CINEINSITE
'No Coração do Mundo' aborda o violento inconformismo social
Por João Paulo Barreto l Especial para A TARDE
É sobre a inércia que os cineastas Gabriel e Maurílio Martins tratam em seu pungente roteiro de No Coração do Mundo. Mas não somente a inércia no sentido mais comum de citação. Aquela que utilizamos para retratar o incômodo de nos vermos presos a uma rotina de desconforto, de perrengues, de correria nas oito, às vezes doze horas de batente e amassar do barro.
No (in)conformismo de que aquela será a sua realidade para sempre. “Apenas aceite. Dói menos”, como diz a frase nas redes. Ainda mais pesada, na cidade mineira de Contagem, o “motherfucker Texas” como define a letra do Mc Papo a abrir o filme, a inércia é aquela cuja definição científica se aplica de maneira exata. Mas o movimento, o comichão, apesar de poder não aparentar, é constante e frenético.
São pessoas que vivem dentro deste movimento e que, ao mesmo tempo, almejam sair dele de maneira urgente. Nesse conjunto de personagens, os diretores constroem uma dura realidade, mas impossível de não identificar com aqueles realmente cientes do que é o Brasil.
Voltando ao ambiente de Contagem, que já havia sido destacado no homônimo curta de 2010, também dirigido em parceria, Gabriel e Maurílio utilizam a cidade como sua personagem central. Salientando um arco de pessoas, também presente no curta, é ótimo perceber como aquelas trajetórias voltam a ser exploradas aqui.
Neste território, o desenrolar de diversas perspectivas de vida se faz presente. Algumas delas, diante da já citada inércia, acabam por se manter em movimento autodestrutivo. Outras conseguem manejar suas existências de maneira a apenas levá-las à frente. “Pelo menos eu durmo com os dois olhos fechados. Um dia, sua casa cai”, pontua Miro (Robert Frank) ao replicar uma provocação diante de um momento de pesar.
E tal resposta coloca-se exatamente como ponto de equilíbrio entre aqueles que aceitam para, assim, doer menos, e aqueles que resolvem pagar para ver e recebem a dor em sua mais intensa forma.
Narrativas diversas
Um dos pontos precisos do texto dos Martins está justamente nessa capacidade de entrecruzar diversas histórias sem sobrecarregar a estrutura de seu filme. Além de Contagem, não há um(a) protagonista aqui. Naquele ambiente, entre suas várias narrativas, cada personagem se destaca de maneira singular.
Uma delas é a de Selma. No simbolismo preciso do título do longa, Grace Passô traz para sua Selma um equilíbrio entre a serenidade, no explicar do que seria o seu coração no mundo, e a explosão súbita de frustração quando percebe seus planos de estabilidade e alcance desse tal “coração” começarem a declinar.
A atriz, que se destacou no singelo Temporada, dirigido por André Novais, coloca em No Coração do Mundo um extremo oposto do seu protagonismo anterior. E que extremo! Em seu desfecho, diante da violência que se descortina como resposta aos seus atos, sua percepção é de que a aposta foi grande, mas a recompensa pode não ter sido tão alta assim.
Nesta mesma via segue a cobradora de ônibus Ana (Kelly Crifer). De viagem em viagem, sempre saindo em sua primeira rota e retornando para a próxima em uma falsa sensação de movimento. “Vai, volta. Vai, volta, e a vida só passando pela janela. Fim de linha”, define bem a jovem em seu sentimento de vazio.
Trocando fraldas de um pai doente ou tentando se agarrar ao seu relacionamento amoroso, Ana sonha em mudar de Laguna, localidade onde vive. Sonha em recomeçar junto a Marcos (Leo Pyrata), o namorado que até ganha algum na honestidade, auxiliando Selma com fotos escolares, mas vive enrolado nos “esquemas” fáceis.
Na breve homenagem que Ana lhe faz, com a ingenuidade de um carro de som em um feliz aniversário interrompido por som de tiros, a volta súbita àquela realidade não permite à garota sequer a pausa para celebrar. E mal sabe que o tiro disparado se relaciona diretamente a um dos rolos do seu namorado. Precisa percepção de uma das razões para sua estagnação.
Peso do tempo
Marcos, que se vê envelhecendo e acomodando-se na citada inércia, busca uma forma para conseguir sair daquela realidade. Aqui, Gabriel e Maurílio destacam a ideia de nostalgia diante da percepção da idade como modo tão comum de escape fugaz.
Em um diálogo impagável entre Marcos e Brenda Lee (MC Carol de Niterói, em participação primorosa), a amiga o repreende de maneira hilária por pedir-lhe dinheiro emprestado para bancar a festa de aniversário de sua mãe, e ambos mergulham em lembranças de um período mais feliz de suas vidas.
A mãe em questão, dona Fia (Glaucia Vandeveld) segue em sua peregrinação diária a vender desinfetantes caseiros. Volta sempre com o carrinho cheio com as mercadorias que não vende. Marcos apenas observa e lamenta junto à irmã, algo que provoca ainda mais a comichão que sente.
E na mesma vizinhança, uma personagem já conhecida de outro curta de Gabriel Martins, a idosa dona Sônia (Rute Jeremias) segue na ideia de vingar a morte do filho usando uma arma que o vizinho Alcides lhe concedeu. Sim, pode demorar, mas diante do inconformismo, essa mesma comichão chega a qualquer idade.
A maneira como a ilustração de todo o círculo de pessoas ali é colocada em tela desenha com precisão a teia de acontecimentos de vidas que se equilibram entre o conformismo, a ação enérgica de mudança (seja ela qual for) e a tragicidade.
Pensar em Miro com suas prestações da moto para quitar, o aluguel do barraco para pagar e a rotina de bater cartão às oito da manhã não alivia essa mesma comichão que ataca a todos nós. Com o peso do trágico que a inércia, como necessidade de se manter em movimento, trouxe a todos os outros personagens de No Coração do Mundo, a tendência à mesma aceitação de Miro é plena. Mas até quando?
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