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Gabriela Amaral Almeida fala de "A Sombra do Pai", filme apresentado no Festival de Brasília

Por Rafael Carvalho* | Especial para A TARDE | Foto: Junior Aragão

23/09/2018 - 15:01 h
Com “A Sombra do Pai”, Gabriela cria um conto muito mais intimista
Com “A Sombra do Pai”, Gabriela cria um conto muito mais intimista -

A relação de uma menina, órfã de mãe, com um pai em estado de negação e uma tia prestes a sair de casa. Tudo isso visto pela chave do horror. Esse é o caminho seguido pela diretora baiana Gabriela Amaral Almeida no seu novo filme, “A Sombra do Pai”, lançado agora no Festival de Brasília.

O cinema de horror feito no Brasil tem ganhado um novo fôlego com diretores que não têm medo de se jogar de cabeça no gênero, desbravando possibilidades narrativas que não estão ali somente para aterrorizar ou forjar sustos repentinos. “O Animal Cordial”, longa anterior da diretora, esteve em cartaz no Brasil há até pouco tempo, seguindo a linha do terror social, capaz de revelar as contradições e torpezas mais particulares das pessoas ou de uma sociedade.

Com “A Sombra do Pai”, Gabriela cria um conto muito mais intimista, um estudo de personagens baseado na estrutura de uma família ruindo cada vez mais e que tem na força do fantástico uma possibilidade de salvação. Quem encarna com mais força essa vontade é a pequena Dalva. Interpretada por Nina Medeiros, a personagem possui uma presença marcante em tela, muito por conta dos olhos expressivos; mas mais que isso, o filme sugere uma energia sobrenatural que emana dos desejos da garota.

“A Sombra do Pai” é um grande estudo de personagens. Dalva está dividida entre as crendices da tia Cristina (Luciana Paes) e o luto e a crise existencial do pai (Julio Machado). São dois personagens importantes para compor a introspecção e as crenças da menina. Jorge sofre com a morte de um amigo do trabalho – tão dilacerado emocionalmente quanto ele – enquanto a tia deposita grandes esperanças num provável casamento, fazendo promessas para Santo Antônio e mexendo com essas simpatias populares, ao mesmo tempo em que inicia a sobrinha nesse universo.

Isso aproxima Dalva da crença em uma magia que emana naturalmente de uma força particular dela proporcional ao seu desejo mais íntimo – e que o imaginário do cinema de horror muito associou à sensibilidade infantil. Por outro lado, a tristeza evidente do pai o transforma num quase morto-vivo, um homem sugado pela incapacidade de suportar sua própria vida, e Dalva sente também a necessidade de ajudá-lo, o que também significa ajudar e alegrar a si própria.

“A Sombra do Pai”, portanto, é um filme que carrega muitas questões da ordem do humano numa chave de gênero sem que isso seja um subterfúgio narrativo. Muito pelo contrário, o horror é corpo presente na história e o filme o escancara sem pudores. Nesse sentido, é um prazer enorme ver uma diretora tão à vontade manejando com habilidade e sensibilidade os elementos narrativos que lhe são caros, amadurecendo um estilo, compondo um filme cheio de nuances, muito bem orquestrado formalmente em tantos sentidos.

Abaixo, confira a entrevista que Gabriela concedeu ao A TARDE durante o Festival de Brasília:

Como surge a inspiração para esse roteiro? Existe algo muito autobiográfico nessa menina que assiste a filme de terror na madrugada.

É inevitável, toda obra narrativa ou artística tem algo de autobiográfico, não no texto necessariamente, mas no olhar. A gênese do filme foi há oito anos e eu estava lidando com essas questões artisticamente nos curtas, a relação pai e filho, mãe e filho, e o filme surgiu nesse caldo.

A Dalva me lembra muito a personagem infantil de “Estátua!” [último curta da diretora], principalmente pela força sobrenatural que parece emanar dela. Você vê similaridades nessas personagens?

São dois personagens bem diferentes porque em “Estátua!” a construção da menina se dá através do olhar da babá. É por que a babá acha que ela é perigosa que a gente adere e acha que ela é perigosa. No caso da Dalva não, a adesão é direta com o espectador. É uma personagem que a gente quer que seja poderosa porque está numa situação muito difícil. Então a gente quer acreditar que ela pode. Mas em comum elas têm o fato da infância não ser tão apartada do humano e das questões complexas do humano, como a sociedade tenta fazer, tenta infantilizar. Eu acredito que está tudo na infância, primeiramente, a fonte da criatividade, dos nossos medos. E acho que a infância é um lugar ainda não muito compreendido por nosso funcionamento de sociedade. É um lugar bastante complexo que se traduz não por linguagem, porque a criança ainda não domina a racionalidade, mas por pura pulsão. É um terreno muito fértil para entender o humano.

