MOSTRA INTERNACIONAL
Filme pernambucano que estreou em Veneza é exibido na Mostra SP
"Sem Coração" expõe os anseios da juventude no litoral nordestino
Por Rafael Carvalho | Crítico de cinema*
A Mostra Internacional de Cinema de São Paulo cada vez mais tem se dedicado a apresentar a nova safra do cinema brasileiro, muitos deles tendo representado o país nos mais importantes festivais do mundo. Este é o caso de "Sem Coração", filme pernambucano dirigido por Nara Normande e Tião, presente na mostra Horizontes do último Festival de Veneza.
O longa é um desdobramento do curta homônimo que os dois diretores fizeram em 2014, voltando ao mesmo ambiente litorâneo de uma pequena vila de pescadores – foi rodado em locações distintas da costa alagoana. Foi ali que Nara cresceu e muito do que é visto no filme retrata elementos de sua juventude, inclusive os típicos personagens com quem ela conviveu.
É um filme essencialmente sobre o desabrochar da adolescência, filmado com um tom naturalista que beira o documental. O foco são os jovens do local, prestes a se tornarem adultos, vivendo a ebulição dos hormônios. Sem Coração, aliás, é o nome de uma garota que vive no local, filha de um humilde pescador e que trabalha junto com o pai. Tem uma cicatriz no peito, o que lhe rendeu o apelido e as muitas histórias que inventam sobre o fato dela ter tido o coração arrancado quando criança.
A trama é filtrada pelo ponto de vista de Tamara (Maya de Vicq), cujos pais têm uma casa de praia ali onde ela convive com outras crianças do local. Ela está em clima de despedida porque se preparar para ir morar em Brasília. Antes disso, desenvolve certa fascinação por essa garota local que todos conhecem, mas de quem raramente se aproximam.
Sem Coração lida com as descobertas da juventude, e a sexualidade é a mais pulsante delas, sem que isso seja visto de modo repressivo – apesar de alguns personagens sofrerem com isso, caso do amigo de Tamara que começa a se sentir atraído por garotos. Ela também se mostra interessada por meninas, mas dentro do seu círculo de amizades todos são aceitos por suas escolhas – até mesmo as primeiras experiências sexuais dos garotos com Sem Coração são retratadas através de uma curiosa naturalidade.
Há risco, medos e vacilações nas aproximações entre os personagens, mas o filme transborda carinho por todos ali. Alguns elementos oníricos são convocados pela narrativa a conferir uma atmosfera idílica que indica um tempo e um lugar muito especiais para aqueles jovens – o mais forte deles é a imagem da baleia encalhada na praia. O coração do animal pulsa quando as duas garotas encostam o ouvido na carcaça da baleia; ou seria o coração de ambas que vibram juntos no mesmo sentido?
Formação do Estado chileno
Em uma outra chave, dessa vez mais historicista, o filme chileno "Los Colonos" revelou-se uma grata surpresa em exibição na Mostra de São Paulo. Este é o primeiro longa do diretor Felipe Gálvez, exibido na mostra paralela Um Certo Olhar, do Festival de Cannes, de onde saiu com o Prêmio da Crítica.
A trama se inicia no nascer do século XX, mais precisamente em 1901. Dom José Menéndez (Alfredo Castro) é um grande senhor de terras que desejar expulsar os indígenas da região. Ele cria uma expedição formada por um ex-oficial inglês (Mark Stanley), um mercenário mexicano (Benjamin Westfall) e um mestiço, meio indígena, meio branco (Camilo Arancibia), todos vivendo sob seu comando e partem à caça dos nativos que “ameaçam” suas terras.
Inicialmente, o plano soa um tanto descabido. Três homens, que se conhecem pouco e têm lá suas rixas entre si, saem para matar indígenas que eles não sabem bem como e onde encontrarão (se em grande ou menor número, armados ou indefesos). O embate até acontece, e não quero dar spoilers aqui, mas é o tipo de situação que quer ser muito mais a ilustração de uma realidade histórica do que uma simples trama de crimes e perseguições.
A jornada dos três, cruzando o caminho de outros sujeitos que querem tirar proveito de alguma forma daquelas terras, faz de Los Colonos um retrato incisivo sobre a formação do Chile, com a mistura dos povos, os desmandos dos velhos coronéis, a intransigência masculina e sua agressividade incontida, mais um tanto de violência e derramamento de sangue, espelho de todo processo colonial sofrido pelos países da América Latina.
Gálvez faz um filme impositivo, denso – o uso pontual da trilha sonora reforça esse tom pesado que recai sobre os personagens naquela paisagem inóspita dos pampas andinos, muito bem fotografado na sua frieza. Segundo, o mestiço que acompanha o grupo, acaba se tornando um contraponto naquele ambiente, uma vez que indica estar mais do lado dos oprimidos, assumindo um olhar questionador que é central para o filme, ainda que ele carregue suas contradições.
Curiosamente, o filme acaba fazendo um interessante paralelo com o novo trabalho de Martin Scorsese, Assassinos da Lua das Flores, já em cartaz nos cinemas, que retrata a perseguição e o massacre dos indígenas da tribo Osage, no centro-oeste americano, também como forma de entender a formação moderna dos Estados Unidos, com muito sangue nas mãos. Los Colonos, aliás, tem toda a pinta de um western à moda antiga, muito incisivo sobre a constituição de um país forjado em violência, contraditoriamente em nome da modernidade e da paz.
*O jornalista viajou a São Paulo com apoio da organização do evento.
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