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Em novo livro, crítico e pesquisador Marcelo Ikeda reflete sobre a Ancine
Por Rafael Carvalho | Especial para A TARDE
A Agência Nacional do Cinema (Ancine) completou 20 anos de operação no dia 6 de setembro. Não dá para falar de cinema brasileiro nas últimas duas décadas sem passar pela atuação e pela trajetória da Ancine, a agência reguladora responsável não apenas pelo fomento das produções, mas também pela regulação e fiscalização do mercado audiovisual brasileiro. Atualmente, a instituição atravessa um momento de grave crise política e estagnação das suas atividades.
Para marcar a data e refletir sobre o papel da Ancine e sua evolução enquanto instituição que se tornou sinônimo de políticas públicas para o audiovisual brasileiro, o crítico e pesquisador Marcelo Ikeda lança o livro Utopia da Autossustentabilidade: Impasses, Desafios e Conquistas da Ancine, no qual repassa criticamente toda a trajetória do órgão, desde a sua criação até o momento atual.
Ikeda trabalhou na Ancine entre 2002 e 2010 e continuou sendo um perspicaz observador dos passos e movimentos seguintes da agência.
O órgão surgiu a partir da mobilização da classe cinematográfica que, no final dos anos 1990, percebeu que a leis de incentivo fiscal, acrescidas das crises macroeconômicas, não eram suficientes para a demanda crescente de projetos audiovisuais da época – isso porque no início daquela década, o então presidente Fernando Collor havia extinto a Embrafilme, forçando uma parada quase que total da produção brasileira no setor.
“Uma das principais medidas naquele momento foi indicar a criação de um órgão que pudesse propor uma política mais programática para o cinema brasileiro. A partir disso, foi criada a Ancine como agência reguladora”, lembra Marcelo Ikeda que conversou com A TARDE sobre o livro.
“O objetivo da Ancine era muito ambicioso: desenvolver a indústria cinematográfica e audiovisual com vistas à autossustentabilidade. A primeira gestão, que foi do Gustavo Dahl, teve essa dificuldade. Ele implementou uma agência do zero, montou os primeiros sistemas de arrecadação de fundos, mas acabou funcionando como mera gestora dos incentivos fiscais já existentes”, observa Ikeda.
Maior autonomia
Somente a posteriori é que a agência irá criar mecanismos próprios de atuação mais direta e propositiva dentro do mercado audiovisual brasileiro. Ikeda avalia a gestão seguinte da Ancine, nas mãos de Manoel Rangel, como o momento de maior evolução das práticas e ampliação do escopo de atuação da agência.
Rangel foi beneficiado por já ser um gestor político e ter uma proximidade maior com o governo, e não um representante direto da classe, como era Gustavo Dahl, um cineasta egresso do Cinema Novo.
Ikeda aponta a criação de três leis na gestão Rangel que foram fundamentais para uma maior autonomia da Ancine e sua manutenção como órgão fomentador da produção audiovisual no Brasil: a lei que criou o Fundo Setorial do Audiovisual; a que colocou cotas de programação nacional na TV por assinatura; e a que gerou recursos para o parque exibidor.
Houve ainda uma ampliação na lei que rege a arrecadação da Condecine (Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional), que é a principal fonte de receitas para o Fundo Setorial Audiovisual. As empresas de telecomunicações passaram a ser cobradas pela exploração do mercado brasileiro e isso ampliou significativamente o Fundo. “Com tudo isso, a Ancine ganha mais instrumentos para atuar no mercado audiovisual. Esse é o auge da agência”, assegura Ikeda.
O autor afirma que um dos principais ganhos dessa nova configuração foi a regionalização da produção audiovisual no Brasil; ou, como ele gosta de falar, a sua nacionalização, uma vez que os recursos financeiros puderam ser estendidos para todas as regiões e Estados do país, aumentando a diversidade de produções e também a quantidade de obras realizadas de Norte a Sul do Brasil.
Isso explica como a produção de cinema brasileiro nas últimas décadas cresceu a olhos vistos, com filmes sendo selecionados e premiados em festivais internacionais, além da circulação no próprio mercado interno, sejam nas salas de cinema ou nos próprios festivais e mostras que tanto se espalharam pelo país nos últimos anos.
“Estados com pouca tradição no audiovisual, como Amapá, Alagoas e Rio Grande do Norte puderam realizar os seus primeiros editais de audiovisual”, pontua Ikeda.
Futuro incerto
A Ancine foi criada a partir de um ideal industrialista, visando uma configuração futura de mercado em que o cinema brasileiro não dependeria mais dos recursos públicos. Ikeda, no entanto, enxerga isso como uma utopia, provocação que ele faz já no título do livro. “A esmagadora maioria dos países do mundo dependem de políticas públicas para sua subsistência”, afirma o autor.
“Eu acredito que a Ancine se mantém viva até hoje pelo fato de ser uma agência reguladora e não um órgão qualquer do governo. Com isso, ela tem elementos de autonomia e independência, tanto em relação ao mercado quanto ao governo. Ela possui uma diretoria colegiada, e o presidente da República não pode exonerar um diretor da Ancine que tem um mandato fixo”, explica.
Para ele, o maior desafio atual da agência é implementar políticas de Estado e não de governo, ou seja, políticas baseadas em instrumentos técnicos e nas análises do setor em si. Ainda assim, ele pontua que a agência não está livre das influências ideológicas dos governos e das tentativas de atrasar e burocratizar as ações de fomento e fiscalização do audiovisual.
Como o atual governo Bolsonaro já se mostrou inimigo da cultura e da classe artística, sem nenhum interesse pelo desenvolvimento do setor cultural, é salutar refletir sobre o caminho que as políticas públicas para o audiovisual irão tomar nos próximos anos.
O lançamento de Utopia da Autossustentabilidade é uma oportunidade para resgatar essa memória recente (em um momento em que a memória do cinema brasileiro está literalmente em chamas) para se pensar o futuro do audiovisual no Brasil.
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