NOVA SÉRIE
Impecável, "Cangaço Novo" usa ação para falar sobre legado e família
"Cangaço Novo" foi a primeira série de ficção exibida no Festival de Cinema de Gramado
Por Edvaldo Sales
"Tua casa é onde tá teu sangue". Essa frase é dita por um personagem ao protagonista de "Cangaço Novo", Ubaldo Vaqueiro (Allan Souza Lima), em um momento crucial do primeiro episódio. De cara, ela tem o poder de engatinhar diversas reflexões acerca das relações humanas, e algumas delas têm uma conexão direta com os temas família e legado, que são os pilares na trama da nova série original do Prime Video, a primeira de ficção exibida no Festival de Cinema de Gramado.
Com argumento pensado há dez anos pelos roteiristas Eduardo Melo e Mariana Bardan, Cangaço Novo conta a história de Ubaldo, que, após ser exonerado do Exército, perde o emprego de bancário em São Paulo. Sem lembrar da sua infância, ele descobre que tem uma herança e duas irmãs na fictícia Cratará, no sertão cearense. Ele decide ir até lá para tentar resgatar o dinheiro e salvar o seu pai adotivo que está doente. Contudo, as coisas não saem como o esperado e o "herói" é chamado a aceitar cumprir seu destino como o novo líder de uma gangue de cangaceiros modernos que assalta bancos.
A premissa de série - cujo título faz referência à expressão “novo cangaço”, que começou a ser usada nos anos 1990 a fim de classificar as ações violentas de quadrilhas que cercavam cidades pequenas no Nordeste em roubos de bancos cinematográficos - por si só, já é interessante e desperta curiosidade, mas, felizmente, isso é só a ponta do iceberg. O texto do programa brilha em diversos aspectos, desde os diálogos afiados aos arcos bem construídos e desenvolvidos com maestria.
O roteiro, que também tem a mão de Fernando Garrido, Erez Milgrom e Viviane Pistache, faz um ótimo trabalho ao estabelecer os personagens que terão mais peso na história para não correr o risco de perder o foco ao longo dos oito capítulos. Além disso, é digna de elogios a engenhosidade dos roteiristas ao criar uma história que transborda ação, mas que é movida por mobilizações sociais, políticas e, principalmente, pelo drama familiar de personagens complexos, traumatizados e que precisam lidar com um legado de violência na família.
Allan Souza Lima é responsável por dar vida a um protagonista intrigante e que, aos poucos, vai se mostrando ser muito mais do que aparenta. Ele carrega o que para muitos seria um fardo, mas que permite ao personagem ter nuances interessantes, já que o Ubaldo não é o melhor exemplo de herói clássico isento de defeitos.
Porém, o destaque da série é a Alice Carvalho, que interpreta - de maneira visceral - a Dinorah Vaqueiro. A versatilidade da atriz é o que mais impressiona. Ela transita do humor para o drama com muita facilidade e também é dona de uma presença e fisicalidade impressionantes. Outro destaque do elenco é a Thainá Duarte como Dilvânia Vaqueiro, que apesar da aparência frágil, carrega uma força gigantesca empregada pela artista.
Com Aly Muritiba e Fábio Mendonça na direção, Cangaço Novo tem uma narrativa consistente e estética coesa. Gravada em nove municípios da Paraíba, a série celebra o sertão, que, com a direção de fotografia marcante de Azul Terra, é colocado em destaque com enquadramentos e tomadas aéreas de encher os olhos. Mas isso é feito sem romantização alguma, muito pelo contrário.
A dupla de diretores se destaca também por fazer uma ação frenética e bem construída - sem câmera tremida e com bastante estilo. São sequências instigantes, com perseguições, explosões, ruas de cidades sendo tomadas e planos longos que colocam o telespectador quase como parte do que está acontecendo na tela. A câmera passeia pelo ambiente e acompanha os personagens sem pressa, mas com a urgência necessária para criar tensão.
Cangaço Novo se diferencia de outras produções também por não usar a violência para chocar, existem motivos para ela estar lá - seja para mostrar a consequência disso na vida das pessoas ou para abordar a sua escalada como resultado de uma supressão de oportunidades e de direitos básicos em um sertão onde a realidade é cruel e quem vive nele sofre com a negligência das autoridades políticas e policiais.
Mas nem tudo é desgraça em Cratará. A leveza consegue se sobressair em alguns momentos, que se tornam genuínos pelo trabalho do elenco e pela trilha sonora, que mistura piseiro com MPB e rock. É envolvente e cativante, mas sem sair do tom.
Com um ar de "Bacurau" e um pouco de "Mad Max", Cangaço Novo foi vendida como uma série de ação e é um excelente acréscimo ao gênero. No entanto, o saldo final é ainda mais positivo devido aos temas presentes no roteiro e o cuidado com o qual a história foi construída. A mescla de elementos dá mais do que certo e resulta em uma obra impecável.
Assista ao trailer:
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