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Ganhadora do Nobel de Literatura lança filme com proposta intimista

Annie Ernaux dirigiu “Os Anos do Super 8” em que rememora o passado a partir de imagens caseiras

Publicado sábado, 22 de outubro de 2022 às 12:28 h | Autor: Rafael Carvalho | Crítico de cinema*
Filme foi lançado no Festival de Cannes
Filme foi lançado no Festival de Cannes -

A escritora francesa Annie Ernaux já vinha, há um bom tempo, sendo considerada uma das principais autoras contemporâneas, o que se potencializa com o Nobel de Literatura que ela acabou de receber. Mas este ano ela revelou outra faceta sua, dessa vez como cineasta, após ter lançado o longa “Os Anos do Super 8”, dirigido em parceria com seu filho David Ernaux-Briot. O filme foi lançado no Festival de Cannes e chega agora ao público da Mostra de Cinema de São Paulo.

O filme se compõe de uma série de filmagens em formato super 8 que Ernaux e sua família fizeram entre os anos de 1972 e 1981. Na verdade, quem basicamente filmava era o seu então marido, Philippe Ernaux, depois de terem investido na compra de uma dessas câmeras de super-8 que produzem imagens amadoras e sem som. Por ser um aparato portátil e de fácil manipulação, tais câmeras permitem a produção de um registro intimista, responsável pela manufatura do que se convencionou a chamar de “filme de família”.

A produção é construída, portanto, a partir dessas imagens caseiras que registram especialmente Ernaux e seus dois filhos gêmeos de sete anos de idade. A autora, com seu talento para a prosa, roteiriza a narração que ela mesma faz no longa, seguindo o fluxo das imagens e da memória. Com isso, cria certo retrato de uma geração na França, marcadamente de classe média alta e intelectualizada.

O filme não deixa de englobar o conceito de “autoficção” ao qual Ernaux é associada, já que sua obra literária é marcada por narrativas bastante íntimas e pessoais, incorporando muito intrinsecamente sua própria vivência nos textos. Até mesmo pelo título, é possível relacioná-lo a um dos livros mais famosos da autora, “Os Anos”, em que ela repassa diversas décadas da História política e sociocultural da França a partir da sua própria trajetória pessoal.

É quando a história particular das pessoas se torna história coletiva, pois aquilo que ela retrata nos livros e agora no filme não deixa de representar uma vivência e mesmo um pensamento de uma geração.

Memórias familiares

Outro filme que lida muito bem com as imagens familiares produzidas em suportes amadores – só que dessa vez em um registro digital, feito nos anos 1990 – é o longa britânico “Aftersun”, da jovem cineasta escocesa Charlotte Wells em seu longa de estreia.

É também uma história muito precisa sobre um evento especifico: a viagem de férias de um pai e sua filha de 11 anos. Ele, um homem jovem, já divorciado da mãe da garota, pai dedicado e amoroso. Ela, atenta a tudo, em fase de crescimento, está desabrochando como adolescente e parece gostar da companhia do pai. Mas há algo de desconexo nessa relação, algo fora de lugar. 

E é a relação dos dois que ao filme interessa investigar, menos como algo dado e decodificado, mais como tentativa de entrever o que se passa ali. É certo que há uma cumplicidade, uma agradabilidade de um estar na companhia do outro; mas há também uma melancolia no ar, além de algumas incompatibilidades que vão surgindo aos poucos entre os dois, como se uma comunhão completa não fosse possível.

É nesse sentido que se trata de um filme de busca – ou uma espécie de investigação psicológica sobre o passado, já que a trama se constrói como uma rememoração da Sophie adulta (vivida por Celia Rowlson-Hall) sobre sua juventude e certo distanciamento com o pai (o ótimo Paul Mescal). Nunca saberemos, exatamente, o que os incomoda, apenas temos dicas da introspecção de cada um. Também o filme não nos revela que tipo de evolução aquela relação teve no futuro, apenas nos deixa vislumbrar que esse processo de retorno ao passado é uma maneira de tatear uma afinidade que poderia ter sido maior, mas não foi. 

Um dos recursos mais acertados de Wells para retratar essa situação são as gravações que eles fazem numa câmera de Mini-DV, muito comum nos anos 1990, e que servem como estopim para a memória. Essa imagem digital de pouca resolução, amadora e um tanto difusa é ideal para espelhar aquilo que se esconde nas frestas da relação pai e filha, tão perto e ao mesmo tempo tão distante.

*O jornalista viajou com apoio da organização do evento. 

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