A própria representação da criança no cinema, de forma geral, cai muito nessa ideia do infantil, do bobo, do ingênuo.

Sim, se dúvida. Mas não no cinema que nos interessa, certo? Você pega a construção do menino de “ET – O Extraterrestre”, do Spielberg, que é uma construção absurda de complexa; ou a construção do menino de “O Sexto Sentido”, que é muito bonita, ele supera o medo de fantasma lidando com um. Eu acho que o universo infantil, por ele estar no lúdico, por ele ainda não ter sido aprisionado pelo racional, ele tem liberdades e possibilidades de alcance dramático que são bem potentes.

E tem todo um imaginário dentro d cinema de horror que utiliza a figura da criança como um catalisador e gerador de energias sobrenaturais, fantásticas. Existe alguma referência específica para o seu filme nesse sentido?

Sim. Tem um filme que me assombra até hoje que é “O Espírito da Colmeia”, do Victor Erice, com uma criança que está aprendendo o que é a morte, vivida pela Ana Torrent. É um filme meio enigma pra mim até hoje. Eu revejo e acho o olhar daquela criança muito potente. Não é uma referência que eu usei junto aos meus colaboradores, mas é uma referência no meu imaginário. A lembrança desse filme me faz querer entendê-lo através das minhas próprias imagens.

Tem outra dimensão do filme que é o resgate de certa crendice popular que começa com essas simpatias que a personagem da tia faz (promessas pra Santo Antonio, cortando mal olhado com tesoura etc) e de como isso evolui no filme para uma dimensão maior, mais assustadora. Como foi trabalhar isso com a Luciana Paes através de uma personagem um tanto ingênua, mas que também está entendendo o que se passa ali na casa?

Eu sou baiana né, então eu cresci com babá recebendo santo. Então isso pra mim não é uma coisa diferente ou exótica, isso pra mim é cotidiano. Pra mim não tem essa divisão. A maneira como eu chego ao retrato desse tipo de misticismo é conclusão direta de como eu aprendi a entender a vida e o mundo. O misticismo faz parte do mundo. E a Cristina é um personagem que eu quase vejo nela a dúvida, mas ela precisa acreditar naquilo. A Dalva tem uma adesão a isso por ser do universo infantil, mas a Cristina tem uma vontade de crença maior do que a crença. É uma vontade de que a menina tenha um dom porque aquilo torna mais fácil ela sair da casa para casar com Elton. É uma vontade de que a mágica realmente aconteça já que é uma personagem já endurecida. Eu discordo do ingênua, acho que é uma personagem que joga com a chave da ingenuidade porque ela precisa viver emocionalmente, mais do que ser ingênua. Ela sabe que aquele homem é todo torto, que o casamento pode dar errado. Quando ela fala que quer ter filho, que quer ter uma casa, ela duvida dela mesma. E trabalhar com a Luciana foi justamente de ir nesse lugar das ficções que a gente cria, das crenças que a gente escolhe para sobreviver a uma vida que, em termos racionais, é só matéria, é a carne apodrecendo do Jorge. Enquanto a gente tem a matéria da obra, a gente tem aquela vontade de transcendência que leva esses personagens adiante, ao luminoso.

E o Jorge é esse personagem da matéria. Eu penso muito nele como um zumbi, um morto-vivo, que passa pela opressão do trabalho, da solidão, do masculino que sofre a pressão de sempre se impor na sociedade, na família. Fala como foi trabalhar com o Julio Machado esse personagem.

O Julio é um ator absolutamente dedicado e de imersão no processo, e isso pra mim é muito importante. Um personagem muito difícil de compor porque ele tem uma casca de um jeito, é criado para ser de um jeito, mas por dentro é outro. Eu o filmei para parecer maior do que ele é, então tem uma constituição masculina evidente, mas por dentro ele está desmoronando, está “craquelando”. A filha e a tia, pelo contrário, elas precisam acreditar em algo a mais se não eles caem no universo do Jorge que é pura matéria. É tijolo, é concreto, é a carne em decomposição, é o apodrecimento.

Pensando em sua trajetória, desde o curta-metragem, me parece que “O Animal Cordial” é um ponto fora da curva por ser um filme muito alegórico, e esse novo filme tem um rigor que te aproxima mais dos curtas anteriores. Você vê como um retorno a esse cinema?

