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Vencedor do Urso de Ouro é destaque na Mostra de São Paulo
Filme espanhol Alcarràs retrata os conflitos de uma família que vive em uma vila rural da Catalunha
Por Rafael Carvalho | Crítico de cinema*

Teve início nesta semana a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, um dos maiores eventos de cinema da América Latina, a destacar os filmes mais badalados do ano. Um dos destaques é o longa espanhol “Alcarràs”, da cineasta Carla Simón, que venceu o Urso de Ouro, prêmio máximo do Festival de Berlim, um dos mais importantes do mundo.
Simón retorna ao ambiente rural da Catalunha onde ela cresceu, para observar, com cuidado e carinho, uma família que podia bem ser a sua própria. Os Solé vivem da cultura de pêssegos (toda a família participam das etapas de plantio e cultivo, trabalho braçal e ao mesmo tempo de alegria e reunião familiar) numa parte da propriedade que eles pensam ter posse, ainda que trabalhem para um rico fazendeiro local.
Às questões familiares – os adultos com seus problemas trabalhistas, os adolescentes sem grandes perspectivas de vida e as crianças preocupadas apenas em brincar – somam-se os conflitos pela terra (que exigem documentos oficiais que comprovem a sua posse) e os da modernidade.
A instalação de painéis solares tem se tornado uma realidade na região, surgindo como uma espécie de subemprego que passa a substituir o tradicional cultivo da terra. As cooperativas locais passam a lutar contra essas “novidades” que têm deixada os agricultores em situação de ameaça ao seu sustento.
Simón cria, assim, um universo muito palpável em que o macro e o microssocial subsistem e se completam de forma muito orgânica. A família Solé pode ser vista como mais uma refém daquela estrutura agrária que começa a se modificar, mas cada integrante possui as suas particularidades, apesar dos conflitos de cada um não serem tão fortes assim, dramaticamente. Apesar de se apresentar como um filme ensolarado – cortesia da idílica fotografia de Daniela Cajías, beneficiada pelas belíssimas paisagens da Catalunha rural –, o filme possui um tom bastante agridoce.
Dilemas morais no Irã contemporâneo
As questões familiares também são um ponto alto do cinema iraniano. Apesar das duras restrições sociais e políticas, o Irã desde há muito tempo possui uma produção cinematográfica pulsante. O longa “Até Amanhã”, do cineasta Alia Asgari é um ótimo exemplar de um cinema de dilemas morais, mas bem distinto do filme espanhol.
Na trama, Fereshteh (Sadaf Asgari) é mãe de um bebê de apenas dois meses de idade e vai receber a visita dos pais em sua casa. Tudo estaria bem se não fossem pequenos detalhes (e se não estivéssemos falando de uma sociedade tão rígida e moralista como é a do Irã): a complicação é que ela é mãe solteira e os pais dela não sabem sequer da existência da criança.

Com a visita inesperada – os pais moram no interior do país – o que sugere um pensamento ainda mais conservador –, Fereshteh vai lutar contra o relógio para conseguir alguém que fique com a criança por uma noite (“só até amanhã”, daí o título do filme), tempo que eles prometem ficar na casa da filha. É preciso que o/a “guardião/ã” não questione muito os motivos para que ela deixe a criança aos cuidados de terceiros porque ela não tem muito como se explicar. O filme lida, portanto, com os dilemas não só das duas mulheres no Irã contemporâneo, mas de cada um com quem a personagem cruza.
É evidente que não demora muito para que a estrutura de bola de neve se instaure na trama e as coisas ganhem proporções cada vez mais graves e complexas, numa rede de desentendimentos e entraves que se desenrolam por todo o filme, até o seu desfecho. Asgari evita os finais em aberto e consegue ser muito determinado na conclusão de uma história que pareceria um beco sem saída, ainda que as consequências pelos atos estejam apenas começando.
*O jornalista viajou com apoio da organização do evento.
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