ESTREIA
Licorice Pizza traz comédia romântica despretensiosa e sagaz
Concorrendo a três Oscars, filme é mais um acerto do cineasta Paul Thomas Anderson
Por Rafael Carvalho | Crítico de cinema
O cineasta Paul Thomas Anderson está mais livre, leve e solto do que nunca. Seu novo filme, Licorice Pizza, revela uma faceta mais branda e divertida sua, diferente de filmes super densos e tensos que ele vem colecionando ao longo de uma carreira irretocável e repleta de grandes obras.
Talvez por isso o realizador sentiu a necessidade de mudar o tom dessa vez.
Só de pensarmos em trabalhos como Sangue Negro (2007) ou o mais recente Trama Fantasma (2017), vêm à mente histórias de embates pesados entre personagens complexos, filmadas com certo rigor formal e um trabalho marcante de entrega dos atores (os desempenhos de Daniel Day-Lewis em ambos os filmes citados, aliás, são uma prova disso).
Em Licorice Pizza muda-se o tom geral da obra para algo mais vivaz, mas algumas coisas permanecem as mesmas, como no caso da lida com os atores. Aqui a dupla Cooper Hoffman (filho do grande ator Philip Seymour Hoffman, morto em 2014, e que já trabalhou em outros filmes do diretor) e Alana Haim são a alma do filme, ambos estreantes no cinema. São duas performances que exigem mais leveza e sagacidade do que necessariamente um vigor cênico, mas ainda assim eles possuem grande presença na tela, especialmente ela, e defendem muito bem seus personagens.
Eles interpretam dois colegas de bairro iniciando-se na vida adulta, ela um pouco mais velha que ele, o que não impede que Gary mostre-se atraído amorosamente por Alana (atriz e personagem compartilham o mesmo nome). Licorice Pizza move-se como uma comédia romântica juvenil, muito embora o cineasta esteja interessado no clima social, filtrado pela juventude, dos anos 1970.
O longa se passa no distrito de Encino, nas imediações da San Fernando Valley, região de Los Angeles, o que os deixa bem próximos da indústria hollywoodiana e toda atmosfera cinematográfica que ronda o lugar – com seus tipos excêntricos e a cara de terra de oportunidades. Gary, aliás, já começa a perseguir trabalhos no teatro e no cinema, buscando seguir carreira como ator, ainda que o personagem não seja obcecado por essas possibilidades.
Pulsão de juventude
Tudo no filme passa com uma leveza de pôr um sorriso no canto do rosto de qualquer um, mesmo nos momentos de maior tensão. Paul Thomas Anderson está entregue ao ambiente e ao tempo de sua própria juventude, lugar onde ele próprio cresceu. O diretor está mais interessado em criar um clima agradável onde seus personagens amadurecem, aprendem a se virar sozinhos, lidam com novos sentimentos, quebram a cara – mas se divertem, acima de tudo. Nós também.
Apesar de se aproximar de um gênero bastante gasto, Licorice Pizza está longe de ser um filme banal. É uma história de formação adolescente, muito centrado na relação entre Gary e Alana, na medida em que o filme mapeia suas vidas familiares e amizades, as tentativas de se darem bem em empregos temporários (alguns deles concebidos pelos próprios personagens) e especialmente a forma como o filme (e, sobretudo, Gary) ensaia a todo instante uma aproximação amorosa com a garota.
Enquanto esta oportunidade não se concretiza – Alana tem uma postura um tanto mais madura do que ele, além de um comportamento muito mais altivo e decidido –, os dois nutrem uma bela amizade, que vemos estremecer em alguns momentos. Alana encontra outros interesses amorosos (um deles com um homem mais velho, vivido por Sean Penn) enquanto Gary busca se estabelecer no mercado de trabalho. Ambos bambeiam nesse percurso.
Além da participação de Penn, outro ator conhecido que surge em personagem inusitado é Bradley Cooper. Ele encarna o que de mais excêntrico existe nessa vida de estrelato de Hollywood. A partir das subtramas que surgem com ambos os personagens – espécie de episódios fugazes, mas representativos das aventuras em que os personagens se metem –, o filme consegue a proeza de quase esbarrar no ridículo, por vezes até no inverossímil, mas extrai daí momentos sublimes em que é possível acreditar no acaso e na circunstâncias mais aleatórias da vida, sem grandes chances de risco, apesar de beirar um perigo real.
É certo que também existe um tom contextual na trama, efeito das memórias de juventude do diretor, que podem passar batido ao espectador brasileiro pela falta de referências históricas e culturais daquele período – em outros momentos, elas parecem ser bem específicas mesmo daquela região e dos anos 1970. Mas isso também não pesa no filme, na medida em que PTA não é o tipo de cineasta que usa referências gratuita e exibidamente. Nesse sentido, o filme é muito próximo ao que ele fez em Boogie Nights: Prazer sem Limites (1997), talvez o filme mais good vibes do diretor antes desse novo.
Livre de amarras
Mesmo quando se arvorou anteriormente pela trilha da comédia romântica com Embriagado de Amor (2002), um filme estranhíssimo em que um estabanado Adam Sandler tentava engatar uma relação com uma misteriosa Emily Watson, o filme passava pelo registro do insólito e até mesmo do onírico.
Daí que se poderia até mesmo estranhar a aposta de PTA nesse tipo de narrativa mais solta, tão distante do que ele tinha feito até então. Cineasta muito associado a um tipo de direção caprichada, por vezes ele pesa a mão no rigor formal. Planos-sequências bem elaborados, por exemplo, são frequentes em seus filmes.
Licorice Pizza até possui alguns – logo no início, no primeiro momento em que Gary e Alana se conhecem de fato e travam uma conversa, o diretor faz a câmera segui-los por várias partes do colégio; mas naquele momento, em que também estamos travando conhecimento com os protagonistas, o que importa mesmo é a conversa em si e não os malabarismos de câmera que estejam sendo feitos.
Sem precisar provar nada a ninguém, PTA aposta na doçura com maturidade, através da segurança de um realizador que sabe manejar muito bem uma trama aparentemente simples, que carrega algo de muito pessoal, mas não se deixa levar pela facilidade do banal.
É uma pena que nessa temporada de premiações, Alana Haim não conseguiu uma indicação ao Oscar (o filme foi indicado em três categorias, incluindo melhor filme, direção e roteiro original). Seu carisma e sua presença inescapável são pontos altos do longa – e certamente Gary concordaria conosco nesse quesito.
Serviço
O quê: Licorice Pizza (Idem) / Dir.: Paul Thomas Anderson / Com Alana Haim, Cooper Hoffman, Sean Penn, Tom Waits, Bradley Cooper
Salas e horários: cinema.atarde.com.br
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