poeta que é entrevistado por dois jovens interessados em seu trabalho.
Se o primeiro filme desenvolve um exercício do olhar, o segundo promove uma reflexão sobre o ouvir. São, portanto, filmes complementares que seguem a cartilha prosaica dos filmes de Hong: os encontros e as conversas, aparentemente banais, são capazes de desvelar os anseios humanos dos mais singelos aos mais profundos, sem o peso de uma importância autoimposta.
*O jornalista viajou a São Paulo com apoio da organização do evento.
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