Sim, eu acho que “O Animal” tem uma adesão ao gênero direta. Pra mim é muito difícil falar que eu retornei porque “A Sombra do Pai” é um filme compósito, ele surge há oito anos, ele vai pra laboratório, e nesse tempo eu estou fazendo milhões de outras coisas. Eu chego nele depois de “Animal Cordial”, o que é bem interessante. Mas são diferentes. O “Sombra” precisa de elipses, você precisa desse tempo para ver o processo de zumbificação. O “Animal” acontece em uma única noite; “Animal” é uma explosão, “Sombra” é uma decomposição. Então são curvas diferentes. Eles têm natureza de construção de efeito distinta porque os personagens assim a pedem. Não é uma coisa pré-filme. A personagem Dalva, a relação dela com o pai, pede um tempo diferente da história de um homem, o Inácio [protagonista de “O Animal Cordial”], que está no limite da tolerância da vida que tem. É como se ao Jorge não fosse dada a oportunidade de explosão, que eu dou para o Inácio. São dois homens completamente diferentes, um se realiza através da potência destrutiva e o outro é consumido pela degradação, pela podridão. São fluxos de energia diferentes.

Me fala sobre a Nina Medeiros, ela é muito expressiva, chama muito atenção na tela. Ela já havia trabalhado em “As Boas Maneiras”, você já a conhecia?

Não, foi uma coincidência. Eu fiz uma seleção com 300 meninas e cheguei nela. Muito dela ser Dalva está no desejo que ela tinha de brincar, de jogar, de estar nesse universo lúdico. E só depois que a selecionei que eu descobri que ela havia trabalhado com o Marco e a Ju [Marco Dutra e Juliana Rojas]. Muito louco isso.

Além disso, os três atores se parecem muito fisicamente, no rosto, no olho. Parece que são uma família mesmo na vida real. Como foi trabalhar com eles?

Sim, eles são iguais. Um olho deste tamanho! Sempre trabalho o elenco eu e mais alguém que pra mim não é um preparador, é uma pessoa que vai viver comigo uma experiência de aproximação dos estados que esses personagens pedem no filme. Então eu trabalhei com o Flávio Rabelo, que é um diretor de teatro e estuda performance, e com o Tomás Decina para o elenco infantil, estando sempre com um ou com outro em todas as atividades. São atividades que eu chamo de aproximação. Você precisa criar algum tipo de vínculo com o ator para quando você chegar no set esse vínculo ser mais forte do que a estrutura metálica, mecânica que o cinema traz. Então se você não cria através de exercício ou do que for esse senso de indivisibilidade com o ator, tem muita chance da câmera se interpor entre vocês dois e o ator acabar sozinho numa arena. Dá pra sentir muito isso quando você trabalha com criança porque a sensibilidade é muito volátil, ela está ali, mas a qualquer momento pode vir um vento e levar. Todo meu trabalho com a Nina e o Tomás tem uma maneira de lidar com a criança que é muito horizontalizada, muito direta. Então meu trabalho com ele basicamente foi o de fortalecer a confiança da Nina na gente. Então quando a gente chega no set, a Nina não é um ser isolado da maquinária, da fotografia, ela precisa participar desse lúdico para que a transição dela para a frente da câmera não seja percebida, sabe? Ela está ali o tempo inteiro, vendo os planos comigo, participando disso porque ela gosta muito de brincar, e para que, quando fosse a hora dela, não haver essa quebra de ir pra frente da câmera. É como essas brincadeiras de roda em que você participa, mas sempre tem o momento que é a sua vez de estar no centro.

Como esse filme trabalha muito fortemente a dimensão do fantástico, fala um pouco da construção sonora.

O Daniel Turini trabalha comigo desde o primeiro curta. É um colaborador que vale diamante porque ele é um artista. A construção de som dele vem da necessidade de construção de um drama, então não é nunca ilustrativo, nunca óbvio. Está sempre trabalhando isso na dimensão do sensorial de uma forma não explícita. Por exemplo, numa obra não tem tanto ruído daquele jeito que aparece no filme, aquilo é uma orquestração, as pedras que rolam, me lembro muito dele descobrindo isso. No momento em que o Jorge vê o sangue do amigo na obra, tem o barulho de um descarregamento de pedra. E isso não é pra você perceber racionalmente, é só pra você sentir mesmo. Isso é um trabalho muito sofisticado.

Algum projeto novo em vista?

Sim. Eu vou filmar, no próximo ano, um filme de exorcismo. Com a Camila Márdila e a Caroline Bianchi, uma atriz paulista de teatro extraordinária.

* O jornalista viajou a convite da organização do festival.

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