CRÍTICA
'Ó Paí, Ó 2' volta ao Pelô para celebrar negritude baiana
Filme já está em cartaz nos cinemas brasileiros, depois de pré-estreias lotadas na capital baiana
Por Rafael Carvalho - Especial para A TARDE
Em determinado momento de Ó Paí, Ó 2, Roque (personagem de Lázaro Ramos) confronta um homem branco sobre uma determinada questão que envolve as diferenças raciais e parece que ele vai elevar a voz, quando o próprio personagem nos surpreende dizendo: “Você tá achando que eu vou gritar, né”?
A cena remete ao embate do mesmo Roque com Boca (vivido por Wagner Moura, ausente nesta continuação) no primeiro filme, cena que tem viralizado nas redes sociais nos últimos anos.
O tom da discussão é diferente e talvez mais maduro, apesar de ainda se mostrar necessário na sociedade, mas o que sustenta ambas as propostas é o mesmo princípio da defesa e potência da raça negra, marcas carimbadas deste grande projeto multimídia. Ó Paí, Ó 2, já em cartaz nos cinemas brasileiros, depois de pré-estreias lotadas na capital baiana, atualiza alguns dos temas e abordagens, mas mantém intacto o viés político através da comédia.
Nem mesmo a mudança na cadeira da direção alterou o curso de um projeto tão coeso. A cineasta baiana Viviane Ferreira, hoje radicada em São Paulo, foi convocada pelo Bando de Teatro Olodum para assumir o controle da trupe, como eles gostam de nomear a equipe que, dessa vez, está recheada de nomes baianos nos postos criativos, atrás e à frente das câmeras.
“Como uma boa filha das águas, soube pisar no massapê, atenta para respeitar a história pregressa da franquia Ó Paí, Ó e o método de criação colaborativa do Bando de Teatro Olodum”, pontua a diretora do filme, em entrevista para A TARDE.
Para uma história que tanto carrega a identidade baiana negra, uma diretora como ela era essencial ao filme.
O projeto começou como peça de teatro, teve um primeiro passo no cinema que alavancou o sucesso da montagem – e das pessoas que faziam parte disso – e chegou mesmo a ter duas temporadas como minissérie na TV Globo. Mas segundo Lázaro Ramos, que também concedeu entrevista ao A TARDE, não havia planos para fazer uma continuação do filme. No entanto, a mobilização nas redes sociais foi essencial para mudar isso.
“Estudantes começaram a refazer cenas em cursos de cinema, postando e marcando a gente; Emicida transformou um pedaço em música, colocando na abertura do show; a cena com Wagner viralizou; toda hora alguém falava ‘você é Bahia ou Vitória, afro?’; começou a circular figurinhas de celular com os personagens”, exemplifica o ator e também produtor associado do longa.
Aquilombamento
Com isso, ele conta que o grupo de trabalho em torno do projeto se reuniu para investigar se havia mais coisas a abordar. “Foi a oportunidade para ver, após 15 anos, como o Brasil tratou os temas que os personagens representavam no primeiro filme”, explica Lázaro. Com isso, Ó Paí, Ó 2 ganha vida, retomando grande parte dos personagens icônicos que ajudou a cristalizar.
A trama do filme parte do drama de Neuzão (Tânia Toko), dona do bar no Pelourinho que era um dos epicentros da trama. Ela foi passada para trás por negociadores escusos e o bar foi tomado por um coreano misterioso. Quando ela some dos arredores, todos ficam preocupados e tentam descobrir o que houve.
Ao mesmo tempo, Roque tenta fazer sucesso com uma música para ser lançada no 2 de Fevereiro que se aproxima; Dona Joana (Luciana Souza) lida com problemas psicológicos depois da perda dos filhos, enquanto o mulherengo Reginaldo (Érico Brás) e a empoderada Maria (Valdinéia Soriano) seguem brigando, divorciados, apesar de dividirem o mesmo teto. Esses e outros personagens, velhos conhecidos ou novos rostos, seguem com os trejeitos e vicissitudes que se ampliam até geograficamente – o Rio Vermelho ganha destaque por conta da Festa de Iemanjá.
Mas até mesmo o processo de construção do filme permanece muito ligado a um sentido comunitário. “Esse é um filme feito na escuta, do público e dos arquétipos desses personagens. Por isso ele está tão presente na vida das pessoas. Os atores foram para as ruas pesquisar os personagens, levantar os temas, o jeito de falar, de lidar com os problemas deles. O projeto sempre foi feito assim. Então, a gente fala de aquilombamento; e se o filme é sobre aquilombar, os bastidores também são”, diz Lázaro.
O ator destaca esse gesto comunitário como o grande diferencial do projeto, ao que a diretora complementa: “Partilhar o pertencimento racial e territorial com o Bando de Teatro Olodum foi importante porque potencializou o acesso à compressão da realidade particular do que é ser um corpo negro baiano autorizado a sonhar, apesar dos ‘tantos nãos e tantas dores que nos invadem’’”.
Filme de Bando
Ainda segundo Lázaro, o tempo foi passando e a autoria do Bando de Teatro Olodum foi se reafirmando e se ampliando. “O Bando é dono, proprietário, construtor, criador do projeto. É assim que tem de ser, por isso tem que estar em todos os setores”, afirma.
De fato, nota-se nesse filme uma integração muito maior da equipe criativa em muitos campos do filme, algo que se nota nos créditos do longa. Além disso, a diretora destaca o método que o grupo vem desenvolvendo ao longo de uma trajetória de mais de 30 anos. “O Bando aprimora cotidianamente o que conhecemos no mundo como teatro negro e traz a visceralidade do corpo que fala nos palcos para também falar nas telas”.
Até mesmo o tom de exagero e caricatura, que era mais marcante no primeiro filme, ganha nuances mais equilibradas aqui. Os personagens continuam lidando com os mesmos temas (direito à moradia, luta contra racismo, afetividade, violência) de modo engraçado e jocoso, deixando entrever doses de crítica social que só a comédia é capaz de acentuar. “Quando se começou a fazer o exercício desse segundo filme, outros temas apareceram: saúde mental, criação de filhos, a nova geração e uso da tecnologia”, relembra o protagonista.
As questões levantadas pelo filme se acumulam, mas Ó Paí, Ó 2 não necessariamente encontra um caminho próprio para contorná-los. O conceito do projeto já está tão amarrado que o filme segue apenas o curso do rio, sem desgastá-lo, com muito bom humor e alto astral, celebrando a cultura negra e baiana em torno daquelas pessoas que fazem do Pelourinho um universo particular.
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