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Novo filme de Ridley Scott. O Último Duelo aborda a cultura do estupro e misoginia
Por João Gabriel Veiga*
A história da humanidade é contada pelos vencedores, mas lendo nas entrelinhas, é possível encontrar verdades assustadoras. O Último Duelo, novo filme medieval de Ridley Scott (que fez mágica com esse gênero no passado com Gladiador e Cruzada), usa essa ótica para contar as trágicas circunstâncias do que normalmente é visto como apenas dois homens batalhando com espadas, e conta uma história que, infelizmente, parece atual até demais.
O ano é 1386, e pela última vez na história da França, o rei e a Igreja permitem que a justiça seja feita através do combate físico entre acusado e acusador – respectivamente os cavaleiros Jacques Le Gris (Adam Driver) e Jean de Carrouges (Matt Damon). A lógica por trás desse tipo de julgamento era divina: Deus protegeria aquele que fosse inocente, enquanto aquele que mente terminaria morto.
Porém, por trás dessa justiça dos homens, há o sofrimento vivido por uma mulher – Marguerite (Jodie Comer), esposa do decadente Jean.
Apesar da ambientação histórica, O Último Duelo é um filme extremamente atual. Marguerite, que não está no julgamento por combate, é a verdadeira protagonista dessa história marcada pela brutalidade masculina. Certo dia, quando seu marido está viajando e ela está sozinha, a moça é violentada sexualmente por Jacques Le Gris em sua própria casa. Apavorada, ela decide que não irá permanecer em silêncio e pede ajuda de seu marido para que esse crime seja devidamente punido.
No entanto, a justiça é dos homens, e na França medieval, Marguerite é uma mulher – apenas uma mulher. Por ter nascido do “sexo frágil”, a ela é negada a humanidade e a capacidade de acusar seu agressor por conta própria. Aos olhos da justiça, ela é um objeto e a violência por si sofrida é, na verdade, um atentado contra a honra de seu marido. Além disso, apesar de inúmeros historiadores corroborarem com suas palavras, sua verdade é vista pela sociedade como apenas uma versão, e uma versão discutível. O preço de uma acusação falsa: ser queimada na fogueira.
A trama é contada em três atos: a verdade segundo cada um desses homens, e a verdade segundo Marguerite, que o próprio filme enquadra como a visão correta e silenciada dos fatos. O roteiro, assinado por Nicole Holofcener e pelos atores Matt Damon e Ben Affleck, é sagaz ao usar essa decisão narrativa não para causar dúvidas sobre a veracidade da história, mas para construir a subjetividade dos envolvidos e a mentalidade medieval.
As incongruências e convergências das “verdades” são plantadas ao longo da projeção de uma forma em que é revelado de maneira sutil muito da índole e da auto-imagem de cada uma das personagens. É interessante também como cada versão da história ganha uma nova camada de complexidade quando é comparada com detalhes do ponto de vista apresentado a seguir. Apesar de apenas uma das personagens dizer a verdade, é preciso que todos falem algo para que O Último Duelo possa tecer seus comentários sobre a cultura do estupro e a misoginia das instituições que deveriam proteger as mulheres.
Contudo, é uma pena que o longa tenha um ritmo demasiadamente monótono e enfadonho. O universo de O Último Duelo é cinza, dessaturado e triste, algo condizente com a trama focada nas emoções de seus personagens. No entanto, esse elemento entra em choque com as sequências gigantes de batalha que Ridley Scott insere nos pontos de vista masculinos. A escala maior dessas cenas não acrescenta nada à natureza intimista e social da narrativa, além de serem visualmente desinteressantes de assistir.
Jodie Comer brilha
O tom aborrecido e estagnado dos dois primeiros atos é aumentado pelas atuações de Matt Damon e Adam Driver. Seus personagens são desprezíveis e mesquinhos e os intérpretes transmitem isso, mas os atores falham em trazer alguma camada a mais. Damon está particularmente desprovido de seu carisma, e Driver, que costuma ser o ponto alto de todas as produções que estrela, parece atuar no modo piloto-automático.
No entanto, a direção extremamente séria de Scott combina como uma luva à presença crua e visceral de Jodie Comer, que interpreta Marguerite como uma mulher repetidamente dilacerada pelo mundo que a cerca, lutando para manter sua força. Sua Marguerite é tanto indefesa em relação a suas circunstâncias quanto autônoma sobre seu destino, e sua perspectiva revela O Último Duelo não como um combate entre homens, mas como a luta de uma mulher contra o mundo. É uma atuação rica, que acrescenta vestígios da verdadeira mulher mesmo quando ela é vista pelos olhos dos homens.
O Último Duelo é um casamento de duas versões do cineasta Ridley Scott. Na superfície, é o mesmo que fez Gladiador, mas em seu coração, é o realizador do clássico feminista Thelma & Louise. Esse híbrido é interessante, mesmo que por oras cansativo, desmistificando um subgênero dominado pela perspectiva masculina e ao mesmo tempo usando-o para comentar sobre como a história dos homens e dos vencedores foi escrita por cima das palavras das mulheres.
*Sob supervisão do editor Chico Castro Jr.
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